José Antônio da Silva e Camilo Lucas relembram o show histórico que aconteceu no Cine Itaúna em 1977
CARATINGA – No último dia 21 completaram-se 30 anos da morte de Raul Seixas. Mesmo passados três décadas, Raulzito continua sendo venerado cada vez mais. Sua obra é atemporal. E há 42 anos, o rei do rock brasileiro se apresentou em Caratinga em um festival promovido pelo Centro dos Estudantes de Caratinga (CEC). Essa história se tornou quase uma ‘lenda urbana’, pois na época poucas pessoas tinham máquinas fotográficas e as fotos que foram feitas, acabaram se perdendo com o tempo, ninguém sabe para onde foram. Filmar o show era algo fora de cogitação. Mas José Antônio da Silva, então presidente do CEC, e o cartunista Camilo Lucas estavam lá e contam como foi o histórico 24 de junho de 1977, o dia que Caratinga e região pararam e depois dançaram ao som de Raul Seixas.
O PATRÃO DO RAUL
Em 1977, nasce no Brasil uma nova gravadora, a WEA, que se interessa em contratar Raul Seixas. Neste período, intensifica-se a parceria com o amigo Cláudio Roberto. Juntos, realizaram o LP ‘O Dia Em Que A Terra Parou’ e os fãs se deliciam com “Maluco Beleza”, “Sapato 36” e a faixa-título.
Já no ano de 1977 em Caratinga, José Antônio da Silva, à época 23 anos, era candidato à presidência do Centro dos Estudantes de Caratinga. Ele venceu as eleições e cumpriu uma de suas promessas de campanha: trazer Raul Seixas para se apresentar em Caratinga. Hoje aos 65 anos, José Antônio relembra essa história. Vestido com a camisa com estampa de Raulzito, ele tem vivo na memória todos aqueles momentos. José Antônio fala de sua admiração pelo artista e conta como foi ser o ‘patrão’ de Raul Seixas.
José Antônio começa a entrevista indo direto ao ápice. “Vou contar para vocês quando o ‘Maluco Beleza’ pisou em Caratinga, pisou no palco do Cine Itaúna, isso foi pra gente de Caratinga e das cidades vizinhas uma honra receber uma pessoa com aquele tipo de intelectualidade. Naquela época o cara já sabia que a ‘Amazônia seria o jardim do quintal’ (referência a música ‘Aluga-se’). E hoje vemos que o mundo está de olho na nossa Amazônia. Voltando ao show, quando fomos eleitos para presidir o Centro dos Estudantes houve uma batalha violenta para ganhar as eleições. E isso valorizou a nossa vitória. Uma pessoa fantástica que nosso Deus já levou, Antônio Carlos Côrtes Junior, o ‘The Who’, nosso vice na época, doutor Salatiel Ferreira Lúcio. Esse pessoal fez um trabalho muito bonito e nós conseguimos ganhar essas eleições. Nós trabalhamos da seguinte forma: Se vencermos as eleições vamos trazer para Caratinga o show de Raul Seixas. E graças a Deus conseguimos trazer sem problemas e sem loucuras”.
Para um show desse porte era necessário um planejamento, já que o cachê era o equivalente a dois fuscas novos. “Montamos um ótimo grupo de trabalho e tínhamos à frente uma pessoa excelente, que é a professora Ligia Maria dos Reis Mattos, à época ela era secretária de Educação, Esporte, Lazer e Turismo. Nós fizemos um carnê para que as pessoas pagando até o dia ‘x’, tinham um desconto para os três dias do FEMPOC (Festival da Música Popular de Caratinga), que começava dia 20 e ia até 24 de junho, que era o aniversário da cidade. Então conseguimos dinheiro para pagar a primeira parcela no ato da assinatura do contrato, a segunda, no aeroporto de Ipatinga; e a terceira, antes dele entrar no palco do Cine Itaúna. Pagamento foi feito no hotel do posto Caratinga, que era o melhor hotel da cidade na época”.
E como a propaganda sempre foi a alma do negócio, José Antônio conseguiu ser entrevistado no programa Discotape, da extinta TV Itacolomi, que era apresentado por Dirceu Pereira. Esse programa era voltado para música pop e dentre as atrações, diversos clipes eram exibidos. Discotape era exibido ao vivo nas manhãs de sábado. “Foi a primeira vez que encarei uma câmera e uma luz na minha cara, deu um frio na barriga. Fui a Belo Horizonte junto de uma turma brilhante, Camilo Lucas, Marília, Joãozinho. Esses meninos foram me ajudar. O Camilo tinha parentes em Belo Horizonte e conhecia a TV Itacolomi, que ficava na avenida Assis Chateaubriand. Então, estivemos num programa ao vivo, falando numa manhã de sábado para toda Minas Gerais. Com isso, a ideia foi comprada na nossa região. Graças ao bom Deus deu tudo certo. Foi um show maravilhoso. Quem foi, gostou; quem não foi, perdeu a oportunidade de ver de frente essa lenda chamada Raul Seixas”.
Ao buscar Raul Seixas no aeroporto de Ipatinga, José Antônio viveu uma situação triste, um caso de racismo, mas Raul Seixas interveio e se mostrou mais uma vez uma pessoa diferenciada. “No aniversário da cidade, Caratinga tinha grandes desfiles. Eu estudava no colégio Nossa Senhora das Graças, que infelizmente fechou. Nossa escola foi a última a entrar na avenida. Depois ainda tínhamos que guardar as peças da fanfarra. Então, peguei táxi para ir a Ipatinga. Quando chegou no aeroporto tive uma surpresa desagradável, pois uma senhora não me deixou entrar em determinada área. Talvez pela cor da minha pele e estava todo vestido de branco e ela deve ter pensado: “esse rapaz não tá com jeito que vai pegar Raul Seixas””, recorda José Antônio.
Ele prossegue e os seus olhos brilham e sua voz fica mais forte ao rememorar toda aquela situação. “Então o avião chegou, o empresário se aproximou e perguntou se eu estava com o dinheiro da segunda parcela. De imediato passei o dinheiro pra ele. O empresário me perguntou porque não me deixaram passar e expliquei a situação. Eis que desce Raul Seixas do avião. Ele usava calça jeans, camisa vermelha, óculos escuros e botas. Assim que ele entrou no saguão que caiu a ficha da senhora da recepção. Ela pediu para que Raul assinasse o livro de presença, mas ele respondeu que não poderia assinar porque o ‘patrão’ dele estava lá fora. O cara tinha uma visão de valorizar as pessoas que estavam ao seu lado”.
Voltando ao show, José Antônio disse que Raulzito gostou muito de Caratinga. Ele revela alguns detalhes. “Digo que ele gostou tanto da cidade que chegou a me perguntar, ‘amigo, se já tem o dinheiro da portaria, tem uns amigos que quero passá-los’. No caso esses amigos eram pessoas que ele conversou e que não tinham condições de pagar pelo ingresso. Sobre o show, cantou o que queria cantar, pulou no palco, depois saiu correndo até a praça Dom Pedro II, entrou no carro e foi embora para o hotel do posto Caratinga. Raul foi muito bem tratado em Caratinga. Para nós que mexíamos com o Festival, foi uma alegria imensa de ter Raul Seixas. Depois passaram outros presidentes que também trouxeram grandes artistas à Caratinga”.
Neste instante, José Antônio conta algo pouco dito em Caratinga. “Depois disso, num carnaval, coisa que estou contando para vocês em primeira-mão, ele esteve na cidade, passou no Esporte Clube Caratinga, que tinha um carnaval fechado, conversou com as pessoas e depois seguiu viagem para a Bahia”.
A respeito das músicas de Raul Seixas fazerem sucesso até hoje, mesmo passados três décadas de sua morte, José Antônio fez o seu comentário. “Passados 30 anos da morte de Raul Seixas, sua música continua atual porque ele falava a verdade. Ele cantava ‘Mamãe não quero ser prefeito e alguém pode querer me assassinar’. Ele falava a linguagem que o povo queria ouvir. Ele é reverenciado por sua espontaneidade e sua sinceridade”.
Ao final da entrevista, José Antônio pede a reativação do Centro dos Estudantes de Caratinga. “Eu gostaria de convidar a você estudante do segundo grau, a você diretora de escola, para que resgatassem o Centro dos Estudantes de Caratinga. Existe um imóvel com três pavimentos que está parado. Quem está tomando conta? A prefeitura de Caratinga. Ali não é da prefeitura, ali é uma obra construída pelo Centro dos Estudantes, ou seja, algo para a causa dos estudantes. Os presidentes conseguiram verbas, fizeram gincanas, ganhamos uma verba na época, em 1975 pra 1976, dos deputados. No mandato do Paulo Roberto Andrade terminou a obra do Centro dos Estudantes. Na época eu não lembro o valor, mas sobrou um dinheiro numa conta da Minas Caixa, que nem existe mais. Esse dinheiro que sobrou ninguém sabe para onde foi”.
E sobre a situação atual, José Antônio observa que uma parte da memória de Caratinga está se perdendo. “Gostaria que a imprensa fizesse uma visita a Casa do Estudante para vocês verem o que há lá e tentar resgatar a documentação. Que essa documentação ficasse até mesmo com a imprensa e assim a memória não fosse perdida. Estou falando com vocês, não tem uma foto, um documento ou um contato assinado por mim e o empresário de Raul Seixas. Alguém tem que zelar por este acervo. Eu sou passageiro, mas se a imprensa guardar esses documentos, essa memória irá se perdurar”.
RAUZITO EM CARATINGA: EU TAVA LÁ!!
Em 1977, eu tinha 14 anos e era editor da Jararaca Alegre, jornalzinho estudantil fundado dois anos antes e que a esta altura, tinha se tornado o porta-voz dos estudantes da cidade, e tinha até uma redação que ocupava uma sala do Centro dos Estudantes de Caratinga (CEC), presidido pelo José Antônio. Todo ano, o CEC promovia o FEMPOC (Festival da Música Popular de Caratinga), que acontecia durante três noites no Cine Itaúna, sendo duas noites de eliminatória e uma final, quando sempre tinha uma atração nacional para encerrar o evento.
Naquele ano, o José Antonio conseguiu contratar ninguém menos do que Raul Seixas, no auge de sua popularidade, a caminho de se tornar mitológico não só na música mas na cultura brasileira como um todo. Como editor da Jararaca, eu participei de algumas ações para promover este evento, não só divulgando nas páginas do jornalzinho, como também ajudando na organização, dentro de minhas adolescentes limitações.
Uma das coisas mais legais foi ter sido convidado pelo Zé Antonio para acompanha-lo a BH, onde ele iria dar uma entrevista no programa DISCOTAPE, da extinta TV Itacolomi, afiliada da extinta TV Tupi. Lá fomos, junto ao Zé, à Marilinha Silva e ao Joãozinho da Pensão. Em BH, fiz questão de passar na casa do meu primo Marquinho e fomos em bando pros estúdios da Itacolomi. O Discotape, quem é dos anos 70 se lembra, era um dos únicos programas da TV que passava clipes de Rock: pensa na minha felicidade em estar lá!!! E ainda mais, divulgando um show do Raul Seixas na minha cidade, do qual eu tinha uma pequena participação na ficha técnica!!
No dia do show, eu e meu amigo Carlão (Carlos Eduardo Gomes de Araújo, o presidente do Cine Clube Maria Sena), que também era da redação da Jararaca, fomos pro Cine Itaúna na expectativa de entrevistar o Raulzito pro nosso jornalzinho. Lá, nos encontramos com a nata da cultura de Caratinga que brilhava nacionalmente: tinham sido convidados para a mesa do júri do festival Ziraldo, Agnaldo, João Pena, Etieninho, Flávio Anselmo… uma verdadeira noite de estrelas! Distribuímos a Jararaca Alegre pra eles, e em um dos exemplares, pedi que todos autografassem. Tenho ele guardado até hoje!
Fomos, Carlão e eu, pro camarim tentar entrevistar o Raul, munidos do nosso gravador K7 preto que parecia um tijolo daqueles furados de construção. Mas nada feito, tava uma zona lá dentro e eles acharam que não era uma boa deixarem dois ‘dimenor’ entrarem. Plano B: nos sentamos no começo da escada do palco, assistimos o show de lá, com o gravador ligado. Gravamos uma hora do show na nossa fita K7 de meia hora de cada lado. A fita durou bastante tempo, mas seria querer demais que ela sobrevivesse mais de 40 anos, ainda mais que ela passava de mão em mão e eu nem imagino quem foi o último que ficou com ela. Ficou uma porcaria a gravação, uma barulheira danada, mas estava ali, o histórico show do Raul em Caratinga. Quem dera!
Enquanto isso, várias outras pessoas tem histórias pra contar deste momento raulseixístico caratingano, muitas lendas foram contadas a respeito, mas elas envolvem sexo, drogas e rock and roll e, na minha idade na época, eu só alcançada o rock and roll, o qual – por ter sido o primeiro show que fui na vida – provavelmente tem a ver com o que eu sou hoje!! Valeu Zé Antonio, valeu Centro dos Estudantes de Caratinga, pena que não existe mais!
EM TEMPO: As edições antigas da Jararaca Alegre estão disponíveis no site da revista. A edição que traz a matéria sobre o show do Raul é a de número 44. Basta acessar o link abaixo e baixar gratuitamente esta e também outras edições que quiser: http://jararacaalegre.com.br/colecao.html. Valeu!