José do Carmo Veiga de Oliveira
Ao longo dos últimos tempos tenho resistido à vontade de me posicionar em relação a algumas decisões que vêm sendo proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, e que têm surpreendido o ambiente jurídico de nosso País no âmbito de sua atuação na entrega da prestação jurisdicional. São decisões polêmicas, pautadas em entendimentos que, em face do seu conhecido modo de julgar, ao que se denominou de “ativismo judicial”, tem proporcionado a alteração naquela que deveria ser a sua posição de “legislador negativo” e não de “legislador positivo”.
Explica-se: o Supremo Tribunal Federal constitui-se de uma Corte Constitucional que tem como competência precípua a missão maior de “guardião da Constituição da República, de 1988”. Isso significa que toda matéria que, em tese, conflite com o texto constitucional, deve ser submetida à sua apreciação e, se entender que de fato restou configurado o conflito, compete-lhe receber o recurso extraordinário, fazer processá-lo e julgá-lo como de direito. De outro ângulo, todas as leis, no dizer do inesquecível Hans Kelsen, devem estar em conformidade com a Lei Maior, de modo que também se encontra sob a sua regência a análise de tais matérias. Ademais disso, tudo quanto disser respeito à tutela constitucional das liberdades individuais e, especificamente, dos Direitos Fundamentais, isso, também, está sob a sua competência, tais como as medidas de habeas corpus, habeas data, mandados de segurança contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara e Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal, além, é claro, das ações diretas de inconstitucionalidades e as declaratórias de constitucionalidade, omissão, dentre outras competências, à luz do que edita o artigo 102, incisos e alíneas, da CR/1988.
No entanto, o que se tem visto é que, em algumas dessas matérias que deveriam ser apreciadas em sede de projetos de lei, de iniciativa ou da Presidência da República, ou das Câmaras Alta e Baixa – Senado e Câmara dos Deputados, respectivamente – têm sido decididas pela Alta Corte Brasileira, em face desse fenômeno conhecido como “ativismo judicial”, o que deixa a comunidade jurídica em sobressalto, já que essas decisões conflitam com o princípio da reserva de lei formal, ou seja, somente poderiam ter início mediante projetos de lei ou de Propostas de Emendas Constitucionais.
É possível que alguém discorde destas ponderações que estão sendo escritas neste momento. No entanto, se olharmos para trás, vamos encontrar matérias que, por exemplo, trataram da união homoafetiva, e uma outra mais distante, quando se decidiu que os aposentados deveriam voltar à contribuição com a Previdência Social, sem se olvidar, por óbvio, de uma recentíssima que tratou da criminalização da homofobia, quando o dispositivo constante do inciso XXXIX, do artigo 5º, da CR/1988 estabelece, de modo claro e inequívoco, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Esse é um ponto sobre o qual há grande inconsistência na decisão do Corte Suprema Brasileira, pois, com a devida vênia, da mesma forma como está escrito no texto acima, encontra-se igualmente na forma da redação do art. 1º do Código Penal, de 1940: “Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Ao examinarmos uma publicação do próprio Supremo Tribunal Federal intitulada “A Constituição e o Supremo”, que traz em seu bojo todas as decisões proferidas e que se referem aos dispositivos da CR/1988 e, especialmente, ao tratar do Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, apresenta a primeira decisão sobre essa temática, transcrevendo uma das suas várias Súmulas Vinculantes, de número 37, com o seguinte texto: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.” (grifo nosso).
Desta forma, vê-se um grave conflito entre a própria decisão do STF, de caráter vinculante, inclusive a ele próprio, já que não cancelada, também por ele, quando afirma que “que não tem função legislativa” e, vem, ao longo dos tempos, salpicando, por meio de suas decisões, uma nova forma de modificar o Ordenamento Jurídico Brasileiro, editando “leis” por meio de pronunciamentos jurisdicionais, e, sem qualquer chance de questionamento, porque se trata da última instância do Judiciário Brasileiro.
O grande publicista alemão Otto Bachof, em um pequeno opúsculo, porém, de incomensurável alcance, trata de uma temática assaz interessante, pois, indaga, de modo claro e preciso, porém, contundente, ao elaborar uma teoria que é plenamente sustentada: “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, trazendo uma questão que precisa ser tratada à luz do nosso Ordenamento Constitucional. Essa indagação nos inquieta a partir do momento em que se encontra lançado pelo então Presidente da OAB Nacional o seguinte excerto, sob o título de “A Nova Constituição – O controle de constitucionalidade de normas constitucionais”, na Revista Consultor Jurídico, de 10 de julho de 2016, com seguinte teor: “Nesse contexto, o professor Otto Bachof, da Universidade de Tubingen, faria história ao fazer tal questão: seria possível que normas constitucionais fossem inconstitucionais por violar um princípio jurídico absoluto ou o próprio sistema interno do texto, promovendo assim uma modificação substancial de seu conteúdo? Sua preocupação era livrar o texto constitucional de dispositivos que contrariassem preceitos fundamentais de justiça, cujo fundamento estaria no Direito Natural. Sendo o povo titular do Poder Constituinte, o texto deveria refletir o sentimento de justiça enraizado em cada membro da coletividade”. (Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-jul-10/constituicao-controle-constitucionalidade-normas-constitucionais).
Faço esta colocação partindo da premissa de que, essas decisões que têm sido proferidas pelo STF, sob o manto do “ativismo judicial”, têm ferido a Constituição de 1988? Isso considerando a sua função de “guardião da Constituição”, como “legislador negativo” e não “legislador positivo”, já que essa última função compete, por óbvio, ao Congresso Nacional, na forma estabelecida pelos artigos 59 e seguintes da CR/1988. Fica no ar uma impressão de “invasão de competência do Poder Legislativo Nacional” quando esse tipo de decisão é proferido pelo STF.
Dir-se-á que há mora de parte do Legislativo Federal quando, então, o STF chama para si a competência de “decidir” o que não foi “legislado” pelo Poder Legislativo e, por isso, estaria “autorizado a editar a respectiva norma ante a inércia” legislativa.
Diante desse contexto e considerando o texto da Súmula Vinculante nº 73, onde o próprio STF afirma a ausência de “função legislativa”, e sem “cancelar” o referido “verbete”, como poderia desvincular-se de sua própria decisão, quando, sabidamente, pelo próprio Texto Constitucional, também está sujeito ao efeito vinculante de sua própria decisão vinculante?
Assim é que ousamos considerar, de modo bastante técnico, e com balizamento em uma declaração do Eminente Ministro Carlos Velloso, que integrou o STF e também foi seu Presidente, e pedimos vênia ao Ilustre e Respeitado Jurista para nos filiarmos à sua acertada ponderação, quando, de modo técnico e respeitoso, tal como o fazemos neste modesto texto que, uma vez mais, com redobradas vênias, posto que sob a competência da 2ª Turma do STF, houve um tipo de “elastecimento da legislação processual” para atender a um recurso nominado de “Agravo Regimental” interposto contra a decisão do Min. Edson Fachin que negou seguimento ao Habeas Corpus impetrado em favor do Sr. Aldemir Bendini, um dos muitos brasileiros que se encontram às voltas com processos penais na mundialmente conhecida “Operação Lava Jato”, ao argumento de que houve “cerceamento de defesa” e, segundo o fundamento da decisão, “por força da existência de constrangimento ilegal” contra os interesses do réu em apreço.
É evidente que todas as demais decisões que tiveram sua fundamentação em delações premiadas e se encontrarem nesse “contexto” de apresentação de suas razões finais, quando os autos foram conclusos para proferimento de suas sentenças, já estão, no dizer de alguns, “festejando” esse julgamento e sua decisão e, possivelmente, porque permitirá abrir as celas de dezenas de condenados pela conhecida Operação Lava Jato, diante de um precedente amparado em, como frisado, “elastecimento da norma processual”, sem considerar, no dizer do Eminente Ministro Carlos Velloso, que “Nem o Código Penal, nem a lei da colaboração premiada fazem esta distinção que o Supremo adotou. Penso que não é possível o tribunal, invocando o direito de defesa, ampliar norma processual.”
Não é necessário considerar, apenas in thesi o desastre para o Estado Brasileiro se tudo o que foi feito até aqui vier a ruir e deixar o Judiciário Brasileiro como “terra arrasada” se aqueles que se encontram julgados e condenados, cumprindo pena pelos delitos dos quais foram acusados, vierem a ser “libertados” por uma decisão que, fatidicamente, foi proferida sob o manto do “elastecimento da norma processual”, em inequívoca extrapolação da competência decisória, com reiteradas vênias.
É de se trazer à lume um excerto que tem encaixe inafastável ao contexto constitucional que vivemos, de autoria de Konrad Hesse, intitulado de “A Força Normativa da Constituição”, sendo o título original Die normative Kraft der Verfassung e, segundo apresentação da obra, foi escrita em 1959, como base da aula inaugural de Konrad Hesse na Universidade de Freiburg – República Federal da Alemanha, lavrado nos seguintes termos: “A força que constitui a essência e a eficácia da Constituição reside na natureza das coisas, impulsionado-a, conduzindo-a e transformando-se, assim, em força ativa. Como demonstrado, daí decorrem os seus limites. Daí resultam também os pressupostos que permitem à Constituição desenvolver de forma ótima a sua força normativa. Esses pressupostos referem-se tanto ao conteúdo da Constituição quanto à práxis constitucional”.
E por fim, vale também trazer à luz o parágrafo final desse extraordinário trabalho que nos atende em virtude de tradução, nos seguintes termos: “Não se deve esperar que as tensões entre ordenação constitucional e realidade política e social venham a deflagrar sério conflito. Não se poderia, todavia, prever o desfecho de tal embate, uma vez que os pressupostos asseguradores da força normativa da Constituição não foram plenamente satisfeitos. A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós”. (Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4147570/mod_resource/content/0/A%20Forca%20Normativa%20da%20Constituicao%20%20-%20Hesse.pdf).
Portanto, vamos nos manter atentos aos próximos passos nesses dias nebulosos que vivemos a partir dessa “trovoada”, esperando em Deus que não estejamos próximos de um novo “dilúvio”. No entanto, não podemos perder de vista os fatos ocorridos na Itália numa situação idêntica intitulada de “Mani pulite” que, em tradução livre para a nossa língua quer dizer “Operação Mãos Limpas”, nos anos de 1990, mais precisamente entre os anos de 1992 a 1994, e que já rendeu vários livros e publicações mundo afora, que teve por objetivo combater a corrupção na Itália.