* Thelma Regina Alexandre Sales
Arrieiros somos, na estrada andemos, e algum dia nos encontraremos”. Provérbio Português (http://quemdisse.com.br).
Até que ponto é saudável curtir a perda? Quanto tempo deve durar o luto?
O luto é uma travessia dolorosa, por isso deve ser cuidado desde o início, quando ainda representa um processo natural. Essa travessia demanda grande desafio pessoal, pois elaborar perdas significa alimentar resiliência. O luto possui uma exigência intrínseca: cobra ser sofrido, atravessado e, por fim, superado positivamente. Faz-se o luto adequado quando se consegue retomar o processo normal da vida em tempo fisiológico.
Segundo Kübler-Ross há passos para a vivência e superação das perdas. O primeiro é a recusa: face ao fato, a pessoa, naturalmente, exclama: “isso não aconteceu”; “não pode ser”. O segundo passo é a raiva expressa: “por que comigo? Não é justo”. Nesse momento a pessoa se percebe diante dos limites incontroláveis da vida e reluta em admiti-los. Não raro, se culpa por ter feito ou por ter deixado de fazer algo para que aquele evento não acontecesse. O terceiro é marcado pelo vazio existencial, quando o indivíduo fecha-se em seu próprio casulo, se apieda de si mesmo e resiste a se refazer. Aqui todo abraço caloroso e toda palavra de consolação resulta em nada. Tudo está vazio. O quarto passo é de fortalecimento, “negociação” inconsciente com a dor da perda: “não posso sucumbir”; “preciso aguentar”; “tenho outros motivos para viver”; “sou útil a outras pessoas”; “se eu desfalecer, quantos fracassarão”?; “preciso ser forte”; “preciso erguer a cabeça”. O quinto é a aceitação resignada do fato incontornável. Enfim, admite-se a ferida e sua cicatriz. Aqui, a morte (a perda) foi consumada. Essa é a dimensão natural do luto que sempre acrescenta algo à nossa existência. Ninguém sai do luto da mesma forma como entrou.
Quando a saudade se transforma em doença
Quando a perda toma dimensão a ponto de comprometer o cotidiano, nos encontramos diante de um luto que se tornou patológico. Há um bloqueio, mais que uma ruptura. A razão nega a realidade e todas as atitudes levam a permanência do objeto perdido.
Nesse caso, o luto que se tornou patológico tem a ver com o objeto perdido, mas também com a própria fragilidade. Quando se diz: “Eu não posso viver sem”, demonstra-se fragilidade frente à aceitação de que cada vida tem que se justificar por si mesma. Essa dor que não quer deixar a pessoa representa não só a “vivificação” do objeto perdido, mas a perda de parte da pessoa. Significa que o evento resultou também na morte de algo que precisa ser ressuscitado. Há casos, onde profundos estados depressivos se instalam como motivação para impedir o recomeço. Inconscientemente, é como não sentir mais a dor significasse não mais sentir amor (afeto). A dor insuportavelmente persistente, a somatização, as ideias sobrevaloradas acerca da perda podem significar ainda a resistência em “enterrar” e em admitir aquilo que acabou. Também pode significar oposição à liberdade, ou mesmo culpa: quantos se condenam por comentários sobre sua recuperação rápida? Tudo isso é patológico.
De que forma é possível ajudar pessoas que lidam patologicamente com suas perdas?
Fazendo-lhes apelo à realidade e as provocando a viver intensamente sua dor. É necessário que a pessoa chore tudo o que tem que chorar. Elaborar cada etapa de superação das perdas. Este é o momento para se colocar em julgamento o próprio destino.
Por que se tem a impressão de que as coisas prazerosas são passageiras? Porque são curtidas com toda a emoção possível. Já a dor, é algo que se quer manter distante. E adiar a dor é adiar sua superação. Meu conterrâneo psiquiatra interpreta essa vivência exemplificando o falecimento de Tancredo Neves, primeiro presidente civil eleito após décadas de ditadura no Brasil, “sinônimo de esperança e confiança”.
Em curto espaço de tempo toda a expectativa de uma nação que depositava seus anseios em Tancredo (e por ele construiu demanda afetiva) tornou-se finitude, frustração e luto. Antes do desfecho, o Brasil esteve envolvido por mais de 40 dias com doença, cirurgias, boletins médicos, fotos e fatos de sua história. Acompanhou a impressionante forma de gratidão da família que, em cortejo, visitou várias capitais do País até chegar a Minas Gerais. Quem não se recorda de “Mão de Onça”, o coveiro, que com sua colher de pedreiro dedicou-se, por intermináveis 27 minutos, ao fechamento cuidadoso do jazigo, como quem também estivesse a processar seu luto?. Ninguém mais falou daquele episódio. É porque o Brasil é de um povo sem memória? Não. Foi porque o fato foi vivido com intensidade. Houve verdadeiramente um luto. E este luto foi concluído. “O luto tem tempo, intensidade e valor”.
Fato que dificulta a elaboração do luto é oferecer/impor tranquilizantes a quem sofre a perda. É comum que o quadro fique apagado para a pessoa, que sem a escolha da dor inicial, termina por sentir-se frustrada e revoltada por não guardar recordações do momento. Passados alguns dias sobrevém o vazio, lacuna irreparável. É indiscutível que tranquilizantes tenham seu lugar. Talvez, quando a saúde esteja comprometida, mesmo assim, em doses não sedativas. De forma semelhante, crianças – por vezes – são impedidas de presenciarem funerais ou outros eventos “traumáticos”, sob o receio de se tornarem adultos vulneráveis. Não é prejudicial educar a criança para a existência da morte como parte do ciclo da vida. Ao contrário do que se pensa quanto mais precoce a criança aprende que a vida termina com a morte, maior resiliência terá com todas as suas outras perdas.
Não há fórmula mágica para lidar bem com perdas. É com muito esforço, dia após dia. Quem sente as dificuldades dessa empreitada clama por ajuda: terapia, psiquiatria, ajuda espiritual, apoio de pessoas queridas, mas qualquer ajuda só é bem-vinda se não interferir no curso da vida. Penso que o que pode curar as dores é a possibilidade de amar e acreditar. Recordo uma frase de Leonardo Boff: “Há sempre um sentido de Deus em todos os eventos humanos: importa descobri-lo…” “… Somente na fé e no amor o suspeitamos”.
Vivemos para servir a vida e não o contrário. Por isso, admito crer que a frustração tem um sexto passo: o aprendizado, que nos deixa mais experientes, fortes e resilientes.
Dedico este artigo as pessoas que atravessam minha estrada, me oportunizam conhecer suas “admiráveis” histórias de vida, me instigam à resiliência e me insultam a permanecer cantando:
“Ando devagar, porque já tive pressa, levo esse sorriso porque já chorei demais!. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe!!!. Só levo a certeza de que muito pouco eu SOU*, eu nada SOU*. É preciso amor para poder pulsar, é preciso paz para poder sorrir, é preciso a chuva para florir. Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente. Como um velho boiadeiro… eu vou tocando os dias pela longa estrada. “Estrada eu sou”. Cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz. Todo mundo ama um dia, todo mundo chora, um dia a gente chega, no outro vai embora…. (Renato Teixeira).
* permita-me Renato Teixeira: alterar o verbo saber pelo verbo ser.
Em minha opinião Renato Teixeira, ao escrever essa canção, definiu com tamanha exatidão a lei da entropia.
* Thelma Regina Alexandre Sales, Graduada em Medicina pelo Centro Universitário de Caratinga é Nutricionista – Especialista em Terapia Nutricional/SBNPE – Especialista em Nutrição Clínica/UECE – Especialista em Saúde Pública/UNESCO – MBA – Gestão de Negócios/UNEC – Mestre em Meio Ambiente, Saúde e Sustentabilidade/UNEC – Professora do Centro Universitário de Caratinga. É Multiplicadora do Projeto de Aleitamento Materno do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. Possui Título de Especialista em Terapia Nutricional Parenteral e Enteral pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (SBNPE). Presidente da Equipe Multidisciplinar de Nutrição Parenteral e Enteral do Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, Caratinga, MG. Atualmente, trabalha na área de Saúde da Família, Urgência e Reabilitação Médica
Mais informações sobre a autora: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4796253T6