Ela morou em Caratinga e é símbolo da luta contra a Ditadura Militar
DA REDAÇÃO – A única sobrevivente do centro clandestino de tortura denominado ‘Casa da Morte’, de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, Inês Etienne Romeu, morreu nesta segunda-feira (27), aos 72 anos de idade. Inês passou 96 dias na casa, onde foi barbaramente torturada, violentada e presenciou vítimas da ditadura militar serem torturadas e mortas.
Inês nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, morou em Caratinga nos anos 50, mas mudou-se para Belo Horizonte e depois para São Paulo, entrando para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Depois de ser presa em São Paulo, pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, ela foi torturada e levada para uma delegacia em Cascadura, Rio de Janeiro. De lá foi transferida para a Casa da Morte, onde ficou mais de três meses incomunicável e sofreu todos os tipos de tortura.
Ela foi também a última presa política da ditadura militar libertada no Brasil, oito anos depois, em 1979, pela Lei da Anistia.
Inês ajudou as comissões da Verdade na busca do paradeiro de presos políticos desaparecidos e na identificação de torturadores. Em seu depoimento, ela relatou ter sido obrigada a cozinhar nua, na frente dos carcereiros, e ter sido estuprada duas vezes por um deles. Inês Etienne identificou nove militantes de esquerda assassinados, segundo ela, na Casa da Morte. Sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade foi fundamental para se chegar ao imóvel clandestino e à identificação de quem nele atuava. Ela reconheceu os torturadores por fotografias.
Em 2003, aos 61 anos, Inês foi atacada por um marceneiro contratado para um serviço doméstico, com vários golpes na cabeça, o que a deixou com limitações neurológicas. O marceneiro nunca foi identificado.
Em nota, a Comissão da Anistia disse receber com profunda tristeza a notícia da morte de Inês. “Ela denunciou em 1981 a existência do centro clandestino de tortura e extermínio. Em 2009, recebeu por isso o Prêmio Direitos Humanos na categoria “Direito à Memória e à Verdade” do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, lembra a nota.
Nos últimos anos de vida, Inês Etienne morava em Niterói/RJ. Ela havia sofrido um infarto agudo do miocárdio e um edema agudo de pulmão.
Inês Etienne Romeu, uma história de luta contra a tortura
O professor, historiador e escritor Hélio Amaral também sofreu nos ‘porões da ditadura’. Suas experiências estão relatadas no livro “Pavilhão dos Escravos”. Ele conhecia Inês Etienne e ficou comovido com a morte de uma das mais fervorosas defensoras da democracia brasileira.
Hélio Amaral destaca que Inês Etienne passou o tempo mais precioso de sua vida em Caratinga e ficou admirado pelo jornal Estado de Minas, em matéria publicada na edição de ontem, não ter se referido a esse fato. “Inês nasceu em Pouso Alegre. Seu pai era banqueiro e viajava muito. Então veio para Caratinga em 1950, onde cursou os ensinos fundamental e médio. Depois foi para Belo Horizonte estudar História. Inês pertence a famílias ilustríssimas de Caratinga. Se não me engano, é neta do Major Etienne Arreguy e sobrinha do Doutor Maninho. Então ela seguiu a tradição da família Etienne, que sempre lutou politicamente no norte da França”, conta Hélio Amaral.
Segundo o professor, na capital mineira, por volta de 1966, Inês ingressou no movimento estudantil contra a ditadura militar. “Ela se comprometeu com a causa ao ponto de ingressar na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Esse movimento era comandado pelo Capitão Lamarca, de quem ela foi grande amiga”.
Como militante, nos anos 70, Inês Etienne chegou ao posto de comando e participou ativamente de dois sequestros. “Foram os sequestros do embaixador alemão Von Helleben e do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. E isso fez com que ela fosse muito odiada pela ditadura, sendo sentenciada a prisão perpétua, algo que existia naquela época. Foi a primeira guerrilheira mulher a receber este tipo de condenação. Ela só foi anistiada em 1979”, disse o professor.
Por ser tão odiada pela ditadura, Inês foi levada para a ‘Casa de Morte’, em Petrópolis. “Naquela casa todos morreram, exceto Inês. Com muito estratagema e muita inteligência, ela conseguiu escapar da morte. Também teve ajuda de um parente, que era coronel do Exército”, explicou Hélio Amaral.
A partir da criação da Comissão da Verdade, Inês denunciou os torturadores. “É uma vergonha para a ditadura brasileira essa casa. Tudo indica que o famoso deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, Rubens Paiva, foi morto neste lugar”, acrescenta o professor.
Hélio Amaral chamou atenção para outro fato marcante da vida de Inês Etienne. “Em 1975, uma organização alemã, sediada em Frankfurt, Alemanha, declarou Inês como a ‘mulher do ano’. Ganhou uma série de homenagens pela sua coragem. Ela era quem mais sabia sobre os torturadores brasileiros”, especificou Hélio Amaral.
Ele chamou atenção para a agressão sofrida em São Paulo por Inês em 2003. “É algo misterioso até hoje. Ela foi encontrada na banheira de sua casa pela faxineira. Inês foi lesionada na cabeça, justamente na parte que afeta a memória. Mas Inês era forte e foi morar com sua irmã Elizabeth em Belo Horizonte. Com a morte de Elizabeth, Inês se mudou para Niterói, onde morreu nesta semana”, finalizou Hélio Amaral.
DEPOIMENTOS
A morte de Inês Etienne causou comoção. Leia o que disseram pessoas ligadas à luta contra a ditadura militar:
“Como forma de reconhecimento à coragem de Inês, cabe ao Estado transformar a Casa da Morte de Petrópolis em um Espaço de Memória para fomentar uma cultura de direitos humanos na cidade. A história por ela já foi contada, mas é necessário que os Arquivos do CIE (Centro de Informações do Exército) sejam abertos e que os agentes torturadores sejam ouvidos e responsabilizados por seus atos.”
Wadih Damous/Comissão da Verdade do Rio
“Conheci Inês Etienne Romeu quando ela ainda era a ‘Comandante Leda’, da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. Mulher impressionante por ter, ao mesmo tempo, determinação na luta e uma incrível delicadeza no trato com seus companheiros, tornou-se minha amiga quando eu a visitei ainda na cadeia. Nunca abandonou a luta e conseguiu localizar o mais secreto centro de torturas e extermínio da ditadura militar. Só por esse fato merece todo o nosso respeito e todas as nossas homenagens. Inês Etienne Romeu é uma daquelas pessoas imprescindíveis, que farão falta ao país”.
Ivan Seixas/jornalista e ex-preso político
“Ines Etienne se foi. Carregou consigo a coragem e a força que inspirou e alentou a muitos de nós, seus companheiros de vida e de luta. Posso dizer que tive a honra de estar por perto depois que tentaram novamente lhe tirar a vida e a alma. Mais difícil ainda prosseguir sem ela. Mais responsabilidade eu sinto na luta por justiça aos que lhe torturaram na ditadura e lhe mutilaram na democracia. Minha amiga querida, saudades do teu riso e tua alegria”.
Suzana Lisboa/Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
“Sofrimento não se mede, mas o sofrimento dessa mulher deve ter sido uma das coisas mais bárbaras. Ela ter aguentado na mão daqueles torturares todas as torturas para conseguir sair de lá viva e denunciar o que foi a Casa da Morte…. ela é uma heroína do povo brasileiro. Quando eu penso o que ela passou na mão daqueles homens, eu fico paralisada. O Estado tem um compromisso com essa mulher de abrir os arquivos para homenageá-la”.
Victória Grabois/Tortura Nunca Mais
“Uma das construtoras da verdade no Brasil. Fica a sua grande contribuição como protagonista resistente da ditadura e como testemunha da nossa história. Enquanto isso os torturadores permanecem impunes, protegidos pelo STF”.
Paulo Abrão/Presidente do Instituto de Políticas Públicas para os Direitos Humanos do Mercosul e ex-presidente da Comissão de Anistia