* Miriam Rodrigues Ferreira de Souza
Negligência, numa definição linguística, é o termo usado para designar falta de cuidado ou de aplicação numa determinada situação, tarefa ou ocorrência. Pode ter como sinônimos a inadvertência, a desatenção, a omissão e o descuido. É também uma palavra utilizada para designar a falta de atenção dos familiares diante de situações adversas, para classificar o trabalho ou a responsabilidade de nossos políticos.
Negligência poderia ser aplicada em diversas outras situações, mas em uma circunstância em especial torna-se ainda mais gritante do que nas situações anteriormente mencionadas:a negligência em relação à nossa saúde, ao bem-estar da população, às condições de vida e de sobrevivência.
Existe um grupo de doenças no Brasil que recebe exatamente esta denominação: negligenciadas. As doenças negligenciadas são classificadas pela FIOCRUZ como “aquelas causadas por agentes infecciosos ou parasitas e são consideradas endêmicas em populações de baixa renda”. Ainda, segundo essa instituição, essas enfermidades apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e em seu controle.
Dentre essas doenças estão a malária, doença de Chagas, leishmaniose. Doenças reemergentes, pois estão reaparecendo após anos de notificações como reduzidas. Mesmo ocasionando um número reduzido de infecções, o ressurgimento deve ser considerado um alerta, um problema de saúde pública que necessita de planos de ação eficientes para evitar surtos como o recente ressurgimento da febre amarela silvestre.
Talvez, com a pretensão de não alarmar a população, as informações sobre as ressurgências não estão chegando até à população. Foi preciso que um surto de febre amarela, com diversas mortes, nos alertasse sobre o risco da reemergência da doença e da necessidade de uma campanha ainda mais intensa, não somente de vacinação, mas de informação.
A principal medida profilática da maioria das doenças, que é a informação, não está sendo realizada. Sem contar o fato de que boa parte das doenças de ocorrência no Brasil poderiam ser evitadas inibindo os ciclos dos agentes etiológicos (os parasitas que causam as doenças). Poderia ainda utilizar um sinônimo relatado no início deste texto para tratar de outro exemplo, a palavra omissão. A grande maioria das verminoses, como esquistossomose, que, segundo o Ministério da Saúde, a magnitude de sua prevalência, associada à severidade das formas clínicas e a sua evolução, lhe conferem uma grande relevância como problema de saúde pública, poderiam ser evitadas com saneamento básico, tratamento adequado da água e do esgoto, extremamente precários no Brasil ou até mesmo inexistentes em algumas regiões.
Ainda é possível mencionar aquelas doenças de baixa magnitude, com poder de mortalidade reduzido, que por não causar a morte rápida dos indivíduos, sequer estão efetivamente sendo combatidas. Verminoses como ascaridíase, ancilostomíase, esquistossomose, que podem apresentar quadros graves com comprometimento de órgãos, não são sequer lembradas.
Para exemplificar o descaso e a falta de divulgação das informações, boa parte dos leitores deste texto não deve ter o conhecimento dos dados do levantamento do IBGE, relatados no Plano Nacional de Desenvolvimento (PND, 2012-2015), onde são apresentados os números de ocorrências de muitas doenças infecto-contagiosas. Segundo o PND, no tocante à tuberculose, por exemplo, o número de casos novos notificados em 2009 foi de 73.657, com taxa de incidência de 38,4 casos por 100 mil habitantes, enquanto a hanseníase detectou 37.610 casos novos em 2009, o que corresponde a um coeficiente de detecção geral de 19,64/100 mil habitantes. Por se tratar de doenças de fácil transmissão (transmissão direta, sem participação de vetor), os números se tornam preocupantes e alarmantes.
Poderia relatar e discutir inúmeras outras formas de negligência como a substituição de agentes de saúde e vigilância epidemiológica por profissionais despreparados, desvio de verbas destinadas à saúde, ano após ano, como forma de compensação política, e o desinteresse econômico por parte dos laboratórios em desenvolver medicamentos que combatam certas doenças. São tantas as formas de negligência que não seria possível discuti-las em um só texto.
O que realmente deveria nos tocar é o fato de que estamos todos vulneráveis, e essas enfermidades conhecidas como doenças negligenciadas, incapacitam ou matam milhares de pessoas no Brasil e em países subdesenvolvidos de outros continentes, de onde provém uma grande parte das doenças de incidência no Brasil. A palavra negligência talvez deva ser substituída por abandono, talvez a mais adequada quando se trata de saúde e vigilância epidemiológica no Brasil. Abandono porque nós, como cidadãos, também não nos engajamos em defesa de nossa saúde, não cobramos e não buscamos melhorias em nossa qualidade de vida.
*Miriam Rodrigues Ferreira de Souza é graduada em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário de Caratinga e Especialista em Ensino de Biologia. Professora da Escola Prof. Jairo Grossi e da E. E. Isabel Vieira