Em “A memória é uma oficina de ossos”, Mírian Freitas nos presenteia com poemas que refletem suas lembranças
Por José Horta
DA REDAÇÃO – ‘A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas’, disse Carlos Drummond de Andrade em seu poema ‘Amizade’, publicado na obra ‘O Avesso das Coisas’ (1987). E foi justamente quando Mírian Freitas se isolou da humanidade que um amigo que fez com que ela voltasse à realidade e trabalhasse a divulgação de seu livro “A memória é uma oficina de ossos” (Ed. Urutau, 2022). O professor e poeta Fernando Campos sentiu-se tão arrebatado pela obra que escreveu um poema intitulado ‘Beta-Solidão’. Ao ler essa homenagem, Mírian Freitas foi contagiada e fez aquilo que mais sabe, que é prosseguir. O livro remonta o passado, mas a observação feita por Fernando Campos, fez Mírian Freitas se ater ao presente, já pensando no futuro. Ou seja, novos livros virão. Como ela mesmo disse: “Acredito que é possível abstrair de uma dor as nuances de luz”. A professora e poetisa consegue ludibriar suas disforias, tornando-as sublimes, bem próximas de suas euforias.
No prefácio, Lucas Mendes Ferreira diz: “A memória tece um fio de águas inesgotáveis em abundância, teor e fluidez na poética de Mírian Freitas, que vem expandir e multiplicar o novo cenário da poesia brasileira em tempos tão estranhos e tão comuns, tempos em que a condição humana grita nas redes sociais, desespera-se, desnuda-se, cotidianamente”.
E neste livro, Mírian Freitas mostra liame com seu passado, onde seus poemas exploram a singularidade e a criação de suas memórias. Dividido nos tópicos ‘Poema de Todas Horas’, ‘Corpos de Luz’, ‘Do Labirinto’, ‘Frutos de Morder’ e ‘Poemas Sobre Viagens’, a poetisa mostra suas referências de autores como T.S. Eliot, Herberto Helder, e Jorge Luis Borges. A cabeça de Mírian Freitas se estremece com tantas memórias.
No posfácio, Miriã Xavier Benício ressaltou: “A leitura da poesia de Mírian concretiza aquela maravilhosa experiência de imersão no jogo mundo de fora (que é de todos) e mundo de dentro (só da autora), culminando numa perda dessa distinção quando o terceiro mundo, aquele que é o do leitor, traz para a obra também sua dimensão, e tudo se mistura e se fecunda e se recria. Eis a mágica da boa poesia: a memória fabrica os ossos, mas a palavra — nessa, dessa e por essa — faz germinar as sementes de vida”.
Então, vamos nos imergir nesta entrevista de Mírian Freitas.
Nos chama atenção o nome de seu livro, ‘Memória é Uma Oficina de Ossos’. De onde vem o título? A senhora conserta os ossos quebrados em sua mente?
O título surgiu a partir de um verso do poema “Cena de despedida do Gangtey Valley”, cuja temática é a memória/recordações de uma visita a um vilarejo muito pitoresco e encantador no país da felicidade, que é Reino do Butão, na Ásia. Naqueles versos que narram a subida ao monastério daquele pequeno vilarejo em uma manhã de janeiro de 2019, fica evidente o sentimento memoralista já na epígrafe de Wislawa Szymborska: “Até onde a vista alcança, reina aqui o instante./ Um daqueles instantes terrenos/ que se pedem que durem”. Todo o poema nasceu de uma experiência que impactou minhas emoções e minha memória afetiva. Afinal, quem vai àquele país e volta o mesmo? Portanto, o título do livro se originou desta experiência inesquecível, que considero que faz parte da ossada de minha memória.
Bem, respondendo a sua segunda indagação, creio que para os ossos não há conserto, há?!… (risos!). Outro dia estava conversando com um professor de biologia e ele me disse que os ossos têm muita vida, muito mais do que nós podemos imaginar. Disse-me que os ossos sangram, têm células e são muito resistentes. Então me lembrei do título do livro e pensei comigo mesma, quão fortes são estes ossos da memória! Acredito que os ossos quebrados da memória se regeram por si mesmo, tomara, não é?!…
O livro é dividido em cinco seções. Por que essa escolha e os temas abordados?
Costumo fazer a divisão dos textos dos meus livros de maneira a agrupá-los pela proximidade temática, contextos similares, etc. E com esse não foi diferente, pois ainda que no corpo do livro contenha poemas diversos, o viés temático que os perpassa é a memória. A divisão e subtítulos facilitam a compreensão do leitor, portanto, nomeei as partes em (1) Poemas de todas as horas, compõem os textos que se assemelham pelos traços de uma memória mais pungente; ou seja, difícil de ser diluída, que já criou raiz pelo tempo ou pelo impacto que a constituiu. (2) Corpos de luz são textos dedicados a pessoas que me despertam uma memória afetiva pelo encontro ou pela convivência, que é o caso de “Antônio”, “Cantares a um amigo que floresce”, “O homem, o pilão e a memória” e “Travessia”, ou em outros casos, aqueles que em algum momento assumem voz e espaço na minha escrita, como em “Falso retrato de Walt Whitman”, poeta norte-americano cuja obra As folhas das folhas de relva muito me influenciou na primeira juventude. Bem como “Retrato de um poeta vietnamita”, dedicado ao jovem poeta Ocean Vuong, cuja obra tem sido uma forte influência no meu processo de criação/escrita (3) Do labirinto traz textos de uma memória nutrida pela solidão e pela solitude. (4) Frutos de morder é composto por apenas 3 textos em prosa poética com nuances surrealistas e de memória onírica. (5) Poemas sobre viagens compõe textos da memória de viagens que fiz pelo Brasil e por outros países. Aqui, ao meu ver, merece destaque o poema “Em Lumbini”, cujos últimos versos são “ […] a saudade é um idioma de árvores feridas e “A memória é um piano de pulsos cortados”. Vale lembrar aqui que quando estive em Lumbini (Nepal), terra de Siddharta Gautama (Buda), senti exatamente estes versos e meses depois, escrevi o poema. Não que isso tenha relação com Buda, mas sim com a atmosfera nostálgica daqueles ambientes por onde percorri. Era como se um piano tocasse ao longe em meio ao semblante triste das pessoas e, principalmente, de um cego que estendia as mãos vazias a pedir esmolas por ali. Acredito que toda viagem é autoconhecimento e nunca voltamos os mesmos por muitas razões. Portanto, o que fica de uma viagem são os ossos que sustentam o corpo de nossa memória.
O prefácio, assinado por Lucas Mendes Ferreira, diz: ‘Não se pode negar que nos poemas de ‘A memória é uma oficina de ossos’ encontra-se uma fração significativa das veias espiritualistas da autora’. A senhora costuma se revelar em seus poemas?
Sim, isso pode acontecer, não de maneira absoluta, mas talvez fragmentada, pois o escritor tem sempre um filtro que está diretamente relacionado às suas percepções e emoções e, quando escreve, um pedacinho dele está lá, de uma forma ou de outra.
A respeito da memória. Qual fase de sua vida lhe traz as melhores recordações?
A infância, sem dúvida.
Em suas memórias, a senhora costuma ‘falsear’ o passado. Ou seja, fazer com que um fato ruim se torne bom?
Sim. Lembro-me de um conto que escrevi “O ovo de páscoa” que foi publicado em meu primeiro livro Intimidade vasculhada, em que a protagonista (uma criança de seis anos) levou um beliscão do pai, porque queria que ele lhe comprasse um ovo de páscoa. E isso realmente aconteceu comigo. Naquela hora, o sentimento que tive foi de uma tristeza profunda, um trauma.
Quase trinta anos depois, escrevi “O ovo de páscoa”, não com um sentimento de mágoa, mas sim de libertação, já que a arte é este movimento de transformação. Portanto, acredito que é possível abstrair de uma dor as nuances de luz.
Gostaria de saber sua percepção sobre um tema, que trata da memória. Mesmo em tempos de internet, onde tudo é fugaz, mutante, percebemos que as pessoas estão mais nostálgicas, com grupos que contemplam fotos antigas. Por que temos tanta nostalgia de tempos idos?
Segundo o filósofo Giorgio Agamben, nós temos uma relação singular com o tempo/memória. Costumamos a pensar no tempo em que vivemos, mas não nos encaixamos nele tão facilmente. É daí que vem o sentimento de nostalgia. Pois, quando enxergamos a escuridão do tempo presente, das sombras da contemporaneidade, nossa tendência é procurar a luz. E onde estaria essa luz? Estaria justamente naquilo que chamaria de “memórias do bem”, as quais revisitamos a todo instante quando o presente nos pesa. Portanto, diria que as memórias são um alimento de sobrevivência em tempos tão obscuros e a nostalgia é esse sentimento de lembrança do que já se foi, mas que talvez nos preenchesse mais do que aquilo que temos hoje.
O livro começa com “agora florescem os amarelos na lembrança do outono refém dos pulsos de um relógio à procura de novos instintos”. E termina com “a viagem é um poema com pássaros”. Qual conexão a senhora faz entre esses versos?
No primeiro verso de “Prelúdio”, poema que inicia o livro, há a menção aos “ pulsos de um relógio”, o que dá a ideia de tempo/memória, além de mencionar o “outono e o amarelo”, que simbolicamente remetem à da vida em movimento, em transformação; ou seja, nada estática. E o poema que “fecha” o livro traz também essa ideia de movimento íntimo: a ideia da memória como uma “viagem”; diria, “uma memória de pernas”, que transita.
Remetendo a Herberto Helder, sua cabeça estremece com todo o esquecimento ou com a lembrança?
Mário de Andrade diz que é preciso esquecer para lembrar. Então acredito que uma coisa está associada a outra, naturalmente. Hoje, acredito que mais me esqueço do que lembro (Risos). Parece que a cada dia vivemos este “Alzheimer da modernidade” que apaga aos poucos a memória, diluindo seus ossos. Por isso, considero que meu estremecimento é mais com o esquecimento, que é a própria morte da memória.
Gostaria de finalizar aqui com um poema que recebi do admirável e querido amigo e poeta de Caratinga, Fernando Campos, que leu o livro A memória é uma oficina de ossos e a partir dessa leitura, escreveu este belo poema.
BETA-SOLIDÃO
Onde o aquário?
Onde a lua a transmudar-se de
inocências
fez coçar o cu do mundo
nos cotovelos lúgubres de nenhum lugar?
Pergunto
Pergunto e me ponho a pensar
no ventre das águas
no peixe solitário
e nos violinos trôpegos que
nunca voltaram que
nunca voltaram que
nunca voltaram
(Fernando Campos, 17/07/2023.)
Mácula
Os ossos choram
enrolados em pedaços de papel
como se a vida morresse
neste silêncio de uma tarde espessa
sob rajadas de vento e tempestade.
Não há sorrisos dentro daqueles potes
de vidro.
Há um chumaço de vazio e o nada.
O nada que sopra nos ouvidos
a mácula
e o desassossego destes punhos tristes.
(Um dos poemas que compõe a obra ‘A memória é uma oficina de ossos’)
Citados na introdução da entrevista
Um comentário
Um velho amigo dos campos de terra batida
Bom trabalho Zé Horta. Bela reportagem. Mais um pênalti defendido. Excelente.