*Eugênio Maria Gomes
Voltando do dentista, passei na casa da D. Miriam Mangelli para lhe mostrar o texto feito para a Alto – Academia de Letras de Teófilo Otoni -, intitulado “As raparigas de Seu Nô”. Fi-lo por conta de ela ser citada na crônica, em busca de seu aval para a sua participação na história. O texto foi aprovado através de uma boa gargalhada, seguida de um café e broa recheada com goiabada, preparados com esmero pela Beth, sua eficiente e simpática secretária. Ao final, ainda levei um pedaço da guloseima, além de uma vasilha com uma farofa muito especial, à base de PTS – Proteína Texturizada de Soja.
Assim que me pus a caminho da faculdade, mesmo antes de dobrar a esquina da Rua Raul Soares, encontrei-me com um casal amigo. Conversa vai, conversa vem, com os olhares dos dois, ávidos, sobre o meu pacote, percebi que estava prestes a ser questionado sobre o que transportava. Assim, antes que criassem coragem para perguntar o que continha o pacote e, quem sabe, até querer provar do seu conteúdo, despedi-me e segui em frente. A próxima parada seria na Caixa Econômica Federal.
Aproximei-me do caixa eletrônico e acondicionei o pacote no equipamento, para poder tirar a carteira do bolso e, na sequência, o cartão do banco. Como costuma acontecer com regularidade, naquele caixa não tinha disponibilidade de dinheiro. Passei ao caixa seguinte e, enquanto acionava o sistema, me lembrei do pacote, voltei o olhar para o caixa usado anteriormente e vi que um senhor estava utilizando o equipamento. Atrás de mim, uma senhora esperava a sua vez. Pedi que ela aguardasse um pouco só e, com todo cuidado para que o senhor não pensasse que eu estava observando a sua operação, toquei-lhe no ombro e perguntei-lhe se poderia pegar o meu pacote.
De posse do pacote retornei ao segundo caixa. Repeti a operação – após acondicionar o pacote no equipamento – e fui informado, mais uma vez que o caixa não tinha dinheiro disponível no momento. Dirigi-me ao terceiro caixa, mais ao fundo, quando consegui sacar o dinheiro. Já na portaria da agência, lembrei-me do pacote e voltei. Sim, lá estava ele, esperando por seu dono. De posse do pacote, deixei a agência bancária.
Caminhei pela praça e, ao passar pela porta da Catedral de São João Batista, aconteceu o que sempre acontece quando passo pela porta da igreja, ou seja, fiz o sinal da cruz e tentei seguir adiante. Sim, apenas tentei. Nessas ocasiões o anjinho da direita aumenta o tom e, praticamente, grita no meu ouvido: “Você não vai entrar? Não vai visitar o Santíssimo?”. Cumprindo o script, entrei e rezei. Na saída da igreja fui abordado por um mendigo, pedindo dinheiro para comprar comida. Não, eu não dou mais dinheiro nesses casos, pois sei que acabo contribuindo para a manutenção da mendicância. Mas, sempre que é possível, ofereço comida: na padaria – sempre tem pedinte na porta – compro um pão ou salgado e lhe ofereço; na porta do supermercado compro um gênero alimentício e, na rua, sempre encontro um bar ou lanchonete para comprar algo que lhe amenize a fome. Mas, na porta da igreja não tinha lugar algum para adquirir algo. Não, desta vez não seria possível ajudar.
Segui o meu itinerário, aguardei o semáforo da “esquina do Ribeiro” abrir, e atravessei a avenida. No outro lado, o anjinho da esquerda gritou: você com essa farofa PTS e um pedaço de broa à mão, deixará aquele homem com fome? Parei. Pensei. Voltei a caminhar em direção à faculdade. Não, minha farofa especial, não. Parei novamente e pensei: já comi muita broa lá, ele pode ficar com esse pedaço. Retornei à porta da igreja, mas o homem não estava mais lá.
Andei pela praça e, próximo ao coreto, lá estava ele, na mendicância. Aproximei-me dele e ele logo entendeu o que acontecia, pois abriu o sorriso e fixou o olhar no meu pacote. Disse-lhe que tinha um pedaço de broa, recheado com goiabada. Abri o embrulho, retirei a goiabada devidamente enrolada em um guardanapo de papel e lhe ofereci. Ele, sem qualquer cerimônia, me perguntou: “aqui, eu não gosto de broa não. Mas, aceito a farofa…”.
Sinceramente, demorei muito a lhe responder. Quem tem fome, não fica escolhendo o que comer… Lembrei-me que não gosto e não como arroz e, certamente, mesmo que tivesse muita fome, provavelmente não conseguiria ingeri-lo, o que levou-me a entender, um pouco, a reação do mendigo. Porém, imediatamente após o meu entendimento, os tais anjinhos sussurraram em meus ouvidos: “esse cara é folgado demais. Siga o seu caminho e deixe-o se virar”. Antes de qualquer esforço de minha parte em atendê-los, cheguei à conclusão de que aquelas falas não poderiam ser dos anjinhos, mas dos “anjinhos” que costumam substituí-los quando saem para atender o chamado do Senhor.
Ofereci-lhe o recipiente com a farofa – sem fazer aquela “cara de feliz” que costumamos fazer quando ajudamos alguém – e observei a avidez do pedinte em enfiar a mão na farofa e me agradecer, com a boca cheia de proteína texturizada de soja: “Muito boa essa farofa. Obrigado”.
Agora, cá estou a escrever este acontecimento, com a boca cheia d’água, lembrando da farofa que não apreciei e confortado por um dos ensinamentos de Santo Agostinho: “Nas coisas necessárias, a unidade; nas duvidosas, a liberdade; e em todas a caridade”. D. Miriam há de fazer essa caridade e me preparar outra farofa…
* Eugênio Maria Gomes é professor e funcionário do Centro Universitário de Caratinga. É membro da Academia Caratinguense de Letras, do Lions Clube Caratinga Itaúna e da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga. É presidente do MAC – Movimento Amigos de Caratinga.