À minha frente, um prédio de apartamentos. Dois em cada um dos doze andares, todos providos de varandas. Da posição em que me encontro, na varanda do outro prédio, protegido por um toldo, consigo visualizar três andares. Dou uma pausa na releitura de “Crime e Castigo”, de Dostoievski e fixo o olhar nos apartamentos, movido pela luminosidade nas vidraças. Não posso ser visto por ninguém, já que estou em uma varanda protegida por um vidro espelhado, com visualização, apenas, de dentro para fora. Em todos os apartamentos consigo ver o que se passa – além da varanda – na sala, em um dos quartos e na cozinha. São 21h43min e está garoando. Mentalmente, enumero os apartamentos visualizados de 1 a 6, da esquerda para a direita, do andar mais alto para o mais baixo.
No apartamento 1, agora, não consigo ver mais nada. Assim que pensei em escrever sobre o que via nesse mosaico de vidas, todas as luzes se apagaram.
No apartamento 2 encontra-se uma senhora que aparenta ter uns 85 anos. Está sozinha. De vez em quando ela se levanta do sofá, com muita dificuldade, pega o andador e vai à cozinha. Não consigo, nesse momento, ver o seu rosto, mas ela leva o copo ao rosto e retorna ao filtro. Faz isso várias vezes, como se gostasse de tomar água aos “goles”. Ela retorna ao sofá e, com muita dificuldade, toma assento. Fixo o olhar nos outros cômodos da casa e não consigo ver mais ninguém. Mas, vejo um amontoado de roupas sobre a cama, caixas e mais caixas pelo chão e, na cozinha, o fogão e a pia estão cobertos de vasilhas… Muitas vasilhas, como se há dias nada ali fosse lavado e guardado. Ela está só e, aparentemente, solitária.
Volto o meu olhar ao apartamento 1… Continua tudo escuro por lá. Desço o olhar para o andar de baixo e chego ao apartamento 3.
No apartamento 3, um homem já idoso, com cerca de 70 anos, está na penumbra, em pé, no meio da sala. A varanda também está apagada. Parece que ele está falando com alguém. Faz sinais com a mão, pedindo que outra pessoa chegue mais para a direita, depois para a esquerda. Ele está flertando com uma mulher. Sim, com uma mulher, pois faz sinal pedindo para ela mostrar os seios. Agora faz sinal de positivo, provavelmente aprovando a atitude tomada. Corro o olhar pelo apartamento e vejo, no quarto, uma senhora deitada, coberta por uma manta branca, sob a luz fraca de um abajur. Retorno o olhar ao homem e já o encontro com a mão dentro da calça do pijama. Imagino que esteja se masturbando e, antes que eu mudasse de apartamento para não invadir a sua privacidade, ele tira a roupa e fica completamente nu, no meio da sala. O exibicionismo dura pouco tempo e o vejo vestir-se rapidamente. Ah! A luz do quarto está acesa e a senhora caminha em sua direção, encontrando-o confortavelmente sentado no sofá, assistindo qualquer coisa na televisão. Ela se senta ao seu lado, pega a sua mão e recosta em seu ombro… Parecem felizes.
No apartamento 4, um homem ajeita a cadeira da mesa de jantar. Ele vem em direção à varanda e ajeita uma das cadeiras que lá se encontram. Em seguida, retorna à mesa de jantar e ajeita a mesma cadeira. Essa operação se repete por umas cinco ou seis vezes. Sua cozinha está completamente organizada, mas ele chega, para em frente ao fogão e ajeita alguma coisa em cima dele. Agora consigo ver, é uma vasilha com frutas. Ele tira todas as frutas e as coloca sobre a tampa do fogão. Em seguida, pega um pano, o umedece com álcool e esteriliza a fruteira. Depois, ele retorna com as frutas para a vasilha colocando, primeiramente, as laranjas, depois as maçãs e em seguida as carambolas. Ele vai até a sala de jantar e ajeita uma jarra sobre a mesa, retornando à cozinha em seguida e, mais uma vez, pega a fruteira e despeja todas as frutas na pia. Ele pega novamente o pano, coloca álcool e esteriliza a fruteira. Lava cada fruta, seca-as e as coloca no recipiente esterilizado, obedecendo à mesma ordem utilizada na primeira vez. Retorna à sala e ajeita a jarra de flores, vai à varanda e ajeita a cadeira, depois ajeita a cadeira da mesa de jantar e se dirige à cozinha. Ele pega a fruteira… Volto o olhar ao apartamento ao lado e vejo o casal, na mesma posição, assistindo televisão. No andar de cima, a senhora está na cozinha, tentando encontrar algo no meio daquela montoeira de coisas sobre a pia e o fogão. No apartamento ao lado, tudo escuro ainda…
Desço o olhar para o apartamento 5, no qual um casal namora no sofá. São jovens, entre 18 e 20 anos. O beijo é longo, apaixonado. Opa! Ela tira a blusa e ele se desvencilha da camisa. Com os dorsos nus, o casal se esfrega. Ele se levanta e apaga a luz da sala… Fico esperando um pouco e uma tênue claridade aparece no quarto, como se a luz de um corredor tivesse sido acesa. O casal chega nu ao quarto e se acomoda na cama. As cenas se desenvolvem como se pertencessem a um filme… Não um filme pornô, mas um filme de amor. Devem ser recém-casados… Estão apaixonados demais… Pelo menos é o que aparentam os demorados beijos. Colocaram-se em todas as posições possíveis e imagináveis, menos a tradicional, aquela que homenageia os pais. Aproveito o movimento ao lado e fixo o olhar no apartamento 6…
No apartamento 6, cinco jovens estão posicionados em uma mesa redonda, estudando. Gesticulam como se estivessem discutindo um assunto. Todos estão com livros e cadernos à sua frente… Parece ser uma “república”. São três moças e dois rapazes. Retorno ao apartamento ao lado e vejo o casal de bruços, ele com a perna sob as nádegas dela, descansando. Não há movimento, estão descansando das boas atividades praticadas recentemente…
A garoa continua caindo, lenta e insistentemente. No apartamento ao lado os jovens continuam conversando e, no andar de cima, o homem está lavando novamente as frutas, enquanto no apartamento ao lado do dele a mulher voltou para a cama e o senhor está no meio da sala, masturbando-se, com a calça do pijama na altura dos joelhos. No primeiro andar a senhorinha está se levantando, mais uma vez, com a mão esticada em direção ao andador, enquanto, no apartamento ao lado do dela continua tudo escuro…
Mosaico de vidas. Estão lado a lado, cada um com os seus objetivos, seus desejos, seus sonhos, suas manias e suas loucuras. Será que se conhecem? Será que ao se encontrarem no elevador ou nas áreas comuns do prédio interagem de alguma forma? Ou permanecem calados, ensimesmados em suas cápsulas individuais?
Ao observá-los, não pude deixar de me perguntar o que todos têm em comum, já que são tão diferentes em seus comportamentos, em suas manias, em suas relações. Concluo que além de desfrutarem um passado evolutivo comum, pois todos são da mesma espécie, todos padecem, ainda que inconscientemente, dos males da vida moderna, aprisionados em um cubículo vertical, aprisionados em seu individualismo, vítimas das necessidades, dos prazeres, dos vícios ou das dores do corpo… Estão sós, ainda que acompanhados… Estão sós, aprisionados na solidão existencial humana.
Volto a Dostoievski, mas imediatamente, sou invadido por Clarice…
“O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros.”
Eugênio Maria Gomes é diretor da UNEC TV, professor e pró-reitor de Administração do Unec – Centro Universitário de Caratinga. Membro da Assembleia da Funec – Fundação Educacional de Caratinga, do Lions Itaúna, do MAC- Movimento Amigos de Caratinga, da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga e das Academias de Letras de Caratinga e Teófilo Otoni. É o Secretário de Educação e Cultura do GOB-MG.