* Prof. Dr. Marco Antonio Gomes
Conta-se que outrora numa Pátria muito amada, em que a crise implodia, a propina se revelava, o petrolão acontecia, dois jogadores de xadrez jogavam seu jogo continuo.
A sombra ampla de uma árvore fitavam o tabuleiro antigo, e ao lado de cada um, esperando seus momentos mais folgados, quando havia movido á pedra, e agora esperava o adversário, um púcaro com vinho refrescava sobriamente a sua sede.
Escassos eram os leitos, grandes filas se formavam nos corredores dos hospitais, violadas, as mulheres eram postos contra os muros caídos, humilhados eram os idosos, as crianças eram sangue nas ruas. Mas onde estavam, perto da cidade, e longe do seu ruído, os jogadores de xadrez jogavam.
Quando o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso dos irmãos e das mães e das crianças? Quando a torre não cobre a retirada da rainha branca, o sangue pouco importa.
Caiam as barragens, sofram povos, cesse a liberdade e percam as moradias, os haveres tranquilos e ávidos ardem e que arranquem, mas quando a guerra os jogadores interrompam, esteja o rei sem xeque, e o de marfim peão mais avançado pronto a comprar a torre.
Meus caros, aprendamos a historia dos calmos jogadores de xadrez como passar a vida. Tudo que é vivo pouco importa, o grave pouco pese; o natural impulso dos instintos que ceda ao inútil gozo. O que levamos desta vida inútil, tanto vale se é a glória, a fama, o amor, a ciência, a vida, como se fosse apenas a memória de um jogo bem jogado.
A glória pesa como um fardo rico, a fama como a febre, o amor cansa, porque é a sério e busca; a ciência nunca encontra, a vida passa e dói porque o conhece.
Ah! Sob as sombras que sem querer nos amam, com um púcaro de vinho ao lado, atentos só a inútil forma do jogo de xadrez mesmo que o jogo seja apenas sonho e não haja parceiros.
E enquanto lá fora, perto ou longe, a lava jato, a propina e a pátria, e a vida chama por nós, deixemos que em vão nos chamem?
Ouvi contar que outrora, quando a Pátria amada tinha não sei qual Presidente, quando as crianças morriam de fome nas ruas e outras tantas se prostituíam, sob o olhar de políticos suspeitos, dois jogadores de xadrez jogavam seu jogo.
(Texto adaptado do poema de Fernando Pessoa)
Marco Antônio Gomes é Professor Doutor em Psicologia pela USF. Coordenador e professor do curso de Psicologia do Centro Universitário de Caratinga – Unec.