Gleice Carvalho foi classificada em segundo lugar no curso de Direito da UFOP. Ela participou do curso Pré-Enem Solidário
CARATINGA- Uma jovem com trajetória em escola pública e que precisou buscar diversas alternativas para alcançar o seu principal objetivo: uma vaga em uma universidade federal. Essa é a história de Gleice Carvalho da Silva, 19 anos, moradora do Bairro Aparecida.
A garota já passou pelas escolas Maria Isabel Vieira (Polivalente) e Deputado Agenor Ludgero Alves. Ela mora somente com a mãe, que é lavadeira e sempre batalhou para sustentar a casa. Agora, Gleice está orgulhosa do resultado expressivo que conseguiu, com a contribuição importante do curso Pré-Enem Solidário, ofertado pela Prefeitura de Caratinga. Foi classificada em 2° lugar para o curso de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Para comentar o resultado e a importância do curso para a aprovação de Gleice, que utilizou a nota do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), o DIÁRIO conversou ainda com Rainer da Silva Alves, coordenador do projeto e diretor do Departamento da Juventude; as professoras de Biologia e Literatura, respectivamente, Lays Alves e Andreza Eduarda; e a coordenadora do polo da UAB, onde aconteciam as aulas do Pré-Enem, Flávia Azevedo Santos.
OS ESTUDOS
Gleice se considera uma “treineira” do Enem. Isso porque ela já realiza a prova desde 2015. “Foi a quarta vez que eu fiz. Por eu não ter terminado o ensino médio ainda nas outras vezes, considero que foram tentativas bem sucedidas, mas com 18, no começo do ano assumi que eu iria tentar realmente passar. Foi quando o Rainer falou comigo sobre esse curso da prefeitura, me interessei, eu e uns amigos meus fomos atrás dele e começamos a fazer o curso. Comecei a estudar pela internet também”.
Para Gleice, o curso Pré-Enem foi essencial para a sua aprovação na UFOP. “Os professores maravilhosos, ajudaram muito e são pessoas que além de passar o conteúdo foram importantes para orientação mesmo, para qual universidade tentar, elas têm essa experiência de já estarem cursado ou estar cursando. Me orientaram no que fazer, o que estudar, quais fontes eu poderia procurar aprofundar”.
Ela também buscou outras formas de estudar e contou com ajudas importantes. “Paulo Sutil (professor) tem uma sala de estudos avançados que dá um suporte maior sobre Química, Física e Matemática, o que é maravilhoso. A sala dele é excepcional, fui uma das primeiras alunas que ele teve, porque o projeto é novo e ele fez um preço maravilhoso, me ajudou muito, porque ele conhece a minha história, queria mais me ajudar. E realmente ajudou muito”.
A rotina de estudos de Gleice era intensa. Ela dividia seu tempo entre internet e de forma presencial. “Eu fiz um curso online também. Durante a noite, a partir das 18h eu ia assistir às aulas do curso. Durante a manhã, eu acordava por volta de 8h, 9h, estudava também e à tarde eu comia, ajudava minha mãe em casa e estudava (risos). Então, basicamente eu estudava o dia inteiro. Trabalhei por algum tempo e juntei um dinheiro, por que minha mãe, por ser baixa renda não conseguia, e comecei a estudar com o João Martins. Foi um grande diferencial também, na questão de matemática principalmente e redação. Aqui o curso foi maravilhoso também, eu vinha com os meus amigos às sextas-feiras e estudávamos”.
A jovem acredita que estudar com os amigos também fez a diferença. “É um incentivo quando as pessoas querem o mesmo que você, conhecer a galera aqui no cursinho também, todo mundo motivado por algo”.
Um desafio enfrentado foi relembrar o conteúdo estudado no Ensino Médio, concluído em 2017. “No meu ensino médio, por ser escola pública sabemos que não é aquela coisa. Foi relembrar tudo que eu tinha aprendido e aprofundar algumas coisas, principalmente matemática e redação, porque no Enem é o que mais conta. Por isso falo que foi tão importante o contato com os professores, porque orientavam no que eu devia aprofundar e pesquisar o que mais cai na prova”.
SER DIFERENÇA
A aprovação em Direito trouxe a realização de algo que Gleice buscava desde a infância. E ela explica o que lhe fascina na área. “É o meu sonho. Eu cresci numa favela! Você vê os dois lados da moeda, os meninos traficando e tal, mas também a polícia tentando combater. Eu ficava pensando: ‘Eu quero ajudar essa galera, quero algo melhor para essa galera também’. É realmente um aprendizado você crescer lá, em questão de humanidade, porque todo mundo é bem humilde, mas tenta se ajudar. Eu pensava, quero mexer com Justiça, ser diferença, mudar daqui e mostrar para essa galera que é possível”.
A mudança para Outro Preto será efetivada em breve. A cidade e a universidade também deixaram a jovem satisfeita. “Estou muito feliz, porque quando estudava na Ludgero Alves, a professora de História fez uma viagem gratuita com a nossa turma para Ouro Preto. Eu vi a cidade, sou fascinada com história, ver aqueles monumentos, saber que a Inconfidência Mineira de certa forma está ligada àquilo foi fascinante. E saber que eu poderia jogar minha nota para lá e viver lá… Que sonho! Estou muito feliz com a mudança”.
A parte complicada é deixar a mãe em Caratinga, mas ela garante que tudo valerá a pena. “Ela está muito feliz, não está acreditando. Ao mesmo tempo fala: ‘Você vai me deixar aqui’ (risos). Mas, é por uma boa causa”.
O PROJETO
O projeto Pré-Enem Solidário teve início em abril e foi concluído no final de outubro de 2018. Todas as sextas-feiras, foram cerca de 27 dias de aulas, nos horários de 19h às 21h.
De acordo com Rainer da Silva, o projeto foi apresentado em 2017 como uma sugestão por Juarez Gomes de Sá e efetivado no ano seguinte. “Ele já fez o projeto anteriormente na cidade, mas sem apoio. Consegui realizar parcerias necessárias para fazer o projeto acontecer, com o Unec (Centro Universitário de Caratinga), que cedeu estagiários, também tivemos professores voluntários e a UFOP, que cedeu a estrutura física”.
Rainer destaca que a intenção é dar oportunidade de estudo a jovens que não têm condições financeiras. “O objetivo é fazer com que realidades como a da Gleice se tornem possíveis, pelo menos para tentar amenizar essas diferenças que existem na sociedade. A porcentagem de uma pessoa pobre conseguir ingressar na universidade é muito pequena. Por isso, a necessidade de um projeto como esse”.
A ajuda dos voluntários foi fundamental, por se tratar de um projeto social. “Tivemos dezenas de professores excelentes, o Paulo Sutil que não está aqui agora fez total diferença na área dele, dentre outros, para fazer os alunos entenderem melhor a matéria e como melhorar a nota, ingressar na universidade, para aqueles que não têm condição de pagar um cursinho particular”.
Sobre o resultado de Gleice, ele afirma ser um exemplo e que o projeto terá continuidade em 2019. “Para que outros jovens possam se inspirar nela e conseguir também a oportunidade de fazer uma federal. Esse ano pretendemos seguir o mesmo cronograma do ano passado. Estamos olhando algumas parcerias com a Superintendência Regional de Ensino para aprimorar algumas coisas. O curso tem que acontecer mais vezes na semana. Em breve teremos mais informações no portal da prefeitura”.
A professora Lays ressalta que encontrou na internet a oportunidade de contribuir com o curso. Como enfermeira, ela refletiu sobre o que deveria abordar. “Fui vendo as lições passadas, provas, questões e percebi que tinha muita questão relacionada à saúde, que é Ciências da Natureza e suas Tecnologias. Anatomia, reprodução humana, genética, epidemiologia. Foi montando minhas aulas em cima disso, mandava para eles vídeo aulas, que é muito atrativo para adolescentes, eles conseguem aprender e absorver muito conteúdo. Eu trazia as questões passadas do Enem, para eles resolverem e integrarem mais com a prova”.
A professora de Biologia, que lecionou pela primeira vez em um curso pré-Enem aprovou a iniciativa. “Muito importante, sobretudo, quando vemos resultados como o da Gleice. Ficar envolvida num projeto social é muito bom, gratificante. A Gleice com certeza foi a aluna mais interessada que eu tive, ela contava o que tinha lido em casa, levava o exercício resolvido, questionava, tirava dúvidas. Uma aluna bem dedicada, com muita vontade mesmo de passar nesse Enem. Poder contribuir com meu conhecimento é muito bom”.
Andreza classificou como “experiência incrível” as aulas de Literatura. “Sempre amei literatura e meu curso de Letras. Foi quando o Rainer foi à faculdade e ofereceu essa oportunidade para a gente, não formei ainda, formarei esse ano. Na hora já pulei e falei que eu queria, porque sempre tive vontade de participar de algum projeto social e sempre tive muita sede de dar aula, quanto mais, melhor. Foi uma experiência incrível, tive mais certeza ainda que amo a sala de aula e estar ali com os alunos, passando o pouco que eu sei para eles”.
Também foi possível sanar as dúvidas dos alunos sobre redação, uma das partes mais temidas no Enem. “De certa forma sim, porque Literatura, estudamos as escolas literárias e também como o texto se constrói, para fazermos a interpretação”.
O resultado da recém-aprovada em Direito é comemorado por Andreza, que não poupa elogios à aluna-amiga. “A Gleice é uma criatura muito particular para mim. É muito especial. Ela sentava bem na frente e eu sou muito risonha, tinha hora que eu olhava para ela e começava a rir, ela ria também e ficava aquele looping eterno a gente rindo. Mas, ela sempre foi muito dedicada, todas as aulas ela ajudava, tudo que eu perguntava ela tentava responder, se interessava. Passou a conversar comigo nos intervalos aqui, falei que eu trabalhava no João Martins, ela acabou indo estudar lá e virou minha aluna lá também. E acabou sendo minha amiga na vida, porque estou muito feliz por ela e não tenho como expressar o tanto que ela foi especial no meu 2018 e certamente uma das pessoas mais especiais que conheci e que torço para ter sucesso”.
O espaço do polo da UAB teve papel importante para o sucesso do projeto. A coordenadora Flávia parabeniza a iniciativa. “Não conhecia o projeto, recebemos a visita do Rainer, que eu também não conhecia, um jovem rapaz com tantos sonhos e projetos. Tão interessado em querer fazer o diferencial. Prontamente abrimos as portas para receber os alunos. Ficamos muito felizes, somos o polo de uma universidade federal, então tem tudo a ver com o trabalho que fazemos”.
Gleice seguiu recebendo elogios, o que demonstra que sua trajetória foi marcante. “Ela se destacava entre os outros alunos, era uma das primeiras a chegar, já entrava e ocupava os lugares da frente. Na hora do lanche também ela tinha o seu destaque, ficava ansiosa pelo café que preparávamos com muito carinho para eles. Era um momento de descontração, relaxar, fazer amizades e foi muito bom receber esses jovens aqui”.