Professor Ronei Carlos Lima, mestre em História – UNB, pesquisador responsável pelo reconhecimento da comunidade quilombola dos Bernardos, em Raul Soares, fala sobre a condição do negro no Brasil
DA REDAÇÃO – Infelizmente, a tão sonhada igualdade racial ainda está longe de ser alcançada no Brasil. Só para dar um exemplo: Dados mostram que somente nos dois primeiros meses de 2023 registraram 1433 violações, mais do que o dobro da quantidade de denúncias de todo o primeiro semestre de 2022, quando foram registradas 603. Sobre essa situação e outras ligadas à comunidade negra, que o DIÁRIO entrevistou o professor Ronei Carlos Lima, responsável pelo reconhecimento da comunidade quilombola dos Bernardos, em Santana do Tabuleiro, zona rural de Raul Soares. Ele é enfático ao afirmar: “O povo branco brasileiro, em sua maior parte tem orgulho de ser racista. O racismo no Brasil é escancarado.
E o brasileiro branco ainda tem o nefasto “Racismo Recreativo”, termo criado pelo jurista Adilson Moreira, autor do livro “O que é Racismo Recreativo?”, publicado em 2018, sexto título da coleção “Feminismos Plurais”, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro. Segundo Adilson Moreira, trata-se de uma prática de racismo disfarçada de “humor” e, por isso, pretensamente acobertada e muito difundida na sociedade. É apontado por ele como um projeto de dominação social característico da sociedade brasileira que encobre a hostilidade racial por meio do humor.
Outro dado estarrecedor foi apontado pela pesquisa inédita ‘Mulheres negras no mercado de trabalho’, realizada por meio da rede social Linkedin e publicada em março deste ano. Essa pesquisa contou com a participação de 155 mulheres na faixa etária de 19 e 55 anos, sendo a média prevalente entre 30 e 45 anos. Do total das participantes, 50,3% possuem nível superior e pós-graduação ou especialização; 13,5% mestrado e doutorado; e 24,5%, ensino superior completo. Suas áreas de trabalho são educação, recursos humanos, tecnologia da informação (TI) e análise de sistemas, telemarketing, relações-públicas, administração e comércio. A coleta de dados foi efetuada em 2021 e 2022. Destas participantes, 86% relataram já terem sofrido ofensas racistas.
Racismo é crime. O inciso XLII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Este Inciso garante o direito à não discriminação de qualquer indivíduo em razão de raça, bem como prevê a pena deste crime em lei. Cabe pontuar que essa é uma forma de promoção do direito à igualdade, garantia extremamente importante para a democracia. Sendo assim, a intenção constitucional de reprovação do racismo é tanta que aquele que praticar tal crime poderá ser responsabilizado para sempre, sem qualquer prazo para que seja acusado e condenado. Além disso, a pena pelo crime de racismo deverá ser necessariamente a de reclusão, ou seja, o condenado poderá ser submetido à prisão em regime fechado.
A ENTREVISTA
Professor Ronei Carlos Lima possui mestrado em História pela Universidade de Brasília. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, pós-abolição, resistência quilombola no Brasil, especificamente Minas Gerais, no final do século XIX. Sua pesquisa situa-se no campo da História Cultural e Social, com ênfase na História Oral. E dentre suas pesquisas, ele é o responsável pelo reconhecimento da comunidade quilombola dos Bernardos, em Santana do Tabuleiro, zona rural de Raul Soares.
Nessa entrevista, além de falar sobre a questão do racismo, professor Ronei destaca os aspectos culturais do povo negro. Ele aproveitou para deixar sua mensagem: “Racismo destrói vidas, destrói o próprio racista que ao tentar desumanizar o outro se desumaniza”.
Axé, professor Ronei.
Professor, primeiro gostaria que o senhor se apresentasse para nossos leitores. Sabemos que sua é origem é o Distrito Federal, mas tem seus vínculos em Minas Gerais?
Antes de começar, quero agradecer o convite para essa entrevista. Eu nasci em Brasília/DF, e aos seis anos de idade a trajetória de vida dos meus pais revelou o lugar onde vivi parte da infância e adolescência no interior de Minas Gerais, no município de Raul Soares, no distrito de Santana do Tabuleiro, de onde parti de volta para Brasília no ano de 1991, com o anseio de continuidade aos estudos. A vinda para a cidade se constituiu como meio capaz de desfazer o que seria o enredo de minha vida, o lugar tinha pouco a oferecer e os desafios eram reforçados pela minha condição de pessoa negra. Inconformado com uma série de violências experienciadas na arena social daquela ambiência, fortaleceu minha decisão do êxodo rural. Já em Brasília, ansiava por outros retornos. As cicatrizes causadas pelo racismo e preconceitos não foram capazes de aplacar a saudade dos meus familiares, pois em Santana do Tabuleiro havia deixado pedaços de mim. Parafraseando Durval Muniz, ‘a saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços queridos de seu ser, dos territórios que construiu para si’. E havia um interesse enorme em compreender os motivos de tanta violência racial em Minas Gerais, sobretudo na região do leste mineiro.
O senhor possui mestrado em História pela Universidade de Brasília. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, pós-abolição, resistência quilombola no Brasil, especificamente Minas Gerais, no final do século XIX. Por que escolheu esses temas?
Estudei na estadual escola Padre Júlio Maria, em Santana do Tabuleiro, meu interesse era enorme pela disciplina de história. Nesta época a bibliotecária era a freira Irmã Fátima, quem me indicava leituras diversas. A biblioteca era meu segundo lar. Após fazer o meu curso superior em história, época de idas e vinda à Minas Gerais garantiram algumas reflexões. Com novos arcabouços de conhecimento e letramento racial, o conjunto de vestígios que emanavam da cultura local iam se descortinando e ficavam evidentes os conflitos presentes, com tristeza que digo, o racismo em Santana do Tabuleiro estava evidente. Na infância experienciei pessoas negras sendo violentadas e desqualificadas de toda sua humanidade, cujas estratégias ali estavam bem assentadas. Aprendi com minha mãe Maura Lima a ser combativo contra injustiças. Me ocupei em pesquisar e tentar compreender os conflitos presentes nas relações raciais do Brasil, sobretudo no rural do país, no leste de Minas Gerais. Ainda na graduação nunca concordei com o chamado mito da democracia racial propalada por intelectuais e ideólogos da nação no século XX. Minha experiência por ter vivido no leste de mineiro dizia o contrário de tudo isso. O ódio racial de brancos contra negros após estava claro. O Brasil oitocentista e o pós-abolição foram importantes para minha construção de conhecimento acerca do mal que assombra o povo negro do Brasil, sobretudo o povo negro do rural mineiro.
O senhor é o responsável pelo reconhecimento dos Bernardos, de Santana do Tabuleiro, zona rural de Raul Soares, como comunidade quilombola. Como se deu esse trabalho?
No início de 2002, estabeleci contatos com o Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília. Em dezembro do mesmo fiz uma viagem a Minas Gerais e na região iniciei as primeiras entrevistas para entender o cenário racial do leste mineiro. Naquele momento, foquei a atenção nos vestígios que apontavam para o rural de Santana do Tabuleiro. Por meio de imagens fotográficas e em conversa com os mais velhos foquei minha atenção na comunidade dos Bernardos. Naquela época parti em direção aquela comunidade negra rural, que fica a 12 quilômetros do centro de Santana do Tabuleiro. Assim iniciou o meu primeiro contato como pesquisador. Foi uma dupla captura entre o pesquisador e eles, sobretudo os mais velhos; João Bernardo, Benigna Bernardo e Geraldo Senhoria, este último o mestre congo da comunidade. Suas vozes foram ouvidas e revelou-me seu grande passado.
O senhor tem ênfase na história oral. Quais as dificuldades em averiguar fatos sem vasta documentação?
O documento para a produção historiográfica é uma chave capaz de abrir portas. Entretanto o documento sozinho nada responde, ele precisa ser interrogado e problematizado. Cabe ao historiador fazer essas perguntas. Entretanto, quando o pesquisador busca reconstruir a história da população negra, sobretudo no rural profundo no Brasil, o desafio é ainda maior. É uma zona cinza, pouco ou nada se tem sobre esses grupos. Mas até essa ausência é reveladora. A estratégia de opressão contra o povo negro é acima de tudo de apagamento de sua história. Cabe ao historiador encontrar métodos outros, encontrar novos caminhos, novas fontes. É nesse sentido que a História Oral se faz fundamental. Com ela é possível dar voz aos silenciados da história.
Poderia nos explicar como surgiram as comunidades quilombolas na Zona da Mata, Leste de Minas e Vale do Aço?
Após a decadência do ciclo do ouro na última década do século XVIII, as regiões mineradoras assistiram ao forte deslocamento populacional para a Zona da Mata. A fertilidade dessas terras contribuiu para o desenvolvimento de novas práticas de exploração. Escravizados forçados a deixar as minas de ouro para seguir escravocratas rumo às fazendas de produção agrícola. Em 1810 a coroa portuguesa declarou guerra aos povos indígenas Botocudos, o que aos escravistas se apropriarem desse vasto território indígena. As margens do Rio Doce, nas primeiras décadas oitocentistas, aldeias inteiras foram brutalmente assassinadas. Não posso dizer de outros quilombos, mas o quilombo dos Bernardos de Santana do Tabuleiro, no leste de Minas Gerais tem ligação direta com esse processo histórico. Oriundos de regiões auríferas e forçados ao trabalho em fazendas, como resistência aos castigos, eles empreenderam seu ato de coragem e enfrentamento. Foi um ato heroico.
Qual a importância dessas comunidades para preservação de nossa história?
O quilombo dos Bernardos é a prova testemunhal de que houve resistência contra a infame escravização de pessoas negras. A luta pela liberdade faz parte de sua constituição enquanto comunidade. Ela é um símbolo de orgulho para todo o povo do leste mineiro, de Minas Gerais e do Brasil. Sua história ilumina a cultura local, é uma mônada. Sua tradição ajuda na construção de uma identidade regional. Seu território é um signo de resistência contra qualquer forma de opressão, não apenas racial, faz rizoma e exemplifica a coragem de luta pela liberdade. Eles são exemplos vivos da luta antirracista. Seus antepassados em um ato heroico desafiaram um dos sistemas escravistas mais poderosos do século XIX, o último a ruir em toda América. Junto a luta do passado, o movimento negro brasileiro no século XX, se organizou e conseguiu colocar na constituição de 1988, no Ato das Disposições constitucionais Transitórias, no Artigo 68, – garante o direito de ocupação de suas terras. Garantir o direito à terra, que para eles é território, é primeiro passo para garantir seu modo de vida, seus hábitos e costumes, sua memória e sua identidade. E além disso, o patrimônio material e imaterial presente em suas vidas ajuda na construção de uma memória regional, que no final no limite fortalece toda a cultura mineira, sobretudo no leste de Minas.
Uma das tradições dessas comunidades é o congado. Qual a origem do congado e o seu significado?
Na comunidade, a tradição do congado aparece como um dos elos que ligam os Bernardos ao seu território, além de ser um traço da cultura santanense. Essa tradição é importante para o fortalecimento e a pluralidade dos fazeres socioculturais de país que se deseja democrático, onde todos os grupos se sintam representados. A congada é resultado de reelaborações de tradições africanas milenares. No interior do sistema escravocrata houve o sincretismo religioso, apropriações de signos do colonizador garantiu sua continuidade.
Hoje temos em todo território nacional quantas comunidades quilombolas?
De acordo com estudo realizado pelo IBGE, em 2019 o país contava com 5.972 quilombos.
Em relação a Abolição da Escravatura, nota-se que simplesmente foi assinada uma lei, sem uma devida estruturação para que os negros tivessem condições de se adequarem à sociedade. Quais são os reflexos dessa falta de estruturação que ainda hoje persistem?
Para a comunidade negra brasileira pouco ou nada tem a dizer a chamada “abolição (…) O 20 de novembro sim, tem muito a dizer, é o Dia da Consciência Negra, este sim é um dia de muita reflexão e celebração. Uma data apropriada e com uma gama de sentidos de extrema importância para a luta do povo negro. Essa luta contra o racismo é antes de tudo uma luta antirracista e deve se expandir para todos e fazer um país de inclusão. A problemática da imobilidade social do povo negro no Brasil é uma chaga que permanece, não apenas como continuidade, mas como exercício de poder da branquitude. A necropolítica de estado tem destruído a felicidade do povo negro todos os dias. A pobreza no Brasil tem cor, e a cor da maioria da população pobre é negra. Se na chamada “libertação dos escravos” nada foi feito para reparar os mais de 300 anos de escravização, o povo negro tomou para si o exemplo de Zumbi dos Palmares (1655 – 1695), o herói quilombola que deixou um legado sobre a luta pela liberdade. A consciência negra está se ampliando.
O governo Bolsonaro instituiu a ‘Medalha Princesa Isabel’ para homenagear pessoas e entidades que tenham prestado “notáveis serviços” relacionados à proteção e à promoção dos Direitos Humanos. O governo Lula revogou essa medalha e instituiu o ‘Prêmio Luiz Gama’. Qual sua avaliação sobre essa medida?
Penso que Luiz Gama, intelectual preto, está bem acima e tem mais a dizer ao povo negro que Isabel. Como abolicionista, orador, jornalista advogado e escritor ele agiu em diversos círculos sociais e intelectuais em favor da liberdade dos escravizados. Suas críticas contra o sistema escravocrata incomodavam e fez dele um dos maiores abolicionistas do país, e também de toda américa.
O Brasil costuma não valorizar e muitas vezes nem saber quem são verdadeiros heróis. Qual o legado de Luiz Gama?
Em recente publicação a querida amiga e historiadora Ana Flávia Magalhães publicou o livro: Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Neste livro, resultado de sua tese de doutorado, ela aborda aspectos da luta de Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, entre outras pessoas livres e de cor na luta contra a escravidão. Luiz Gama está ao lado de nomes como Zumbi dos Palmares, um herói da luta pela liberdade.
Por fim, dentre suas pesquisas, o senhor averiguou se o brasileiro, em linhas gerais, é ou não racista?
Sim, o povo branco brasileiro, em sua maior parte tem orgulho de ser racista. O racismo no Brasil é escancarado. Nosso pacto social ainda não se concretizo, enquanto nação que se pretende plural. Mais de 50% do povo brasileiro é negro. Ainda assim o racismo segue a violentar pessoas negras todos os dias. As leis contra o racismo precisam ser cumpridas, para isso o racismo precisa ser denunciado. Combater o racismo, a discriminação racial e preconceito é obrigação de todos nós. A luta antirracista é fundamental nesse processo, e importante dizer que não precisa se negro para se indignar com o racismo, o racismo destrói vidas, destrói o próprio racista que ao tentar desumanizar o outro se desumaniza.
- Um dos principais ativistas pela abolição da escravidão no país, Gama foi responsável pela libertação de pelo menos 500 escravos. Nascido em Salvador, em 1830, filho de uma escrava liberta com um descendente de portugueses, ele foi vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha apenas 10 anos. Mandado para São Paulo, Luiz Gama conseguiu sua alforria antes dos 18 anos e frequentou como ouvinte as aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que atualmente faz parte da USP, mesmo após ter sido proibido de realizar seus estudos na instituição. Além de ter utilizado seus conhecimentos jurídicos para, através da lei que extinguiu o tráfico negreiro, libertar gratuitamente pessoas escravizadas em várias províncias, Luiz Gama também foi poeta e escritor. Apenas 12 anos depois de ter aprendido a ler, ele publicou, em 1859, seu único livro, Primeiras Trovas Burlescas. Em 2023 foi instituído Prêmio Luiz Gama, que será concedido a cada dois anos a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado cujos trabalhos ou ações mereçam destaque especial nas áreas de promoção e de defesa dos direitos humanos no País. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania será responsável por conceder a premiação.
- Zumbi dos Palmares foi um dos líderes do maior quilombo que já existiu no Brasil: o Quilombo dos Palmares. Zumbi é enxergado por muitos, hoje, como um dos símbolos de resistência e luta dos africanos contra sua escravização no contexto do Brasil colonial. Foi morto no dia 20 de novembro de 1695, depois que seu esconderijo foi denunciado. No século XX, Zumbi tornou-se um grande símbolo de resistência em determinados grupos políticos. Essa apropriação de sua história fez com que o dia de sua morte fosse convertido no Dia da Consciência Negra.
- Nova geração aprende o Congado na comunidade dos Bernardos, em Santana do Tabuleiro, zona rural de Raul Soares (foto: arquivo DIÁRIO)
- “Na comunidade, a tradição do congado aparece como um dos elos que ligam os Bernardos ao seu território, além de ser um traço da cultura santanense; essas práticas locais são importantes para o fortalecimento e a pluralidade dos fazeres socioculturais de um país que se pretende democrático, onde todos os grupos se sintam representados”, explica professor Ronei (foto: arquivo DIÁRIO)
- Neste volume da coleção Feminismos Plurais, pela primeira vez, a relação entre racismo e humor é aprofundada. Por um ponto de vista jurídico, o advogado, doutor em Direito, Adilson Moreira esmiúça os conceitos de racismo e injúria racial, explicitando o viés racista da Justiça brasileira quando sentencia que produções culturais, como programas humorísticos, que reproduzem estereótipos raciais não são discriminatórias por promoverem a descontração das pessoas.
Ronei Carlos Lima possui mestrado em História pela Universidade de Brasília. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, pós-abolição, resistência quilombola no Brasil, especificamente Minas Gerais, no final do século XIX. Sua pesquisa e situa no campo da História Cultural e Social, com ênfase na História Oral