Eugênio Maria Gomes
Ao fazer minha leitura diária de alguns grandes jornais do País, me deparei com uma pequena reportagem em “O Globo”, do Rio de Janeiro. Nela, o repórter relata uma interessante passagem ocorrida numa cidade do interior norte-americano. Um garoto de sete ou oito anos lanchava com sua mãe, quando notou que, do lado de fora da loja, um morador de rua os observava.
Incomodado com a aparência faminta e suja do homem, o garoto iniciou uma bateria de perguntas à mãe, atitude típica de crianças desta idade: por que ele está sujo? Na casa dele não tem sabonete? Ele não almoçou? Onde é a casa dele? A mãe, constrangida, tanto pela quantidade de perguntas quanto pela própria natureza das mesmas tentou explicar, lá do seu jeito, que se tratava de um homeless, um sem teto, um mendigo, alguém que não tem casa, não tem emprego, não tem comida.
Como não tem comida? Como não tem casa? O menino parecia não entender a situação vivida por aquele homem. Após alguns minutos em silêncio, como que tentando assimilar o que tinha ouvido, o menino levantou-se, foi até o homem, e o convidou para entrar e sentar-se à mesa. Disse-lhe que ele poderia pedir um lanche, que sua mãe pagaria. O homem permaneceu por alguns minutos sem que nenhum atendente viesse colher seu pedido. O Menino então pegou o cardápio e, ao lhe entregar, disse: você pode escolher o que quiser. O homem escolheu um hambúrguer e um suco. Percebendo a simplicidade do pedido, o menino acrescentou: só isso? Não quer mesmo mais nada? Ao que o homem, sem graça, lhe respondeu: posso comer bacon?
A cena – continua a reportagem -, comoveu os presentes. Até porque o menino, antes de começar a lanchar ao lado do mendigo, lembrou: vamos fazer uma oração para agradecer o nosso alimento!
Talvez essa cena não seja tão rara e se repita muitas vezes, em outras condições. A Caridade, afinal, é uma virtude há muito reconhecida. Vemo-la muitas vezes, isoladamente, em atitudes como aquela acima retratada, ou mesmo em instituições diversas, espalhadas pelo mundo afora. Destaque, nesse quesito, para os “Médicos Sem Fronteiras” ou Médecins sans Frontières, uma organização internacional, não governamental e sem fins lucrativos, que oferece ajuda médica e humanitária a populações em situações de perigo.
Mas, o que me despertou maior interesse, na reportagem, não foi propriamente a ação caridosa do menino, mas sim, seu impulso em fazer alguma coisa, o que estava ao seu alcance diante daquela situação que aparentemente não compreendia. Fez o que podia naquele momento. Alimentou o homem. Isso, obviamente, não resolverá o problema dos sem teto, dos sem comida. A fome voltará. Mas, a atitude do menino demonstra, antes da Caridade, um impulso genuinamente digno de elogios. Ele se sentiu incomodado com a situação, e, assim, fez a diferença naquele momento, na vida do mendigo.
E nós? Será que fazemos a diferença na vida dos milhões de sem teto, sem comida, sem água? Falo não só daqueles que vemos ao nosso redor, mas, daqueles outros milhões que não vemos, e que segundo a ONU formam um contingente de 1,5 bilhão de pessoas, ou seja, quase um terço da humanidade…
Será que percebemos que, quando desperdiçamos comida, comprando alimentos em excesso e que vão para o lixo após as refeições, estamos contribuindo para que alimentos faltem em outras mesas?
Será que percebemos que quando cedemos à tentação do consumismo, comprando roupas desnecessárias, trocando de móveis sem necessidade, trocando de celular a cada seis meses, ou de carro a cada ano, estamos contribuindo para a perpetuação do atual estado de coisas, onde poucos têm muito, e muitos têm pouco, ou às vezes, quase nada?
Será que nos damos conta que somos partícipes ativos de uma tragédia socioambiental que, infelizmente, se aproxima?
Não raro, percebo nas conversas com amigos ou familiares, que há certa dificuldade de se fazer certas conexões entre o que somos, o que temos e a forma como atuamos na sociedade e o que são, tem e agem os outros que nos cercam.
Numa sociedade baseada no consumismo exasperado e na depredação ambiental – é o que se percebe hoje em dia -, o sistema só funciona se forem mantidas as diferenças de classe, ou seja: para que poucos tenham muito, muitos devem ter pouco! Os bens de consumo são finitos. Os recursos ambientais não renováveis são finitos. Logo, não os há para todos! Além disso, o próprio sistema pressupõe a acumulação de riqueza, e, consequentemente, a desigualdade social.
Se em um lugar se estraga comida, em outro ela faltará. Se em um lugar se desperdiça água, em outro ela faltará. Se cada um dos chineses tiver um carro, como o têm os americanos, não haverá aço suficiente, nem a atmosfera resistirá à poluição. Se cada um dos africanos comer um bife ao dia, não haverá boi que dê conta…
Nossa riqueza individual, ainda que seja fruto direto do nosso trabalho honesto e árduo, quando excede os limites do socialmente justo e razoável, e resvala para o consumismo e o desperdício, implica a pobreza do outro. Não há bens para todos.
Quando olhamos na gaveta e vemos dois, às vezes três aparelhos de telefone celular “encostados” porque compramos um mais “moderno”, temos que refletir e considerar que talvez estejamos a cometer, ingenuamente, um grave pecado social…
Precisamos perceber que os bens que nos cercam, em nossas casas se tornam “velhos” com uma rapidez absurda, não em virtude de seu desgaste natural, mas sim em virtude de uma obsolescência planejada, necessária para nos estimular a substituí-los rapidamente e, assim, deixar mantida a lógica consumista.
Não é o caso de abdicarmos do conforto moderno, pararmos de usar sabonete, nos desfazermos dos apetrechos tecnológicos que nos cercam e voltarmos às cavernas, como advogam alguns, mais radicais. Não é preciso tanto.
Basta que sejamos conscientes dos nossos atos. Basta que nossa atitude diante das inúmeras injustiças sociais que nos cercam vá além da indignação e da caridade isolada! Basta que percebamos que todos nós, humanos, estamos profundamente conectados, por obra de Deus ou da Natureza, e que a ação de um, inexoravelmente, interferirá na vida do outro!
Assim, talvez, um dia, embora em pouca quantidade – até porque não se trata de um produto muito bom para a saúde -, todos possamos, de vez em quando, comer bacon!
Eugênio Maria Gomes é escritor, Pró-reitor de Administração e professor do Centro Universitário de Caratinga.