Caratinguense Anna Rita apresenta ‘Projeto Tubmanbra’, blog que traz artigos de reflexão sobre o racismo. Ela ainda fala sobre a luta pela igualdade racial
CARATINGA- “O objetivo do meu blog é não só denunciar o racismo institucionalizado e estruturado culturalmente, mas também apresentar e poder trocar conhecimento sobre um povo que faz parte da diáspora; e sua atuação em todos os lugares colaborando assim com a identidade racial dos meus leitores e a minha própria”. Essas palavras são da caratinguense Anna Rita Soares Silva, 18 anos, idealizadora do Projeto Tubmanbra.
Anna Rita faz questão de se posicionar sobre assuntos muitas vezes considerados polêmicos. Por exemplo, sobre o caso envolvendo o jornalista William Waack que em um vídeo que circula na internet desde 8 de novembro de 2017, foi flagrado fazendo ofensas racistas. No artigo ‘Se reafirmar não é se desculpar, avisem William Waack’, ela deu sua opinião sobre as justificativas do apresentador. “Quando você faz uma ‘brincadeira racista’ você é racista, sendo um dos melhores jornalistas do Brasil ou sendo o PM que perguntou o que o meu parceiro chiclete de piste estava fazendo na rua naquela hora comendo um lanche. Sendo o presidente da república ou sendo o segurança do shopping que indagou a presença de pretos favelados em determinada loja. Casos registrados, porque se fomos contar os que não são, vou escrever o maior artigo do site. Não estamos discutindo a qualidade profissional de ninguém. Estamos discutindo discriminação”.
Em entrevista ao DIÁRIO DE CARATINGA Anna Rita apresenta a proposta do blog que traz reflexões sobre o racismo. Ela também fala sobre o desemprego que afeta a população preta, racismo na publicidade; além dos avanços e retrocessos na luta pela igualdade racial.
Para conhecer os textos da jovem, basta acessar o site www.tubmanbra.com.
O que significa o nome Tubmanbra?
Tubmanbra é um nome criado por mim que aponta o ‘casamento’ dos assuntos abordados no meu site: www.tubmanbra.com. Harriet Tubman foi uma ex-escrava abolicionista responsável pela libertação de mais de 800 escravos e a primeira mulher a liderar uma revolta armada durante a Guerra Civil americana. Inspirada pela história dela eu resolvi juntar seu sobrenome e a abreviação de Brasil, condensando informações a respeito dos problemas relacionados à luta de Harriet, que são sustentados em nosso país até hoje.
Fale sobre a ideia de criar um blog com esta temática e qual o objetivo.
A falta de representatividade preta na mídia me impulsionou a conversar a respeito disso e de outros assuntos que cercam o racismo dentro do Brasil. Desde que fui apresentada a essa indústria (processo que vem acontecendo cada vez mais cedo com jovens e crianças) encontrei muita dificuldade em achar pessoas com a cor da minha pele e com os meus traços que tivessem espaços e papéis importantes dentro de novelas, programações e roteiros cinematográficos (que não fossem traficantes ou domésticas), e até recentemente em plataformas digitais como o Youtube. Hoje esse quadro tem mudado graças à resistência de uma comunidade ciente da importância da exploração de uma história tão rica, que nas escolas é abordada só pós-colonização. O objetivo do meu blog é não só denunciar o racismo institucionalizado e estruturado culturalmente, mas também apresentar e poder trocar conhecimento sobre um povo que faz parte da diáspora e sua atuação em todos os lugares colaborando assim com a identidade racial dos meus leitores e a minha própria.
Como é falar sobre discriminação e racismo abertamente na internet, onde as opiniões são diversas?
Tem sido desafiador, porém fascinante poder me posicionar e conhecer mais realidades, me envolver e estudar baseado na perspectiva de outras pessoas. A liberdade que a internet te oferece para expor uma opinião pode ser maravilhosa e destrutiva ao mesmo tempo, e apesar dela me permitir mostrar meus artigos, ela também permite que fatos historicamente comprovados, sejam revistos, como acontece na discussão se há ou não racismo ainda hoje no país. O meu foco vai ser a toda hora alcançar pessoas que precisam constantemente enaltecer e alimentar sua autoestima intelectual que sempre foi subestimada, com artigos que também atingem uma classe que não enfrenta isso, mas que com leitura e debate conseguem reconhecer o seu lugar de escuta colaborando com o combate contra o racismo que enfrentamos diariamente.
A internet se tornou um campo aberto para debates e muitas vezes ofensas. O que favorece o racismo na web?
A própria web. Quando si é oferecido uma plataforma completamente aberta e que de várias maneiras permite que pessoas racistas sejam anônimas e se escondam atrás do seu preconceito, isso acaba facilitando pra que elas possam se sustentar e gastar seu tempo de qualidade insultando, diminuindo ou defendendo opiniões de cunho racista na internet. Mas é válido lembrar que atitudes como essa são geradas a partir de um racismo já infiltrado no ambiente dessas pessoas, dentro do seu trabalho, da sua casa, no seu dia a dia e nas suas relações diárias. Racismo na web deve ser exposto e denunciado, para que racistas devam responder por processos de injuria racial. Mas pra que ele acabe de fato, crianças devem ser educadas para substituírem a sociedade racista por uma sociedade tolerante e respeitosa.
Em casos famosos como os ataques racistas contra a atriz Thais Araújo, alguns dos agressores também são pretos. Como explicar que alguns ‘oprimidos’ se comportem como ‘opressores’?
Quando a gente fala de racismo a gente está falando de um sistema de opressão, onde o xingamento e a ofensa são só a ponta do iceberg. O reflexo de uma estrutura de poder onde o objetivo é a desumanização da pessoa negra que vem desde a colonização, onde pessoas negras não eram consideradas pessoas e sim mercadoria. O que acontece quando negros se comportam como opressores, é a reprodução de um costume inserido na sociedade que eles também fazem parte. Não existe relação de poder de um preto com outro preto. Exemplo, quando um pai ou uma mãe ambos negros dizem que o cabelo da sua filha é ruim, aquele comentário não é benéfico para nenhum dos dois, pelo contrário, de certa forma esse insulto já foi ou será dirigido a ele (a) um dia, porque eles também são atingidos pelo racismo diariamente e a falta de informação faz com que eles reproduzam isso dificultando o diálogo em torno do problema.
O termo “empoderamento feminino” tem ganhado força nos últimos anos. Como essa bandeira tem sido levada no Brasil atualmente?
Eu não defendo ou faço parte do feminismo hegemônico responsável pela criação desse termo, porque eu sou preta e ele não me representa. A minha vertente interseccional vê o movimento feminista dentro de um contexto, pra pensar principalmente a mulher negra e não uma hierarquia de opressões como é bastante falado. Nátaly Nery, youtuber negra, costuma dizer que o feminismo negro se constrói a partir da relação com o outro, então pra existir um feminismo negro é preciso que exista um feminismo branco, e não é ofensa dizer isso. A primeira onda do feminismo da década de 70 é toda pautada do direito ao voto da mulher branca de classe média-alta, trabalhadoras e operárias. Mas enquanto essas mulheres saíam de casa para realizar seus manifestos a favor do trabalho e a sua liberdade sexual, as mulheres pretas estavam em casa cuidando dos filhos delas, então elas já trabalham há muito tempo. Não é válido pensar numa única mulher homogênea quando se trata de sociedade, por isso esse termo não ratifica a minha luta. Mulheres pretas são empoderadas, chefes em mais de 60% das famílias periféricas, mães solteiras e independentes desde sempre, não porque escolheram resistir dentro de um movimento, mas porque a sociedade designou esse papel a elas desde a abolição escravista, desde o início do genocídio negro na periferia, e por outros milhares de fatores sociais. Empoderar e enaltecer a figura da mulher dentro da minha realidade significam não só dar voz a ela, mas permitir que ela se entenda enquanto negra e possa se fortalecer com base nisso. É exatamente essa a função da Tubmanbra.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) revelou que dos 13 milhões de brasileiros desempregados no terceiro trimestre deste ano, 8,3 milhões (63,7%) eram pretos ou pardos. O que impulsiona esse número tão expressivo?
O Estado. Mais de 87% da população periférica que depende de pelo menos um salário mínimo é negra. Porque a maioria dos pobres são negros. O Estado não está interessado em fazer com que essas pessoas adquiram educação econômica, porque isso não o beneficiaria. O mercado de trabalho é muito menos acessível pra essa comunidade e quando ele se expande, ele chega até ela de forma exploradora, porque a base educacional dela é inferior. É como uma bola de neve que a cada dia fica maior e só existe porque antes de tudo, não viemos pra cá como cidadãos, não tínhamos direitos trabalhistas, não tínhamos salário, e mesmo assim movimentávamos a economia brasileira que surgiu dentro do sistema escravocrata, em cima de leis que sempre fizeram de tudo pra nos manter nessa posição, e quando isso se tornou inconstitucional os negros foram jogados para as margens, e a escravidão foi reformulada. O Estado é o principal responsável pela miséria, o genocídio, o desemprego, a sobrevivência do tráfico, e as condições de vida das comunidades pretas e latinas não só no Brasil, como na América do Sul e nos Estados Unidos. O conhecimento é a arma fundamental que podemos oferecer através de estudo e pesquisa pra que esse quadro seja revertido e pretos possam estar sempre empregados, possibilitando que crianças frequentem a escola e que a criminalidade diminua.
Em outubro do ano passado, a Dove foi acusada de racismo ao divulgar imagens de uma campanha no Facebook. Nas fotos, a marca mostra uma mulher preta que tira sua camiseta e se “revela” branca ao usar um dos seus sabonetes. Outras marcas já tiveram episódios semelhantes e foram acusadas de racismo. Qual o limite da arte? Existe censura?
Empresas como a Devassa, a Riachuelo, também expuseram artes racistas que diminuíam e/ou hipersexualizaram pretos em suas propagandas e a tolerância em relação a casos como esse devem ser zero. Não podemos dar liberdade audiovisual ou linguística para atitudes de cunho racista, e censurar esses trabalhos pra que eles não possam atingir essas massas e fortalecer a cultura da discriminação, é essencial. O que existe é uma mobilização e a denúncia não de uma sociedade sensibilizada, mas de pessoas instruídas em prol da humanização de um ser humano. Parece pleonasmo, mas casos como o da H&M que classificaram uma criança negra como macaco através de um moletom, só puderam ser percebidos, barrados e denunciados porque as pessoas começaram finalmente a problematizar atitudes semelhantes e melhorar a forma como crianças negras recebem e se veem representadas nos grandes veículos de informação.
Recentemente, foram divulgados casos de cotistas suspeitos de fraude nas universidades. O que dificulta a discussão sobre as cotas e as possíveis fraudes?
O sistema de cota ajudou e ajuda muita gente que sem isso não conseguiria ingressar em uma universidade. Apesar de muitos se esquecerem desse detalhe em uma discussão, as cotas raciais estão inseridas nas cotas sociais, ou seja, 50% das vagas nas universidades públicas vão para quem estudou em escola pública e as cotas raciais fazem parte da porcentagem. Então se você não teve o privilégio de um ensino particular, você já está inserida nela de qualquer jeito. As fraudes envolvem falsidade ideológica e subornos a chefes de comunidades quilombolas, crimes que dão uma sentença de 1 a 5 anos, e 2 a 12 anos respectivamente, mas o recurso mais utilizado eu diria que é a afro-conveniência, porque para ser considerado pelo sistema cotista, negro, pardo ou indígena basta você declarar que é. E essas fraudes são cometidas inclusive por muitos estudantes que se diziam contra cotas. O produto de atos corrompidos dificulta tanto a aprovação popular delas, como a permanência do assunto em pautas discutidas. A afro-conveniência acusa pessoas que nunca sofreram racismo, mas quando se veem frente a uma estrutura que favorece, mudam a sua etnia e se tornam repentinamente amantes da raça. Os alunos cotistas entendem a necessidade de cotas para beneficiar gente que como eles precisam preencher a defasagem educacional dessa comunidade que ocupa escolas públicas e é dependente dos serviços oferecidos por essas instituições e acabam pertencendo a um lugar de desvantagem em relação à formação.
Em anos de luta, o que você aponta como avanços e retrocessos na luta pela igualdade racial?
Pra mim avanço é poder estar viva pra ver produções milionárias, como o filme Pantera Negra com o seu elenco majoritariamente preto, ganhar espaços de reconhecimento e ser um dos lançamentos mais esperados do ano de 2018. É ter a possibilidade de ver amigos negros graduados e em profissões requisitadas e está projetando minha caminhada rumo à faculdade, uma utopia para as muitas pessoas pretas. E por último e não menos importante, é presenciar e viver todos os dias ao lado do maior exemplo de ascensão preta que eu conheço. O meu pai, um desvio da estatística, um profissional respeitado, que trabalha toda hora se esforçando bastante pela sua melhora e pela evolução na área dele enxergando inclusive, o esporte como uma ferramenta social responsável por acolher muitas crianças e jovens que hoje poderiam estar mortos ou presos. E quanto ao retrocesso, é saber que mesmo depois de todos esses exemplos que eu citei, crianças ainda sejam vítimas em suas escolas pela textura do seu cabelo e a cor da sua pele, como eu fui. Tem seus cabelos raspados e sua dignidade tirada, como foi o caso da Denise. Saber que esse mesmo filme tão esperado, também enfrenta ameaça de grupos racistas na internet. Ver que a porcentagem de negros que finalizam seus cursos não passa de 9% e ter a noção que no século XXI homens e mulheres como eu ainda precisem se posicionar a respeito de suas raças e denunciarem a constante discriminação sofrida por mais da metade da população brasileira negra, negríssima, preservando nossos espaços conquistados, porém nunca consentidos.