Sociólogo e colunistas do DIÁRIO analisam vitória do democrata Biden sobre o republicano Trump e quais seriam os reflexos na relação Brasil/Estados Unidos
DA REDAÇÃO – Demorou, mas enfim, saiu o resultado das eleições americanas. O democrata Joe Biden venceu o republicano Donald Trump. No último sábado (7), ele já discursou e pregou união. Porém, o derrotado Trump está judicializando o resultado. Ele recorreu e alega que houve fraude.
Conforme dados do jornal The Washington Post, Biden teve 75.582.186 votos contra 71.198.602 obtidos por Trump. Sendo assim, conseguiu 279 delegados, diante dos 214 do seu adversário republicano.
Para sabermos como esse resultado influenciará as relações Brasil/Estados Unidos, ouvimos o sociólogo Fernando Vieira e também nossos colunistas Eugênio Maria Gomes e Margareth Maciel. Mas antes, um pouco da trajetória de Joe Biden e da vice-presidente, Kamala Harris.
QUEM É JOE BIDEN
O candidato democrata que venceu Donald Trump nas eleições presidenciais de 2020 possui uma longa carreira na política. Mas ela começou quase por um acaso. Formado em Direito, Joe Biden conseguiu emprego em um escritório de um político democrata, que o incentivou a se filiar ao partido.
Ele ganhou uma vaga no equivalente à Assembleia Legislativa do estado de Delaware já em sua primeira tentativa. Com pouca experiência e discurso de mudança, Biden deu um passo ousado dois anos depois, ao buscar uma vaga no Senado norte-americano desafiando o republicano que ocupava o cargo e tinha o apoio explícito do presidente Richard Nixon.
Com pouco dinheiro e estrutura, Biden garantiu sua vitória gastando sola de sapato e saliva para conversar diretamente com os eleitores na rua. Essa foi a primeira de sete vitórias consecutivas entre 1972 e 2008, quando ele abriu mão do Senado para ser vice-presidente dos Estados Unidos durante o governo de Barack Obama.
Ao longo da trajetória como senador, Biden ficou marcado pela presença nos debates sobre assuntos internacionais e pela grande capacidade de negociar soluções entre seu partido e a oposição. Mas ele também se envolveu em polêmicas ao se posicionar contra pautas progressistas e a favor de guerras – posições das quais ele se arrependeria depois.
Após um início fraco nas primárias democratas para a eleição de 2020, Biden consolidou seu nome entre o eleitorado negro e do centro, superando o ultraprogressista Bernie Sanders.
Na disputa contra Donald Trump, que contou com participação recorde, Biden se tornou o presidente mais votado da história dos Estados Unidos em números absolutos, ao lado de sua vice, Kamala Harris.
Formação
Nascido em 1942, Joe Biden é o filho mais velho de Joseph Biden e Catherine Eugenia – conhecida como Jean. Seu pai era representante de vendas da companhia de petróleo Amoco, mas perdeu o emprego com a recessão nos EUA após o final da Segunda Guerra Mundial. A família precisou se mudar para a casa dos pais de Jean. Pouco tempo depois, os Biden deixaram estado da Pensilvânia e se mudaram para Delaware, onde Joe Biden Sr. conseguiu um emprego como vendedor de carros usados.
Falecido em 2002, Biden Sr. é sempre lembrado por seu filho como uma pessoa que nunca desistia, ensinando aos filhos que “um homem não é medido por quantas vezes é derrubado, mas sim quão rápido ele se levanta”.
Logo na infância, Joe Biden descobriu um problema contra o qual lutaria ao longo de toda sua vida: ele tinha dificuldades na fala e gaguejava. Por causa disso, alguns de seus colegas que tiravam sarro conheceram o peso de sua mão. Já a freira do colégio que riu dele chegou a ser ameaçada pela católica e protetora mãe de Joe.
Joe adorava esportes e foi um dos principais jogadores de futebol americano de sua escola. Ele conseguiu levar seu fraco time para uma temporada invicta no campeonato estadual. Mas suas notas não acompanhavam o brilhantismo dentro do campo. Entre seus amigos da época, ele é mais lembrado por sua liderança e carisma do que pela excelência acadêmica.
Quando já estudava Ciência Política e História na Universidade de Delaware, Biden viajou com amigos para as Bahamas, onde conheceu Neilia Hunter, com quem se casaria dois anos depois em 1966. Formado, seguiu para a Universidade de Syracuse, a mesma de Neilia, para cursar Direito.
Em uma disciplina do primeiro ano, foi reprovado por causa de um evento que o assombraria décadas seguintes: Joe Biden foi acusado de plagiar de cinco das 15 páginas de um trabalho, algo que ele classificou como um “erro de citação”.
Progressista, Biden entra na política
Após se formar na faculdade de Direito – “a coisa mais chata do mundo” –, Biden passou no Exame da Ordem em 1969, começando a carreira jurídica como defensor público. Meses depois, entrou no escritório de advocacia de um membro dos Democratas, que o convidou para entrar no partido.
Como a vida no Direito não lhe trazia dinheiro ou felicidade, Biden resolveu concorrer para o equivalente à Assembleia Legislativa de Delaware, com uma plataforma progressista. Essa foi sua primeira vitória nas urnas. Quatro décadas depois, Biden ainda não sabe o que é perder uma eleição no voto popular.
Entre 1970 e 1972, ele manteve a jornada dupla como membro do legislativo e advogado. Então, resolveu assumir um desafio ainda maior ao tentar uma cadeira no Senado Federal. O problema é que ele deveria tirar do cargo um conhecido republicano, que já era senador há 12 anos e tinha o total apoio do então presidente Richard Nixon.
Sem experiência e dinheiro, a campanha de Biden não tinha muitas chances de bater um concorrente tão forte. Mas, com o apoio de sua irmã Valerie, que se tornou a gerente da campanha, e diversos outros membros da família, Biden acreditou que conseguiria convencer o eleitor de Delaware na base da conversa cara-a-cara.
Com uma plataforma progressista, ele defendeu o fim da Guerra do Vietnã, a preservação do meio ambiente, a ampliação dos direitos civis, a revisão dos impostos e usou a carta da “mudança” para renovar a política de Washington. Biden venceu a eleição por uma margem de apenas 3.162 votos.
Mas a felicidade de Biden, que havia acabado de completar 30 anos, o mínimo legal para ser um senador nos EUA, durou pouco.
Tragédia familiar
Poucas semanas antes de assumir o cargo como senador, sua esposa Neilia sofreu um acidente ao colidir o carro que dirigia com um caminhão. Ela havia saído com os três filhos do casal para fazer compras de Natal. Neilia e Naomi, que tinha um ano de idade, morreram no acidente. Os outros dois filhos, Hunter e Beau, sobreviveram com ferimentos.
Viúvo, Biden cogitou renunciar ao cargo para cuidar dos filhos, mas foi demovido da ideia pelo presidente do Senado. Assim como seu pai, ele se levantaria. Biden decidiu permanecer morando perto de seus pais, em Delaware, e pegar o trem de ida e volta para Washington, em um trecho de 1h30 em cada sentido, para trabalhar no Senado e ver Hunter e Beau todos os dias.
Cinco anos após a tragédia, Biden se casou novamente com Jill Tracy, professora e doutora em Educação. Os dois se conheceram em um encontro às cegas marcado pelo irmão de Joe. Segundo Biden, Jill renovou sua paixão pela vida e pela política. Juntos, eles têm uma filha, Ashley, nascida em 1981.
Evolução constante
Nos seus 36 anos no Senado americano, Biden acumulou uma longa experiência nas comissões de Justiça e de Relações Internacionais, assumindo a presidência delas em diversas ocasiões.
Seu longo histórico na casa mostra um senador progressista, mas com uma opinião que, ao longo dos anos, “evoluiu” – como ele costuma dizer. Biden diz se arrepender de algumas de suas opiniões e votos passados. Ele se condena, em especial, por organizado a aprovação de uma lei que aumentou o encarceramento de negros e latinos nos EUA. Em 2019, ele disse que esse foi um “grande erro”.
Biden também se posicionou contra a presença de homossexuais no corpo militar dos EUA e a união civil entre casais do mesmo sexo, além de votar pela invasão ao Iraque e se opor à política de miscigenação das escolas públicas.
Ele também disse “não ter feito o suficiente” para apoiar Anita Hill, jovem que acusou de assédio sexual um indicado à Suprema Corte em 1991. Em 2019, Biden tentou se desculpar com Anita. Mas ela não aceitou.
Política internacional
No Senado dos EUA, Biden criou uma carreira reconhecida no debate de política externa, defendendo que os americanos não deveriam intervir em assuntos de outras nações soberanas. Ao longo de três décadas na Comissão de Relações Internacionais, Biden se reuniu com 150 líderes de 60 países e organizações internacionais.
Entre suas principais interações, ele foi à antiga Iugoslávia em 1993 para uma tensa reunião de três horas com o Slobodan Milosevic, na qual relata ter chamado o então presidente sérvio de “criminoso de guerra”. Ele também chegou a ser reunir com o ditador líbio Muammar Gaddafi em Tripoli.
Biden defendeu a entrada dos EUA na Guerra do Kosovo, assim como a invasão norte-americana ao Afeganistão e ao Iraque. Em relação ao último conflito, Biden disse ter mudado de opinião – acha que cometeu um erro ao aprovar a guerra e a derrubada do regime de Saddam Hussein.
Aspirante à presidente
Em meados dos anos 1980, Biden era uma voz proeminente no Partido Democrata. Muitos consideravam que ele chegaria à presidência de forma natural. Sua primeira chance viria em 1988. Ao contrário de sua primeira eleição ao Senado, ele foi visto como um forte candidato, recebendo grandes doações nos primeiros meses após anunciar que estava na disputa.
A campanha, contudo, foi um desastre, culminando em uma briga interna na sua equipe. Mas a pá de cal da campanha viria na forma de um discurso plagiado: Biden usou trechos completos de discursos de um conhecido político britânico, até mesmo atribuindo à sua família fatos que não eram verdadeiros.
Biden disse que seu erro foi deixar de citar o autor, citando outros momentos em que tinha feito referência ao texto original. Essa falha poderia ser perdoada, se outro caso não tivesse voltado à tona: o plágio no trabalho da faculdade de Direito. Com esses dois casos, a imprensa e seus competidores passaram a procurar – e achar – outros trechos copiados em discursos anteriores, além de exageros no seu currículo.
Assim, a campanha fez água e Biden desistiu de se lançar à presidência. Meses depois, ele sobreviveria a duas cirurgias para o tratamento de dois aneurismas cerebrais após um deles se romper. Ele se recuperou totalmente, mas precisou ficar afastado do trabalho por sete meses.
Nova tentativa
No final do governo Bush, os EUA estavam enfiados em duas guerras no Oriente Médio e em meio uma recessão que abalou a raiz do sistema financeiro global. Biden decidiu que era o momento de tentar ser presidente novamente.
Conhecido pelo o patrimônio baixo, em comparação com seus pares no Senado, e as origens na classe média baixa, Biden é visto como um membro da classe trabalhadora e com uma capacidade de empatia acima da média.
Esse background, aliado a sua experiência na política externa, o tornou um candidato fortíssimo para um EUA que via famílias de classe média perdendo tudo, enquanto o país gastava trilhões em guerras intermináveis.
Mas apesar de querido entre os concorrentes e financiadores, Biden não conseguiu levar sua campanha acima dos 10% de intenções de voto nas primárias democratas e acabou desistindo da candidatura no começo de 2008.
Em junho do mesmo ano, Barack Obama o convidou para ser o vice em sua chapa, após os dois desenvolverem uma boa relação pessoal em Washington. Obama enxergava em Biden a pessoa certa para trazer a experiência internacional que lhe faltava, atrair a classe trabalhadora e atacar o herói de guerra e concorrente republicano John McCain.
Conhecido por suas gafes ao falar de improviso, Biden teve diversos atritos com a equipe de Obama, que passou a não compartilhar parte da estratégia de campanha, com receio de que ele falasse demais e atrapalhasse. Quando descobriu isso, Biden ficou furioso.
Após semanas de atrito, os Obama e Biden conversaram, trocaram pedidos de desculpas e decidiram se reunir semanalmente para jantar e construir uma relação mais próxima. Esse hábito foi mantido ao longo dos oito anos da dupla na Casa Branca.
Na mesma eleição em que foi escolhido como o vice-presidente dos EUA, Biden também conseguiu a reeleição ao Senado por Delaware, se tornando o senador mais jovem a conquistar um sétimo mandato na Casa. Ele renunciou ao cargo em 15 de janeiro, cinco dias antes de assumir a vice-presidência.
A Casa Branca
Durante os oito anos do governo Obama, entre 2009 e 2016, Biden teve uma atuação destacada como vice-presidente, assumindo o controle de grande parte do governo, a convite do presidente.
Sua experiência e capacidade de reduzir conflitos entre as opiniões divergentes dentro do próprio governo era muito valorizada por Obama, que o tinha como um importante conselheiro.
Ele costumava fazer o papel de “advogado do diabo” nas principais decisões, forçando os membros do governo a se prepararem mais, revisarem suas posições, defendendo-as com mais argumentos. Essa característica foi elogiada por Obama como essencial para melhorar as políticas de seu governo.
Biden foi escalado como o responsável por gerenciar a Guerra do Iraque, visitando o país do Oriente Médio em oito ocasiões no primeiro mandato, além de usar sua experiência no Senado para aprovar as políticas do novo governo, como o investimento em infraestrutura para combater os efeitos da recessão e a expansão do sistema de saúde público, conhecida como Obamacare.
As boas relações de Biden com os republicanos também evitaram o primeiro calote da dívida dos EUA e a aprovação da renovação do tratado de redução de armas nucleares, negociado entre Obama e o então presidente russo Dmitri Medvedev.
Antes de deixar a Casa Branca, ele recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração presidencial dos EUA, em uma cerimônia surpresa organizada por Obama, que fez um emotivo Biden chorar.
De azarão ao indicado
Nos anos seguintes ao fim do seu segundo mandato de vice-presidente, Biden sempre foi considerado como um potencial candidato democrata em 2020, mas se recusava a confirmar se estava de fato na disputa, normalmente desconversando o assunto com uma piada.
Durante o governo Trump, Biden manteve participação ativa na vida política do país ao defender mais estudos contra o câncer, combate às mudanças climáticas, maior acesso à saúde pública e os direitos dos imigrantes e da comunidade LGBTQIA+.
Em julho de 2019, Biden decidiu entrar na disputa à presidência. Logo depois, foi arrastado para o centro da disputa política do país, após o vazamento de uma conversa na qual Donald Trump pedia que o novo presidente ucraniano investigasse os negócios do filho de Joe, Hunter Biden, no Leste europeu.
Segundo Trump, havia sinais de corrupção na participação de Hunter como lobista e diretor da empresa estatal de gás da Ucrânia. As alegações nunca foram comprovadas. Em troca, o presidente americano ofereceu apoio financeiro para o exército ucraniano.
Pelo caso, Trump sofreu um processo de impeachment na Câmara, mas foi absolvido no Senado.
Primárias Democratas
No início da corrida das primárias democratas, seu estilo mais moderado para os padrões atuais do partido e sua imagem de homem branco mais velho não atraiu uma legião de fãs, como seus concorrentes Bernie Sanders e Elizabeth Warren.
Nas primeiras votações estaduais, os resultados de Biden foram fracos, colocando-o entre o quarto e quinto lugar nas preferências dos eleitores democratas.
Mas sua campanha ganhou força quando começaram a sair os resultados nos estados com uma maior participação da população negra, que o levaram a sua primeira vitória nas primárias. Após a desistência de outros candidatos moderados, que se uniram para impedir a vitória do ultraprogressista Sanders, Biden conquistou surpreendentemente 22 estados nos dois meses seguintes.
Com a pandemia adiando as votações e sem ver chances de vitória, Sanders desistiu da campanha e abriu caminho para que Biden fosse o indicado para concorrer à presidência dos EUA contra Donald Trump.
Biden manteve uma promessa feita em um debate e selecionou uma mulher para o cargo de vice-presidente. A escolhida foi Kamala Harris, que, curiosamente, fez um dos principais ataques contra Biden durante as primárias.
Em sua campanha, Biden foi um crítico ácido ao fraco combate à pandemia do governo Trump, que levou o país ao topo do indesejado ranking de número de casos e mortes no mundo.
Ele também atacou o modo divisionista do oponente, especialmente em relação aos protestos antirracistas que se multiplicaram após a morte de George Floyd pela polícia de Minneapolis.
Biden abraçou vários temas da área da ala mais progressista e à esquerda do partido, como o apoio à creche pública universal, um plano de US$ 1,7 trilhão para combater as mudanças climáticas pela descarbonização e criação de empregos “verdes” e a expansão ilimitada da saúde pública dos EUA, que passaria a ser uma opção para todos os cidadãos.
Vitorioso em todas as disputas que entrou até hoje pelo voto popular, Biden se tornou o 46º presidente dos EUA.
Fontes: InfoMoney e Reuters
QUEM É KAMALA HARRIS
Kamala Devi Harris é uma mulher acostumada com o pioneirismo. Antes de entrar para a história, se tornando a primeira vice-presidente mulher dos Estados Unidos, com a vitória da chapa encabeçada pelo democrata Joe Biden sobre Donald Trump, sua trajetória já era marcada por muitas conquistas.
Filha de mãe indiana e pai jamaicano, Kamala foi a primeira negra procuradora na história do estado da Califórnia. Em 2010, mais um feito inédito: Kamala se tornou a primeira mulher a ser eleita para a Procuradoria-Geral da Califórnia.
Em 2016, foi eleita para o Senado norte americano, tornando-se a primeira mulher com ascendência asiática – e segunda negra – a se tornar senadora nos 240 anos da história da democracia americana.
Em 2019, em busca de mais um pioneirismo, ela disputou as primárias do partido democrata com a intenção de ser a candidata do partido para as eleições presidenciais de 2020. Depois de um começo de campanha forte, acabou desistindo da candidatura em dezembro do mesmo ano.
Mas o ano seguinte viria com uma surpresa. Em agosto de 2020, Kamala foi escolhida, entre 12 mulheres, como a vice de Joe Biden, na chapa que venceu uma das disputas mais acirradas da história das eleições americanas e desbancou Donald Trump.
No seu primeiro pronunciamento público após o resultado do pleito, Kamala postou no Twitter: “Esta eleição é muito mais do que Joe Biden ou eu. É sobre a alma da América e nossa disposição de lutar por ela. Temos muito trabalho pela frente. Vamos começar.”
Família e formação
Kamala vem de uma família miscigenada, algo incomum nos Estados Unidos na década de 1960.
A mãe, Shyamala Gopalan, a primogênita de quatro irmãos de uma família do sul da Índia, era apaixonada por ciência e, apoiada por seus pais, mudou-se para a Califórnia aos 19 anos. Lá, ela fez seu doutorado em Nutrição e Endocrinologia na Universidade de Berkeley, atuando como pesquisadora do câncer de mama.
Seu pai, Donald Harris, nasceu na Jamaica em 1938 e emigrou para os Estados Unidos para estudar Economia, também em Berkeley. Depois de formado, passou a lecionar e, hoje, é professor emérito na também reconhecida Universidade de Stanford.
O casal se conheceu em manifestações contra a Guerra do Vietnã e pelos direitos humanos. Os dois tiveram duas filhas: Kamala, que, em sânscrito significa “flor de lótus”, e nasceu no mesmo ano em que sua mãe conseguiu o título de doutora, e Maya.
Quando Kamala tinha 5 anos e Maya, 3, seus pais se separaram. As meninas foram morar com a mãe em Oakland, convivendo com o pai aos finais de semana, em Palo Alto. Nessas ocasiões, percebiam que outras crianças não brincavam com elas por serem negras. As duas irmãs iam frequentemente para a Índia e a Jamaica visitar as famílias de seus pais. Também frequentavam a Igreja Batista e templos hindus.
O espírito ativista começou a se manifestar cedo nas irmãs. Quando Kamala tinha 10 e Maya, 8, as duas lançaram uma bem-sucedida campanha para transformar um pátio abandonado no seu condomínio em um playground.
Quando Kamala tinha 12 anos, sua mãe foi convidada para ser pesquisadora e professora de uma universidade no Canadá. Assim, a família mudou-se para o país vizinho.
Kamala passou a vida estudando em escolas “de brancos”. No ensino superior, sua irmã Maya, foi estudar em Stanford, mas Kamala quis estudar na Howard University, em Washington, conhecida por ser “historicamente negra”, fundada em 1867.
Graduada em Ciência Política e Economia, em 1986, Kamala foi para São Francisco para estudar Direito na Universidade da Califórnia, formando-se em 1989. No ano seguinte, ela foi admitida na Ordem dos Advogados da Califórnia.
Muitas vezes a primeira
A partir de 1990, Kamala passou a trabalhar na Procuradoria do Estado da Califórnia. Em 1993, começou uma relação com Willie Brown, que seria o primeiro prefeito negro de São Francisco. Pouco depois de eleito, Brown terminou o relacionamento.
Mais tarde, ela trabalhou com o progressista Terence Hallinan, no Ministério Público de São Francisco – curiosamente, ela o enfrentaria nas urnas pouco tempo depois. Na maioria dos estados dos EUA, o ocupante do cargo de Procurador de Justiça é escolhido por meio de eleição. Kamala se candidatou para o cargo de Procuradora de São Francisco em 2003, contra o ex-chefe Hallinan. E venceu.
Eleita, Kamala tornou-se a primeira promotora distrital negra da história da Califórnia. No cargo, sua prioridade foi resolver os casos “esquecidos” pela antiga administração, enfrentando críticas da opinião pública e de aliados políticos ao não pedir a pena de morte para um réu acusado de assassinar um policial. O réu foi declarado culpado e atualmente cumpre prisão perpétua.
Como procuradora, Kamala iniciou um programa que usava a educação e a reinserção no mercado de trabalho como uma política pública para reduzir a reincidência em crimes de menor potencial ofensivo de réus primários e criou uma Unidade de Crimes de Ódio, que investigava delitos cometidos contra crianças e adolescentes da comunidade LGBTQIA+.
Em 2010, Kamala se candidatou ao cargo de Procuradora-Geral da Califórnia e, novamente eleita, tornou-se a primeira mulher negra a ocupá-lo. Em 2014, foi reeleita para a posição.
E agora, em 2020, Kamala coroa seu pioneirismo, tornando-se a primeira mulher eleita vice-presidente dos Estados Unidos.
Senadora
Quando a democrata Barbara Boxer, senadora pela Califórnia, anunciou sua intenção de encerrar sua carreira de mais de 20 anos na política, Kamala foi a primeira a declarar sua intenção de ocupar a vaga.
Ela lançou sua campanha em janeiro de 2015 e recebeu o apoio de figuras proeminentes do partido, como o então presidente americano Barack Obama.
Kamala conquistou o cargo nas eleições de 2016 e, ao ser empossada, tornou-se a primeira senadora de origem asiática, e a segunda mulher afro-americana a integrar o Senado americano.
Em Washington, ela passou a defender ativamente pautas contrárias às do presidente eleito, Donald Trump.
Dos 15 indicados para compor o Gabinete presidencial – equivalente ao ministério do governo Trump –, Kamala votou contra a confirmação de 12, vendo conflito de interesses e falta de experiência dos candidatos.
Também votou contra os dois nomes indicados por Trump para a Suprema Corte, o STF americano, tornando-se reconhecida por ser extremamente dura e eficaz nos questionamentos, lembrando seus tempos de procuradora.
Kamala também se opôs ativamente às restrições em políticas de imigração do governo Trump – em 2018, foi uma das senadoras a pedir que o governo americano interrompesse a política de separação de famílias e crianças na fronteira.
Ela também se opôs à tentativa do Partido Republicano de revogar parte do Affordable Care Act, também conhecido como Obamacare, que expandiu o acesso à saúde nos Estados Unidos.
Enquanto “batia” no governo Trump, Kamala organizava sua própria candidatura à presidência dos Estados Unidos.
Em janeiro de 2019, anunciou oficialmente que concorreria às eleições. Durante as 24 horas seguintes, superou o recorde de maior quantia de dinheiro arrecadada para uma campanha presidencial em um único dia.
Mas a facilidade com que o dinheiro fluiu nos primeiros meses de campanha não se sustentou nos seguintes. Em 3 de dezembro de 2019, sem decolar nas pesquisas das primárias do Partido Democrata, Kamala desistiu da corrida presidencial.
Vice de Biden
Com uma plataforma eleitoral progressista, baseada na prevenção da violência com armas de fogo, redução de impostos para classe média, elevação do salário mínimo para 15 dólares por hora, combate ao aquecimento global e manutenção e expansão de um sistema de saúde universal, Kamala Harris chamou a atenção dos democratas durante sua pré-campanha.
Em um debate nas primárias, desferiu o ataque mais duro recebido por Joe Biden na campanha. Mas, depois de sair oficialmente da disputa, endossou a candidatura do ex-vice-presidente americano pelo Partido Democrata.
Desde março, quando Joe Biden anunciou que escolheria uma mulher como vice-presidente em sua chapa, Kamala Harris passou a ser apontada como a favorita à indicação. Ela disputou o posto com outras 11 mulheres.
Quando a decisão foi anunciada, em agosto, Harris se tornou a primeira mulher negra e de origem asiática a concorrer em uma chapa presidencial de um grande partido.
Antes mesmo da decisão, Harris sugeriu o que estava por vir: “Mulheres negras e mulheres de cor há muito tempo estão sub-representadas em cargos eletivos e em novembro temos a oportunidade de mudar isso”.
Poucas horas após o anúncio da escolha de Kamala como vice, o partido democrata diz ter recebido US$ 11 milhões em doações para a chapa Biden-Harris.
No discurso de confirmação de sua indicação, Kamala lembrou que sua mãe, como muitas outras, criou as filhas sozinha, preparando o almoço das meninas antes mesmo que elas acordassem e pagando as contas depois que elas iam dormir.
“Minha mãe me ensinou que servir aos outros nos dá propósito e significado na vida. E como eu desejo que ela estivesse aqui esta noite, mas eu sei que ela está olhando lá de cima”, afirmou. Shyamala Gopalan morreu em 2009, vítima de um câncer de cólon.
Já em meio à pandemia, Kamala também criticou a administração de Donald Trump, afirmando que “sua falta de liderança custou vidas”. “Se você é a mãe ou pai com dificuldades no ensino à distância ou é um professor sofrendo do outro lado da tela, você sabe que o que estamos fazendo agora não está funcionando. Essa nação está de luto pela perda de vidas, de trabalho, de oportunidades, de normalidade e de certezas”.
Em seu discurso, Kamala também falou sobre o racismo estrutural da sociedade americana e relembrou o emblemático caso de George Floyd, o homem negro que morreu asfixiado por um policial, que levou milhares de pessoas às ruas do planeta para protestar contra o racismo.
Momento de transição
Joe Biden é presidente mais velho a ser empossado no cargo de presidente dos Estados Unidos, aos 78 anos. Se ele também disputar a reeleição, assumiria o segundo mandato com 82 anos. Por isso, Biden afirmou que precisava de uma vice jovem já que, por sua idade, teria mais chances de morrer no cargo.
Todos esses elementos levam a crer que Kamala será considerada a candidata natural do partido em 2024.
Momala: vida pessoal e família
Em agosto de 2014, Kamala se casou com o advogado Douglas Emhoff, em uma cerimônia celebrada por Maya, sua irmã.
O casal se conheceu em um encontro arranjado pela melhor amiga de Kamala. Emhoff tem dois filhos de seu primeiro casamento: Cole e Ella, que receberam seus nomes em homenagem às lendas do jazz John Coltrane e Ella Fitzgerald. Os dois só foram apresentados a Kamala depois que o relacionamento ficou sério. Hoje, a chamam de Momala (uma mistura de mom e Kamala).
Maya, sua irmã, é advogada formada por Stanford e casada com o também advogado Tony West. Os dois são pais de Meena Ashley Harris, mais uma advogada da família que estudou na Universidade de Stanford e completou os estudos em Harvard.
Meena é autora de um livro infantil (Kamala and Maya´s Big Idea) e fundadora da Phenomenal Women Action Campaign, uma organização que apoia e promove causas sociais – e está empenhada na campanha da tia.
Fontes: InfoMoney e Reuters