Ação marcou a Luta Antimanicomial, condenando recente nota técnica do Ministério da Saúde, que sugere internação em hospitais psiquiátricos e financiamento para máquina de eletrochoques
CARATINGA- Em fevereiro de 2019, o governo federal elaborou documento que trazia uma nova política de atendimento à saúde mental no Brasil. Entre alguns pontos, prevê a internação em hospitais psiquiátricos e o financiamento para compra de máquina de eletrochoques. A “nota técnica” chegou a ser divulgada no site do Ministério da Saúde, mas, criticado por especialistas, o texto foi retirado do ar dois dias depois.
Este projeto foi o ponto central das ações da Semana da Luta Antimanicomial em Caratinga, celebrado entre os dias 13 e 17 de maio. Palestras, discussões e capacitações marcaram o evento na cidade. O encerramento ocorreu durante a manhã de ontem, com uma passeata saindo do CAPS AD, situado à Rua Major Etienne Arreguy, 36, com ponto de chegada na Praça da Conceição. Os cartazes, panfletos e encenações chamaram atenção da população.
De acordo com a secretária de Saúde, Jacqueline dos Santos, as medidas anunciadas representam um regresso frente às conquistas na assistência a estes pacientes. “A semana inteira trabalhando tecnicamente a conscientização, profissionais tanto da atenção básica, bem como da atenção secundária também com os pacientes, foi bem dinâmica. Hoje (ontem) culminamos nessa apresentação na rua para chamar atenção das pessoas para a importância dessa luta. Estamos lutando contra um retrocesso, o objetivo do retorno dos manicômios é fazer com que os nossos pacientes, os usuários dos serviços de saúde mental se mantenham enjaulados, literalmente presos, tratados de forma totalmente indigna e desumana. Era isso que víamos nos manicômios no passado”.
A ressocialização e inserção dessas pessoas na família e na sociedade é a bandeira defendida pelos participantes da passeata. “Quando falamos de sociedade, falamos num todo, igreja, serviços; para que eles sejam de fato livres e compreendidos na limitação que eles têm. Aquilo que chamamos de loucura, devemos tratar como pessoas que merecem nosso respeito e atenção. Mais do que isso, precisam ser ressocializadas, principalmente no âmbito familiar. Daí nossa luta e manifestação contra o retorno dos manicômios, pregamos a liberdade”.
Jacqueline frisa que trancar não é tratar. “Os serviços psicossociais hoje trabalham o tratamento. Chamamos o público, acredito que famílias, pessoas, usuários estão vendo essa manifestação e queremos que mais pessoas lutem conosco, para que os pacientes sejam ressocializados e não trancados”.
O município tem reestruturado os equipamentos de atenção aos pacientes que possuem transtornos relacionados à saúde mental. Conforme a secretária de Saúde, o objetivo é fortalecer as ações desenvolvidas para este público. “Nós estamos em um processo de formatação do serviço. Completando equipe, estávamos com um serviço faltando alguns profissionais, a administração já trabalhou nesta questão, de forma que a atenção seja redobrada. Os serviços estão abertos para a família, à população em geral, para a rede assistencial. E quando falo de rede, trazemos outras secretarias junto conosco também. Um fluxo já foi elaborado, o serviço está sendo efetivado na prática e para isso precisamos da rede em funcionamento, estamos trabalhando capacitação de pessoas novas que estão chegando e reciclando aqueles que já estão no serviço também”.
DIAGNÓSTICO SITUACIONAL
Ridley Vasconcelos, psicólogo e coordenador municipal de saúde mental, afirma que a Semana da Luta Antimanicomial foi bastante produtiva em Caratinga, tratando os principais desafios da política de atendimento à saúde. “O balanço é completamente positivo, na medida em que conseguimos atingir o público que queríamos. Vimos o comércio parando, as pessoas na porta recebendo informações através dos folders. Acredito que tenha sido uma semana em que as pessoas a passaram a pensar um pouco mais sobre a loucura e principalmente entender que é parte da sociedade. Ela vem da sociedade e é para a sociedade que ela tem que voltar. Precisamos entender isso e saber tratar com mais carinho, atenção, humanismo e dignidade o sujeito que tem transtorno mental, a dita loucura e dizer não aos manicômios”.
Na programação, Caratinga recebeu a referência técnica da Gerência Regional de Saúde de Coronel Fabriciano, Evelange Alves. Ridley enfatiza que os debates foram construtivos. “As informações foram repassadas principalmente para a Estratégia de Saúde da Família, que é a porta de entrada para o serviço da saúde mental, a RAPS. Temos três CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), a Secretaria de Saúde pretende melhorar isso e nosso grande sonho é transformar um desses CAPS em 24 horas, para que não tenhamos dificuldade de conseguir leito, que falta nos hospitais, não temos leitos psiquiátricos no município”.
O psicólogo frisou alguns obstáculos que dificultam uma política eficiente voltada a estes pacientes e também criticou a viabilidade da nota técnica do Ministério da Saúde. “A maior parte dos pacientes são de famílias muito desestruturadas, tanto no álcool e drogas como na saúde mental. Aqueles que têm condição de fazer tratamentos caros, inclusive está sendo muito colocado eletroconvulsoterapia como a solução de todos os problemas pelo Governo Federal, que eles querem voltar juntamente com os manicômios. Mas, não existe estrutura SUS para fazer isso, a quem será destinado eletroconvulsoterapia? Aos ricos que já conseguem tratar bem os pacientes, agora a população que está no serviço público de saúde não será atingida. Se coloca esse instrumento para o tratamento dentro dos CAPS, nós não temos profissionais habilitados para atuar com ele. Precisamos ter muito cuidado com o pretendemos fazer com isso”.
Ridley ainda chama atenção para a população em situação de rua, que na maior parte dos casos possui transtorno mental, algum transtorno já instalado ou em decorrência do uso de álcool e drogas. “E esse sujeito que está na rua passa a incomodar a sociedade, aí ela cobra e temos que nos virar para conseguir uma coisa que o Estado não oferece e o município não tem condição, que é internar esse paciente. Temos hoje a referência apenas seis leitos para o estado inteiro de Minas Gerais, imagina a dificuldade que é conseguir uma vaga. Necessitamos de unir enquanto sociedade para cobrar isso de lá, para que consigamos colocar os serviços aqui”.
Segundo a Gerência Regional de Saúde, Caratinga é uma das cidades mais avançadas do ponto de vista de saúde mental, como destaca Ridley. “Temos três serviços. Ipatinga, por exemplo, não tem CAPS. Coronel Fabriciano tem um CAPS 2, não tem AD. Então, estamos muito adiante, mas ainda temos muito que melhorar e tem recebido esse apoio da prefeitura, da secretária de Saúde, isso tem sido maravilhoso. Já avançou muito e a ideia é avançar ainda mais”.
ASADOM
Associação de Amparo aos Doentes Mentais São João Batista (Asadom) acolhe portadores de transtornos mentais desde 1983. A instituição fez questão de participar da ação de ontem, segundo Silvânia Chaves Dutra, assistente social. “Para nós enquanto entidade é muito importante participar de um momento desse, porque muitos descriminam as pessoas que são como nossos assistidos, que têm o seu problema mental instalado, que são julgados pela sociedade de uma forma diferente e por esse motivo não conseguem os seus direitos e suas obrigações. É importante conscientizar a todos a darem uma chance a essas pessoas, trata-las de uma maneira digna, para ter os seus direitos garantidos por lei”.
São acolhidos na Asadom 60 assistidos de ambos os sexos. Apesar do relevante trabalho prestado, Silvânia lamenta que o olhar da sociedade ainda é marcado pelo preconceito. “Fazemos assistência num todo, familiar, jurídica, a questão do INSS, saúde e hoje tenho que agradecer ao CAPS e ao Dr. Welington pela assistência que têm dado à Asadom. Às vezes saímos na rua de braço dado com um deles, de mão dada, as pessoas nos olham de uma forma diferente: ‘Aquela pessoa é louca porque está andando com um louco’. Eu escuto muito isso e falo uma coisa, loucos são aqueles que não sabem conviver com esse tipo de pessoa. Não pense que não acontece com você, só um exemplo, temos uma professora de Letras, que hoje é assistida pela Asadom. Somos olhados e tratados por algumas pessoas de uma forma diferente, mas ainda existem muitas boas que ajudam e nos acolhem”, finaliza.