Projeto ajuda homens a ficarem livre das drogas e começarem uma nova vida
CARATINGA – O Projeto Restaurando Vidas é uma entidade sem fins lucrativos que há dois anos atua na área de reabilitação de pessoas com dependência química e transtornos decorridos do uso e abuso dessas substâncias, dando palestras; orientando as famílias co-dependentes; fazendo triagem e recolhendo dependentes e os abrigando para o tratamento. A metodologia de trabalho da clínica que fica no sítio Betel, a dois quilômetros do Bairro das Graças, é a reeducação através de métodos de distanciamento das situações indutoras ao consumo de drogas licitas e ilícitas. Através desta metodologia os residentes descobrem valores éticos, morais e espirituais que, até então haviam sido atrofiados pelo modo de vida ao qual estavam submetidos.
A reportagem do DIÁRIO DE CARATINGA conversou com Vanderley Santos Martins, 36 anos, teólogo em múltiplas religiões, pós-graduado em psicanálise, escritor, palestrante e o coordenador geral do projeto “Restaurando Vidas”, para saber como funciona o tratamento para dependentes químicos na clínica. Vanderley é casado com Josiane, que é a presidente do projeto, e o casal tem uma filha de sete anos.
Há quanto tempo trabalha com dependência química?
Há 18 anos
Por que escolheu esta área para se dedicar?
Nasci em uma família sem estrutura psicológica, meu pai era alcoólatra, cresci o vendo beber e quando eu tinha 12 anos, ele entrou para os Narcóticos Anônimos e foi aí que comecei, nessa época morava em Vargem Alegre, com 13 anos, saí de casa, fui pra as ruas, ia para Belo Horizonte, Espírito Santo, já usando drogas, todos os tipos. Com 17 anos fui me internar em uma clínica em Vargem Alegre.
Você também foi dependente químico, como conseguiu se livrar das drogas?
Num determinado dia chequei em casa, minha mãe estava na cozinha e sobre a mesa havia uma faca do meu pai. Então ela me disse: “Vanderley, por que não pega essa faca e me mata de uma vez?”. Eu disse que não poderia fazer isso porque a amava, então ela respondeu que eu a matava todos os dias usando drogas. Quando ela falou aquilo comigo, perdi meu chão, minha família sempre gostou muito de mim. Então fiquei na clínica em Vargem Alegre por nove meses e quando faltavam três dias para concluir meu tratamento, meu pai faleceu. Fui em casa, minha irmã estava com dez anos. Velei meu pai e voltei para concluir o tratamento e quando estava para ir embora, o pessoal me fez a proposta de trabalhar ali, fazer um estágio, pois eu queria trabalhar nesta área. Como tinha parado de estudar com 12 anos, conclui meus estudos dentro da clínica. De estagiário passei a ser titular e comecei a viajar, fazer palestras e numa ida em Belo Horizonte, conheci minha esposa, a Josiane, namorávamos por cartas, em 2008 nos casamos. Fiquei de 1997 a 2011 na clínica Hebrom, em Vargem Alegre, onde de dependente passei a diretor e lá também um dependente conheceu minha irmã e se casou com ela. Meu cunhado, que é o Samuel, hoje é o vice-presidente, daí vim para Caratinga e fui mexer com exportação de café.
Como começou o projeto “Restaurando Vidas”, quando você entrou nele?
Começou lá na Comunidade Águas Vivas do pastor Elan Tebas, um dia conversando com ele, pois faço parte da igreja, falei com ele do meu sonho, que já trabalhava com dependência química, passei a fazer reuniões com famílias lá mesmo em 2015, mas faltava um espaço físico para o projeto. Depois dessas reuniões, começaram a surgir muitas demandas, pessoas me procurando pedindo ajuda para se internarem, então fiz parcerias com clínicas, teve um ano que encaminhei 40 pessoas.
E como conseguiram esse espaço no sítio Betel?
Um dia vim participar de um casamento aqui neste sítio, e a proprietária disse que queria transformar esse lugar num hospital de almas. Então falei do meu projeto e ela disse que passaria a chave do sítio para o pastor Elan e em junho do ano passado (2017) fechamos um contrato de cinco anos.
São quantos internos e qual a faixa etária? Qual a capacidade do local?
São 18 internos de 17 anos acima, apenas homens. Nossa capacidade é para 60 pessoas
Como funciona o projeto e de que forma se consegue a internação?
O primeiro passo é o indivíduo ter vontade própria de recuperar. Depois disso passam por exames médicos. Muitas pessoas perguntam de que forma a instituição se sustenta. Existem os parceiros, as famílias que podem, contribuem com um salário mínimo e quem não pode, entra assim mesmo, 3% são destinados a vagas sociais. E agora estamos trabalhando com um projeto de reinserção social, estamos trazendo cursos profissionalizantes para que os internos saibam trabalhar em alguma área quando daqui saírem, além disso pegamos serviços externos de pinturas, limpezas de piscinas. Eles vão e ganham seu dinheiro.
Como é a rotina dos internos?
Tem o processo de laborterapia, limpeza da piscina, cuidar de criações, rastelação do pátio, plantações e outros. Temos também atendimento com psicólogos e psiquiatras, além da parte espiritual. Aplicamos aqui os princípios dos narcóticos anônimos e durante o dia é feita uma ata de tudo que acontece. Existem também os agentes comunitários que ficam aqui o tempo todo para dar assistência aos internos, temos enfermeiro também para dar os medicamentos.
De que cidades vocês recebem os internos?
De várias. Temos pessoas aqui do Rio de Janeiro, de Timóteo, de Ubá, Miradouro… Temos o site, as pessoas pesquisam e entram em contato.
Qual o momento mais crítico para o interno?
Geralmente, os primeiros 15 dias, pois aqui não permitimos o uso do tabaco, como outras instituições permitem, a abstinência é difícil. Tem também a saudade de casa, que antes não sentia falta, pois a droga não deixava
Quando podem ir em casa durante o tratamento?
Quem é casado, com 90 dias vai em casa e fica quatro dias. O solteiro vai com cinco meses e fica quatro dias também.
Qual a porcentagem de sucesso das reabilitações?
Geralmente 70%, antes era menor, mas agora ajudamos a família também se tratar, pois ela é co-dependente, e em suas cidades também existem os narcóticos anônimos para quando o indivíduo for embora, estar preparada para o receber.
Qual a droga mais usada por quem chega aqui?
Geralmente o crack e o álcool. O álcool gera uma abstinência muito forte, o ex-dependente acha que tem alguém o seguindo, é bem complicado. Já o crack, a abstinência gera agressividade. O crack vicia muito rápido, com 12 segundos vai para o cérebro e duas vezes que é usado, a pessoa já vicia
Em sua opinião, o que leva uma pessoa a entrar no mundo das drogas?
99% é falta de estrutura familiar e 1% curiosidade e amigos, de acordo com estudos que faço. Tenho indivíduos aqui que o pai é empresário, deu carro bom, mas nunca sentou para conversar com o filho, é questão de convivência. Falta vida de qualidade, sentar numa grama por exemplo com seu filho, com sua esposa e dedicar tempo aos relacionamentos e a humanidade perdeu isso. Atendo famílias em que pais não abraçam os filhos há quatro anos. Estamos vivendo hoje uma crise existencial, você conversam com alguns jovens, que não sabem seu propósito de vida, não possuem um “norte”.
Que caso mais te marcou?
Tem um interno que era viciado em álcool e suas pernas seriam amputadas pois não conseguia mais andar, ficava deitado, o dono do bar levava a bebida em sua cama e ali ficava. Teve um diagnóstico que precisava amputar as pernas, a família entrou em contato e o trouxemos pra cá, com 25 dias já estava andando e começou a dirigir carros para a instituição.
E a que você atribui o sucesso das recuperações?
Em primeiro lugar, Deus, pois é ele que movimenta tudo. Quando tive o primeiro interno aqui, estava rastelando o pátio, o rastelo caiu das minhas mãos, quando desci para pegar, fui raciocinando. Para o rastelo funcionar precisa alguém para manuseá-lo e assim sou eu, estou aqui porque Deus está segurando minhas mãos, tudo é para Deus, Ele faz tudo.
Nesse tempo de projeto quantas pessoas já conseguiram se reabilitar?
Aproximadamente 20 pessoas
Mas e depois que saem daqui? O que fazer?
Estamos trabalhando a capacitação profissional, o indivíduo fica aqui nove meses e o mundo lá fora não para, mas a vida profissional parou, aí com esse projeto ele sai daqui sabendo fazer algo.
Existe algum projeto para ajudar mulheres dependentes químicas?
Sim, nosso estatuto rege que podemos trabalhar com mulheres e homens e já estamos procurando um sítio para tratar mulheres, mas por enquanto encaminhamos para outras clínicas.
Vocês também estão com um projeto com as prefeituras?
As prefeituras pagam R$ 1.500,00 por mês e podem mandar três pessoas para a clínica e ainda tem 35% de desconto para quem vier daquela cidade e não estiver dentro da cota da prefeitura.
DEPOIMENTO DE UM RECUPERANDO
“Meu nome é Júlio César Freitas da Silva, tenho 36 anos, sou de Ubá. Tenho um filho de 13 anos do primeiro casamento. Há três meses estou na clínica, era dependente exclusivamente do crack. Quando estava desesperado, liguei para um amigo e me passou telefone do Vanderley e consegui vir pra cá.
Vi que estava no fundo do poço, quando comecei a acreditar nas minhas mentiras, furtar coisas de dentro de casa, aí vi que não dava mais. Todo pagamento eu comprava o crack. Sou enfermeiro, funcionário público, especialista em saúde mental com ênfase em dependência química.
Conheci o crack em 2001 quando foi fazer cursinho em Juiz de Fora, essa droga chegou em minha cidade em 2007. Sempre usava com álcool, mesmo internado em outro lugar, fiz a pós-graduação. A cada 15 dias ia em Juiz de Fora estudar, a família me levava e ficava me esperando. Me casei com 22 anos, mas não deu certo, agora tenho um relacionamento de um ano. A força que a gente tem vem de Deus, para a Medicina o vício das drogas é incurável, mas para Deus tudo é possível. Achava que poderia beber e não usar crack, ou fumar e não usar, mas não tem jeito, é auto sabotagem. Quando sair daqui quero reconstruir uma família com base sólida, minha companheira usa álcool, quero ajudá-la, pois se ela continuar pode me prejudicar, gosto muito dela, pois esteve comigo nos piores momentos”.