Eugênio Maria Gomes
Narciso era um belo rapaz, filho do deus do rio Céfiso e da ninfa Liríope. Por ocasião de seu nascimento, seus pais consultaram o oráculo Tirésias para saber qual seria o destino do menino. A resposta foi que ele teria uma longa vida, se nunca visse a própria face. No entanto, depois de uma caçada num dia muito quente, debruçou-se numa fonte para beber água. Descuidando-se de tudo o mais, encantou-se consigo mesmo, permanecendo imóvel na contemplação ininterrupta de sua bela face, ali refletida, e assim morreu, apaixonado por si mesmo, entorpecido por sua própria beleza.
Trata-se de um dos mais conhecidos episódios da Mitologia Grega. De Narciso se origina o conceito psicanalítico “narcisista”, aquele que só vê a si mesmo, só admira sua própria imagem, só enxerga seus próprios atributos. Não é por outra razão que o vocábulo “narcótico” tem a mesma raiz etimológica, aquilo que entorpece, que altera a consciência, que nos impede de enxergar a realidade que nos cerca…
Mas é de Nelson Rodrigues, o grande dramaturgo brasileiro, a expressão que serve de título ao presente ensaio – Narciso às Avessas. Foi por ele proferida em 1950, logo após a derrota brasileira para o Uruguai, na Copa do Mundo daquele ano. “O brasileiro se coloca voluntariamente em uma situação de inferioridade em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”. Esse narcisismo às avessas, serviu de base para o famoso “complexo de vira-latas” que até hoje nos atormenta e do qual não conseguimos nos livrar…
Esse dito “complexo” produz, até hoje, efeitos nefastos na nossa sociedade. Esses efeitos, inclusive, apresentam-se contraditórios. Ora nos coloca em posição de permanente inferioridade frente aos outros povos, denegrindo e subestimando nossas conquistas, nossos valores, nossas capacidades, nossas potencialidades, numa constante auto-desqualificação, ora se traduz numa postura xenófoba, de supervalorização da nossa cultura, rejeitando o que vem de fora, cegando-nos para aquilo que há de bom, de positivo em outras culturas. Talvez, por isso, copiamos o que há de ruim em outros países – o individualismo, o fast food, o consumismo, e rejeitamos o que há de positivo – a pontualidade, a eficiência, a seriedade, a honestidade.
Os reflexos patentemente negativos dessa baixo estima encontram-se espalhados em praticamente todos os setores do cotidiano nacional. Da Política à Economia, da Ciência à Educação, das Artes aos Esportes. Atualmente, denegrir o País e seu povo transformou-se no principal esporte nacional. Razões para críticas, obviamente, não faltam. Pecamos, gravemente, em muitas coisas, país em desenvolvimento que ainda somos.
Com a ampliação dos diversos meios de comunicação de massa, e, principalmente, com a quase universalização do acesso e do uso da Internet, o complexo de vira-latas brasileiro potencializou-se exponencialmente. A quantidade de idiotices sobre o país e sua gente que se vê nas redes sociais impressiona. Fazem jus, perfeitamente, à declaração do saudoso Umberto Eco, ferrenho crítico do papel das novas tecnologias no processo de disseminação de informação, para quem “as redes sociais dão o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Esses “imbecis” a que se refere o brilhante filósofo possuem um importante aliado: a preleção natural que a grande mídia brasileira tem em destacar tudo o que é ruim, tudo o que é negativo, tudo o que contribui para que nos sintamos ainda mais diminuídos. Parece que uma grande parte do jornalismo brasileiro foi aprovado com louvor na disciplina “Como destacar os Pontos Negativos”, com certeza uma matéria obrigatória em alguns cursos de Comunicação.
A inigualável capacidade de improvisação do brasileiro, que demonstra sua criatividade, sua capacidade de vencer desafios com poucos recursos, transforma-se em mera utilização de “gambiarras”. Nossa cortesia, amabilidade e humildade são contrapostas à arrogância, à empáfia e à agressividade de outros povos, como se fossem defeitos e não virtudes.
Vejam, por exemplo, o que acontece com a cidade do Rio de Janeiro. Ou é decantada como “Maravilhosa”, num flagrante exagero e utilização incorreta do adjetivo, ou é lançada ao escárnio e a execração nacional e, em assim sendo, é projetada no mundo com as mesmas deturpações. O Rio não é nem de longe a cidade mais violenta do Mundo, nem mesmo do Brasil. Aliás, no âmbito nacional, em termos de índice de criminalidade, o Rio encontra-se em 23º lugar. Ora, se temos 27 estados, há antes dos cariocas, 22 outras capitais mais violentas, incluindo todas as capitais do Nordeste, e, ainda, Vitória e Belo Horizonte, no Sudeste. No entanto, a violência no Rio aparece na mídia nacional como se lá estivessem em uma guerra civil. Tente dizer a um mineiro que em Belo Horizonte há mais crimes do que no Rio e veja se ele vai acreditar…
Há mais favelas no Nordeste do que no Rio de Janeiro. A Baía de Baltimore é tão poluída quanto a Baía da Guanabara. Há diversos ex-Governadores norte-americanos presos por corrupção. Em Londres, há filas para comprar um sanduíche que vem embrulhado numa folha de jornal. Qualquer garçom de um “buteco” brasileiro poderia ensinar boas maneiras a um garçom de Paris. O que há de mais raro em Londres ou em Bruxelas é um dia ensolarado, de céu azul. Lá é tudo cinza. Há mais ratos em Nova York do que novaiorquinos. Em Tóquio uma manga custa uma fortuna e é vendida em lojas de luxo. Na China come-se gatos. Na Índia o Rio Ganges serve de sepulcro para hinduístas…
Em qualquer lugar do mundo há problemas. Há bizarrices, costumes estranhos, crises sociais, crises políticas, crises econômicas, humanitárias, poluição, crimes. Vivemos momentos muito difíceis. A Humanidade está em crise. Em países como o Brasil, muitos dos problemas e necessidades básicas da população ainda não foram resolvidos, e as coisas, no geral, parecem ser piores do que em outros lugares. Mas na verdade, à luz da realidade, apenas parecem.
Por ocasião da Olimpíada, especialmente nos dias que antecederam a abertura dos jogos, vimos uma exacerbação das deficiências da cidade e das mazelas brasileiras. De repente, todos os nossos problemas afloraram de uma só vez. Causou espanto o prazer com que a mídia noticiou a decisão australiana de abandonar a Vila Olímpica. Esqueceram-se que na Olimpíada de Sidney também aconteceu de parte dos atletas terem de pernoitar em containers, pois os alojamentos ainda não estavam prontos antes dos jogos.
A realização de uma Olimpíada demanda um esforço incomensurável. É um evento enorme, com custos enormes. Um desafio para qualquer país. Se deveríamos ou não ter assumido esse compromisso é uma discussão, agora, sem sentido. O fato é que assumimos e, a considerar o resultado até aqui, parece que demos conta. Os bônus que um evento dessa magnitude trazem são imensos, seja pela imagem positiva que a belíssima abertura provocou em todo o mundo, seja pelas expertises e conhecimentos que utilizaremos no futuro.
No entanto, estamos tão envoltos numa onda de pessimismo, tão divididos em nossos ideais de país, tão impregnados de uma onda de negatividade e de rancor, que somos capazes de jogar água na tocha olímpica, um dos poucos símbolos daquilo que de bom a Humanidade pôde preservar – um símbolo de Paz, de União entre os povos, de superação das dificuldades.
Muitos dos estrangeiros que aqui se encontram não conseguem entender essa atitude que os brasileiros têm em relação ao seu próprio País. Como eles não padecem de “complexo” de inferioridade, e como são menos passionais do que nós, eles são capazes de enxergar, simultaneamente, o que temos de bom e o que temos de problemas, mas sempre, invariavelmente, ao contrário do que nós fazemos, eles sempre destacam o que veem de bom, de positivo, mesmo que os repórteres insistam que eles apontem o que lhes desagradam, o que funciona mal, o que é ruim.
Todos têm destacado a amabilidade, porque em seus países é difícil ver alguém sorrindo! Ficam deslumbrados com o sol, a luz, as cores, porque estão cansados do cinza, do frio, da falta de calor humano! Estão maravilhados com a alegria, a expansividade, a camaradagem, porque são características que não estão acostumados a ver! Eles enxergam os defeitos e os problemas, mas estão acostumados a valorizar o que tem de bom, a exaltar seus pontos fortes e não suas fraquezas.
Sim, temos muitos problemas a resolver, e, no momento, vivemos sim uma crise sem precedentes, em quase todos os setores da nossa sociedade. Mas a pior crise que podemos ter, ao lado da crise moral, é a crise da esperança, e passarmos a acreditar que não há conserto, que não há o que fazer, porque isso compromete não apenas o presente, mas também o porvir, e condena as futuras gerações a perpetuarem esse sentimento de derrota e de inferioridade.
Narciso morreu admirando sua própria beleza. “Achava feio o que não era espelho”.
Os brasileiros podem morrer, exaltando suas próprias mazelas. Achamos belo o que não temos, achamos feio o que somos!
Parafraseando Paulo Maccedo, que em outro contexto, mas sempre pertinente, nesse momento onde realizamos um dos maiores eventos do Mundo, e quando os olhos do Mundo estão todos a nos fitar, disse: “Peço-te que não procures em mim apenas os defeitos, pois os encontrarás demasiadamente, a ponto de não conseguires ver minhas enormes qualidades.”
- Eugênio Maria Gomes é professor e pró-reitor de Administração da Unec. É membro da ACL – Academia Caratinguense de Letras e da ALTO – Academia de Letras de Teófilo Otoni. É Grande Secretário de Educação e Cultura do GOB-MG, membro da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga, do Lions Itaúna e do MAC – Movimento Amigos de Caratinga.