Eugênio Maria Gomes
O comboio foi parando devagar na plataforma, onde um mundo de gente esperava para embarcar e, outro, para sair dos vagões. Enquanto aguardava o desembarque, as pessoas foram entrando, encontrando-se com as que saiam numa embaraçosa demonstração de falta de educação. Quando o último passageiro saiu, entrei no vagão mais próximo. Lotado.
Em pé, encostado, próximo a uma das portas, ouvi a informação de fechamento das portas e o anúncio da próxima estação, com a leve sensação de que estava sendo observado. Em pouco tempo, a “leve sensação” cedeu lugar à certeza: sim, estavam todos olhando para mim. Todos não. Todas! Imediatamente lembrei-me da entrada no vagão e imaginei que, talvez, se devesse ao fato de eu ter ficado parado na plataforma, “atrapalhando” o embarque daquelas “mal educadas” passageiras. Não, o motivo não podia ser aquele…
Criei coragem, levantei a cabeça e procurei encarar cada uma delas. Se as caras estivessem boas poderia, até, pensar em um flerte coletivo, quem sabe? Mas, as caras estavam muito feias… Deveras feias! Ao correr os olhos pelo espaço, fazendo uma observação em cento e oitenta graus, acabei fitando o olhar avassalador de uma carrancuda senhora, sentada no banco ao meu lado. Fixei o olhar e, para minha surpresa, ela me encarou. Desviei o olhar retornando-o ao ponto de partida e encontrei os olhos de uma bela morena, com um olhar que “cuspia fogo”, claro, em minha direção. Virei-me um pouco mais à esquerda e pude ler nos lábios de uma senhora gorda, as palavras dirigidas à colega do lado: “homens, todos iguais. Acham que podem tudo”. Mais: olhou-me detidamente e pronunciou bem alto: “Não sabe ler não?”.
Desconcertado, desviei meu olhar do dela e vi, em tamanho maior que o necessário, uma, duas, três placas, com dizeres garrafais: “Women Exclusive car. Carro Exclusivo para Mulheres. Lei Estadual 4733/06”. Eu tinha entrado no vagão destinado, apenas, às mulheres. Na primeira parada, assim que a porta se abriu e um rapaz desceu, pude constatar duas coisas: havia a mesma inscrição na plataforma de acesso ao vagão e, claro, tinham outros seis homens no trem, já descontado o que havia descido naquele ponto.
Mais uma estação e outros dois rapazes desceram, sob vaias de algumas mulheres. A situação não estava nada boa para nós. Olhando novamente ao redor observei que outros três homens caminhavam em direção à porta, sob os altos comentários da mulherada: “da próxima vez pegue o vagão certo, aquele em que vocês ficam roçando na gente, nos assediando”. O comboio parou, a porta se abriu e, mais uma vez, pude observar a inscrição no chão de que aquele vagão era destinado, exclusivamente ao transporte de mulheres.
A porta se fechou e eu, de cabeça baixa, encostado no lado oposto da porta anunciada para permitir o próximo desembarque, fiquei pensando em uma maneira de sair dali, sem chamar muito a atenção e sem ter que tomar outro comboio, já que faltavam ainda três estações para o meu desembarque. Olhei para o alto – como se estivesse procurando algo no teto – e consegui observar o outro homem, na parte traseira do vagão. Pele morena, com os cabelos tingidos de amarelo ouro, quase uma drag queem, gesticulava e contava casos que tiravam gargalhadas das mulheres. Certamente, ele não as incomodava, enquanto eu era bombardeado pelos olhares e por resmungos das incomodadas senhoras. Não poderia passar por aquilo por mais tempo. Assim que foi anunciada a próxima estação, fiquei preparado para dar o galope, saltar e pegar o vagão imediatamente anterior, para não ter de esperar outro comboio. Assim o fiz. Sei que elas gritaram alguma coisa, mas, não consegui entender uma palavra sequer, embora soubesse que não eram elogios.
O comboio chegou à minha estação de destino e desci. Envergonhado, não apenas percebi, mais uma vez, a inscrição na plataforma seguinte à minha, mas, também, vi que o vagão destinado a elas era totalmente rosa. Segui pela plataforma, logo atrás de uma moça, passageira do vagão que eu utilizara a maior parte da viagem. Subimos, em fila, a escada rolante e, no meio do percurso entre os dois pisos ela se dirigiu a mim e disse:
– Você que estava no vagão das mulheres não é?
– Sim. É que…
Antes que eu pudesse dar qualquer explicação, de poder falar que entrei correndo, com o comboio saindo, que não sabia da existência de um vagão reservado só para elas, de me desculpar pelo ocorrido, ela disse:
– Você sabe qual saída que eu pego para chegar à “Voluntários da Pátria”?
– Sei, você deve pegar a saída da direita.
Ela sequer agradeceu. Seguiu o seu caminho e dirigiu-se à saída da direita. Eu, que também precisava acessar a mesma rua, parei e li na placa próxima aos guichês, que a saída era a da esquerda. Mais uma “bola fora” …
Fiquei ali parado, na saída da estação, esperando o seu retorno. “Se você errou, peça desculpas…”. A frase dita por Cecília Meireles, em um de seus versos, não me saia da cabeça. A moça não apareceu e, conformado, lembrei-me da estrofe completa do famoso poema “Nem Tudo é Fácil” da nossa grande escritora: “Se você errou, peça desculpas… É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?”
Segui o meu caminho.
- Eugênio Maria Gomes é professor e pró-reitor de Administração da Unec. É membro da ACL – Academia Caratinguense de Letras e da ALTO – Academia de Letras de Teófilo Otoni. É Grande Secretário de Educação e Cultura do GOB-MG, membro da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga, do Lions Itaúna e do MAC – Movimento Amigos de Caratinga.