Reportagem especial traz os efeitos da covid-19, sob a perspectiva de uma jovem que perdeu a avó e a tia para a doença, um paciente que se curou e uma enfermeira que está na linha de frente
*Adenilson Geraldo e Nohemy Peixoto
CARATINGA- Há um ano tudo praticamente parou… Caratinga, o mundo, choram a perda de entes queridos para um mal silencioso. Para muitos parecia apenas uma gripe… De repente, UTIs, respiradores, kit intubação… Nada parecia suficiente até a esperança da vacina. Será que já entendemos a gravidade da situação? Precisamos falar sobre a covid-19.
O DIÁRIO de Caratinga traz uma reportagem especial com pessoas que sentiram na pele: a dor da perda, a incapacidade de respirar e os desafios de se lidar dia a dia com os cuidados com o paciente e acolhimento aos familiares.
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“Temos que saber viver com sabedoria neste momento”
Cabo Batista relata recuperação e faz no alerta à população sobre a pandemia
Leonardo Batista da Paixão é policial militar há 12 anos. Casado há 13 anos com Cristina de Lourdes Vieira, pai de Giovana de 10 anos e Heitor de três anos. Ele ficou internado por 32 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Casu-Hospital Irmã Denise e chegou a ter 96% do pulmão comprometido.
Em dezembro de 2020, ele foi entrevistado pelo DIÁRIO e relatou sua experiência, desde a infecção à cura da doença. Agora, a reportagem conversou novamente com Cabo Batista, que fez um relato sobre a recuperação e um novo alerta à população. Confira o depoimento na íntegra:
SEQUELAS E RECUPERAÇÃO
“Esses quase sete meses depois desse período de contaminação, agora de recuperação, quando tive alta ainda estava com 50% do pulmão tomado. Estou fazendo consultas rotineiras com pneumologista, já recuperei 25% e ele me deu um prognóstico muito bom, que tenho condições de recuperar 100% ou ficar no mínimo 10%, que também já é uma vitória grande, não temos que reclamar. Devido ao período de internação também, várias medicações tomadas, corticoides, o período inerte, tive uma lesão no nervo da perna que me impossibilita de movimentar o pé, Síndrome do Pé Caído, também estou fazendo acompanhamento com o ortopedista. Isso é um pouco mais complicado, o médico me deu até dois anos para recuperar esse movimento, se não recuperar vai ser necessário uma cirurgia, mas, nesses dois anos é medicação e fisioterapia domiciliar.
Tenho me dedicado, já consegui recuperar um pouco do movimento do pé, que já é um bom sinal, ainda estou afastado do trabalho, da rua, no Batalhão, mas, também fiz uma perícia médica com a junta da polícia da saúde e já estou trabalhando me modo home office. Faço serviços administrativos na minha casa, que para mim também já é uma vitória, mesmo que remoto, distante, mas já tendo contato com meu serviço de novo, o que nos ajuda a espairecer e viver uma outra rotina também, não só dessa de recuperação”
MENSAGEM
“Para toda a população eu digo que não subestimem a doença. É perigosa, muito agressiva, tive 96% do pulmão tomado, fui desenganado pelos médicos, Deus agiu na minha vida e me trouxe de volta. Mas, chegou um momento que para a Medicina não tinha nada a fazer e agora nesse momento que o mundo está vivendo, os casos estão aumentando terrivelmente todo dia, quem puder faça o distanciamento mesmo, tome as medidas necessárias de prevenção que é utilização de álcool em gel, quando puder lave a mão com água e sabão, uso de máscara. Precisamos cada um ser o seu guarda, se policiar, evitar aglomeração. Temos uma vida para viver, mas, temos que saber viver com sabedoria nesse momento. Não podemos brincar com essa doença, porque ela é grave, mata. Uma das coisas mais difíceis da internação, no momento em que eu estava lúcido foi a distância da minha família, porque quem contrai a doença e está internado não pode receber visita de parentes, isso para a pessoa que está ali é muito ruim. Ás vezes a pessoa queria pelo menos receber uma visita de meia hora, 20 minutos do seu pai, sua mãe, esposa, dos filhos, mas, não pode. Para você que já está doente, recuperando, ser privado desse momento com a família é muito ruim. Então, tomem as medidas necessárias para evitar de contrair a doença e parar no hospital, que já estão superlotados com equipes médicas trabalhando praticamente sem descanso necessário, sobrecarregados, mas, continuam ali lutando pelas nossas vidas.
Primeiramente, como todo dia, agradeço a Deus pela minha vida; mas, também queria deixar meu agradecimento sincero, de coração, a todos os profissionais de Saúde da equipe do Casu, que tiveram um carinho imenso, que nunca deixaram de acreditar na minha recuperação, me ajudaram. Do médico ao copeiro, todos me cuidaram com muito carinho, nunca desistiram não só de mim, mas, como vi lutando também por outras pessoas”.
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QUANDO O NÚMERO VIRA UM NOME
Rúbia perdeu a avó e a tia, vítimas da covid-19. Ela alerta para que as pessoas não subestimem a doença
Rúbia Natália Armond de Lopes, 27 anos perdeu a avó, Ruth Armond Medeiros e a tia Glorinha Costa Alves, para a covid-19. As duas tinham 73 anos de idade: Ruth faleceu no dia 10 de junho de 2020, o 4° óbito da doença registrado no município; já Glorinha faleceu no dia 16 de março de 2021.
Quando a covid-19 ainda começava a ser falada em Caratinga e região, a família de Rúbia foi infectada. Ela relata momentos de muita angústia, incertezas e destaca que é preciso ter mais consciência sobre os efeitos da doença:
Como sua família se deu conta de que estava infectada?
Quando tudo começou, ainda estava muito longe, meio que a gente subestimava a doença e pensava que iria demorar chegar até aqui no interior. Só que quando percebemos, a nossa família estava infectada, foi um susto maior.
Nós começamos a passar mal, minha avó, meu pai, eu, minha mãe, enfim. Procuramos os médicos, hospitais, mas, como nós não tínhamos viajado, nem recebido ninguém de fora ou participado de alguma festa, algum tipo de aglomeração; então já era descartado imediatamente o covid, porque até então não se falava em transmissão comunitária. Até então se achava que era Dengue, de todos nós, ficamos ali aguardando o prazo para fazer esse exame, mas, os sintomas foram se agravando, começou a falta de ar, isso acendeu uma ideia de que tinha alguma coisa de errado. Várias pessoas da mesma família passando mal e evoluiu com sintomas respiratórios. Assim foi feita a primeira tomografia, que foi na minha vó e viram que num período muito curto de dias, o pulmão dela havia sido comprometido, o que era muito indicativo de covid. As coisas foram acontecendo, tudo muito rápido, eu e meu pai fizemos exame, ele foi internado.
Sua avó foi a óbito e seu pai estava internado em estado grave. Como foi lidar com esta situação?
Foi um período muito difícil, porque o diagnóstico de todos nós veio no período muito curto de tempo, num espaço de três dias. No primeiro dia de hipótese diagnóstica de covid, minha avó já foi internada, transferida para a UTI. Logo em seguida fui isolada, estava com sintomas de moderado a grave, mas, tive uma assistência domiciliar fantástica e consegui tratar, seguramos até o finalzinho para não precisar internar e deu tudo certo. Três dias depois do diagnóstico da minha vó, meu pai foi internado e também transferido, logo em seguida para a UTI intubado. Observo pessoas sentindo, não aguento ficar nesse período de isolamento em casa, é muito chato, não vejo o tempo passar, mas, para mim, para a minha família, não vimos esses 14 dias passar. Eu passava tanto mal, tinha tanta febre, falta de ar, muitos remédios, exames, que eu não tinha ideia. Mesmo estando em casa, eu não tinha noção de tempo e quando tudo aconteceu, 14 dias depois, eu estava pouca coisa melhor, saí do isolamento e passados 10 dias, 10 de junho de 2020, foi confirmado o óbito da minha avó, depois de 26 dias de internação. E meu pai, 23 dias internado em estado gravíssimo. Quando veio o óbito da minha avó, o quarto notificado em Caratinga, dá para se ter a noção de tempo, agora são centenas de pessoas, pais, tios, irmãos, mães, que perderam a vida depois da minha avó. Foi muito difícil entender e do nada perder alguém.
A morte de certa forma foi um alerta para vocês?
Tive muito medo de perder meu pai. Depois que minha avó se foi parece que a ficha caiu, passamos a ter mais consciência que, de fato, era grave. Como isso aconteceu no início aqui na nossa região, eles tiveram uma assistência médica fantástica, ainda tinham leitos de UTI disponíveis, a equipe da saúde ainda não estava tão saturada, cansada, ainda tinha vaga com facilidade, eles tiveram o suporte. Se naquela época, com todo o suporte, todos os recursos possíveis, alguns se foram, hoje, ver outras pessoas, conhecidas ou não, passar pela mesma coisa e, às vezes, com mais dificuldade, dói. Cada óbito que é notificado, para mim, é como se aquela cicatriz ali não conseguisse fechar.
Sua tia faleceu vítima da mesma doença, já num contexto em que a pandemia estava mais grave. O que você diz para as pessoas que ainda duvidam da doença?
Quase 10 meses depois, minha tia faleceu com o mesmo diagnóstico, no caso dela foi possível haver velório, porque ela faleceu bastante tempo depois da contaminação e teve uma segunda internação para tratar as sequelas. E passar por aquele momento foi reviver aquilo que de certa forma não tivemos condição de presenciar, que foi o velório da minha avó, não tivemos oportunidade de fazer isso, foi caixão lacrado. É difícil, quando você vê, pessoas perdendo a vida, ficando em estado grave e festas acontecendo, pessoas militando em cima de uma doença que existe, trazendo questões políticas para algo que existe. Independente de acreditar se é verdade, se não é, a doença existe e levou a minha avó, quase levou o meu pai, levou a minha tia, me deixou muito ruim, com sequelas, psicológicas, inclusive, que até hoje perpetuam pela nossa família.
É uma frase que eu disse para pessoas que subestimaram ou que não entenderam a dor que eu estava sentindo, quando a minha avó se foi e quando meu pai estava em estado grav. Quando víamos no jornal, que lá na China, na Europa, tinha tantos casos, a gente pensava: ‘Isso não vai chegar aqui ou é só mais um número, mais mil pessoas’. Mas, quando esse número tem um nome e pra mim ele tem o nome de Ruth, que é a minha avó… Quando o número vira um nome, já começamos a repensar. Repensamos as atitudes, a dar um pouco mais de valor à nossa vida, às pessoas que estão a nossa volta. Não espere esse número virar um nome de alguém da sua família, porque depois que você perde não tem o que fazer mais. É simplesmente aceitar e pronto. E aprender a conviver com aquela dor. Até hoje dói, não tem como fingir que nada aconteceu, mas, vamos aprendendo a viver. Digo que não me acostumei e nunca vou me acostumar com o novo normal, mas, aprendemos a ressignificar algumas questões, o que de fato importa. Nesse momento você pode ter o dinheiro que for, mas, não adianta.
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O COMBATE AO DESCONHECIDO
Enfermeira Aline Gomes alerta: “Não é só sobre você pegar, é também sobre você passar para as outras pessoas”
A enfermeira Aline Gomes de Resende atua na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que é porta de entrada para atendimento de pacientes suspeitos da covid-19. Ela é casa e tem um filho de dois anos de idade. Naturalmente, pela profissão, acabou sendo infectada pela doença e viveu o drama do isolamento. A experiência de lidar dia a dia com os cuidados com os pacientes, o acolhimento às famílias e, por vezes, óbitos, foi relatada nesta entrevista:
Primeiramente, gostaria que você falasse um pouco sobre a relação do profissional x paciente e profissional x família.
Nós temos que tratar com mesmo carinho. Quando entramos do portão pra dentro, as prioridades são os pacientes, deixamos o amor da vida da gente em casa e vamos atender o amor das pessoas que estão aqui precisando dos nossos cuidados. Estamos aqui para amparar as pessoas que precisam, e cuidar com o máximo de carinho. Temos que saber separar as coisas para melhor atender o paciente.
Quando recebemos o paciente, damos o melhor da gente, isso se dá com carinho, conhecimento técnico, científico, para dar tudo de melhor ao paciente, salvar a vida do paciente, porque aqui naquele momento é a gente e o paciente. É a equipe médica, a de enfermagem, e a equipe assistencial para o paciente. Então, temos que dar o melhor para salvar a vida do paciente. As vidas deles dependem das nossas atitudes.
A pandemia tem sido um momento bastante desgastante para o profissional de saúde. Como tem sido lidar com isso?
Eu acho que o ano de 2021 para mim e meus colegas começou como o ano de esperança. Um ano de esperança porque esperávamos a vacina, em busca da imunização das pessoas. Mas, também veio com um pouco de preocupação em relação ao desleixo das pessoas com o distanciamento, sabendo das medidas de proteção. Isso é meio desgastante, porque desperta uma angústia, falta hoje muito amor próprio. Você ser solidário com o sofrimento do próximo. Isso falta muito das pessoas. Nesse momento de pandemia, só quem vive na pele sabe o que é. Aqui, já recebemos amigo, pessoas que foram nossos professores, familiares… É aquele momento que bate a vontade de chorar, mas você precisa se segurar, exercer a sua profissão, para isso não causar um efeito dominó, e desestabilizar a equipe que já está cansada. Então todos os casos mexem muito conosco.
Passados pouco mais de um ano desde a explosão da covid-19. Como você sente hoje?
A Aline hoje está cansada, indignada com as coisas que estão acontecendo, pois vemos que pessoas inocentes estão pagando pela irresponsabilidade das pessoas que não acreditam nessa doença, que não respeitam o isolamento social. O covid-19 não é só sobre você pegar, é também sobre você passar para as outras pessoas. Então, hoje, não só a Aline, mas os profissionais da saúde, são vistos como heróis, mas são heróis também aqueles que respeitam o isolamento, porque estão protegendo a família deles. Então, essas pessoas também são heroínas. Estamos há um ano batalhando na linha de frente, e quando se volta de um plantão exaustivo, você vai passando pela rua ao voltar pra casa e se remete a vários sentimentos, de revolta, indignação. Revolta, porque as pessoas estão sem máscara nas ruas, indignação pelas pessoas que estão aos comércios não essenciais; entrando em academias escondidas, para a polícia e fiscais terem que ir na porta, sobrecarregando os serviços. E, com isso, as pessoas inocentes sendo acometidas por isso. É revoltante. Uma tristeza do fundo do meu coração, passarmos por isso, é muita pressão psicológica porque, antes, no início da pandemia, tínhamos muito medo, porque era o combate ao desconhecido. Hoje, estamos cansados, mas o vírus não está cansado. Então, precisamos dar o melhor todo dia.
Você poderia exemplificar como tem sido a rotina de plantões?
Teve um plantão que, em menos de 45 minutos, presenciamos três internações de covid-19. Admitimos o paciente, damos o diagnóstico e mandamos para o hospital referência para tratamento de covid. Então, em 45 minutos, foram três famílias chorando, pedindo pelo amor de Deus para não deixar morrer. Nesse tempo, admitimos pessoas também com outras doenças, não gira só em torno disso. Isso acaba assim nos desgastando totalmente, porque as vezes são consequências dos atos das pessoas que mais amamos. O fato de eu ir para uma festa no momento da pandemia, não estou só expondo a mim ao risco, mas estou expondo a minha família e pessoas inocentes também. E cada dia, atingimos o recorde de óbitos, que não são números. São pessoas, são pais, são as mães, são os avós, os filhos e que não tiveram chance de despedir com dignidade. E as pessoas precisam entender que hoje a luta não é só de quem está na linha de frente, mas precisamos entender que precisamos entrar na luta não só pelos meus amores, mas pelos seus amores.
Você também foi contaminada pela doença. Como foi esse período?
Quando saímos da nossa casa, pedimos muita força a Deus. Ano passado minha mãe se contaminou, foram 14 dias de isolamento intenso onde passei acordada, rezando muito pra Deus, foi quase no início mesmo da pandemia. Eu também me contaminei, vemos como é a importância dos cuidados. Na minha casa, fique isolada em um quarto, meu marido com meu filho de dois anos, me chamando a todo tempo e eu não poderia responder e a criança sem saber porque não poderia dar um beijo ou um abraço.
O que você espera da população, como profissional de Saúde?
Esperamos reconhecimento da população, se protegendo, se cuidando e sendo responsáveis pelas medidas de cuidados individuais, porque o covid machuca, dói, é um soco no estômago. E quando nos contaminamos, nós profissionais da saúde, temos um sentimento total de impotência. E o sentimento de negação daqueles que não acreditam na doença, e nos trazem sobrecarga. Eles são também são responsáveis por esse aumento de casos.
Quais são as suas considerações finais?
Eu gostaria muito de conscientização da população em relação ao isolamento, às medidas de proteção individual. Não desistam do isolamento, o vírus não cansou, o número de óbitos está aumentando de forma avassaladora e quem puder fique em casa. A luta não é só nossa, é de todas.