“A apuração dos fatos sempre será um dos princípios basilares do jornalismo”
DA REDAÇÃO – Em carta datada de 30 de maio de 1973, o editor do Washington Post, Ben Bradlee, acompanhado dos jornalistas Carl Bernstein, Bob Woodward, escreveu: “Enquanto o jornalista diz a verdade, não é seu trabalho se preocupar com as consequências. A verdade nunca é tão perigosa quanto uma mentira a longo prazo. Eu realmente acredito que a verdade liberta os homens”. Essas reflexões parecem inspirar a trajetória de João Senna dos Reis, o primeiro editor do Diário de Caratinga. Um dos mais renomados jornalistas do interior de Minas, ele reconhece a importância do compromisso que a imprensa precisa ter com a apuração dos fatos, com a verdade.
Breve relato da vida de uma grande pessoa
Para apresentar João Senna dos Reis aos nossos leitores, usamos trechos da matéria “João Senna relembra os 48 anos de jornalismo e ”pendura as chuteiras””, publicada pelo Diário do Aço em 21 de outubro de 2018.
Nascido em 30 de abril de 1947, no município de Jequeri, próximo à Ponte Nova, João Senna cresceu trabalhando na roça, mas sempre estudou. “Eu me lembro que desde os cinco anos eu levantava antes do sol nascer para aguar uma montanha de cebolas, só depois é que tomava um café reforçado, desses de roça. Apesar do trabalho árduo, os meus pais nunca abriram mão do meu estudo. O meu pai era semianalfabeto, mas ele me ensinou a respeitar a minha mestra, e logo eu entendi que a professora é a primeira autoridade. Acho que o tropeçar, cair e levantar faz parte do processo de crescimento de uma pessoa”, disse João Senna.
Depois de um período no município vizinho, Santo Antônio do Grama, João Senna e seus familiares se mudaram para Belo Horizonte no fim da década de 1960. Na capital mineira, a família enfrentou dificuldades e passou a comercializar frutas, verduras e legumes em carrinhos ambulantes. Era o momento da superação.
Como tradição da época, um rapaz da família sempre era designado para ser padre. João Senna foi o escolhido para seguir a carreira religiosa. O jornalista conta que no início até acreditou ter vocação, mas acabou desistindo. Porém, ele afirma que foram os conhecimentos adquiridos no seminário que o auxiliaram na formação de seu caráter e que, possivelmente, o influenciaram a tomar o caminho da comunicação. “Eu brinco que, quando inventaram a minissaia, eu desisti de ser padre. Brincadeiras à parte, tive um grande reforço intelectual quando fui para o Pré-Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Muzambinho, e posteriormente para o Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont, ambos da Ordem dos Franciscanos. Foi algo que transformou minha vida, pois aprendi latim, francês, adquiri conhecimentos que me prepararam para a vida aqui fora”, contou Senna.
Assim que deixou o seminário, João Senna voltou para Belo Horizonte. Nessa época houve golpe de 1964. “Em 1965 completei 18 anos e fui me alistar. Por causa do regime em vigor, o certificado de reservista não estava sendo entregue. Então, mesmo com uma boa formação e sendo selecionado nas entrevistas, no momento de contratação eu era dispensado por não ter o documento. Precisei voltar para as ruas com o carrinho de verdura. Em conversa com uma cliente, ela me ofereceu um emprego na empresa do marido dela, a Minas Gráfica Editora, assim que eu tivesse o meu certificado. De fato, ocorreu assim e fui trabalhar na empresa do Olavo e Sidney”, pontua Senna.
Trabalhando como impressor na gráfica, João Senna conheceu a repressão do regime à imprensa e precisou prestar depoimentos no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). “Mesmo contra as recomendações, na gráfica eram rodados materiais de grêmios estudantis, entre outras entidades, que iam contra o governo militar. Por isso eu tive que parar a produção e fui convocado para depor por diversas vezes. Até que eu não fui ameaçado de morte nesta época, mas a cobrança e vigilância eram duras”, afirma João Senna.
Um dos clientes da Minas Gráfica era o senhor Wilton Rodrigues, fundador do Diário da Manhã e, posteriormente, diretor do Diário do Aço e fundador do Diário de Caratinga. Ao adquirir um maquinário de impressão, Wilton convidou Senna para vir ao Vale do Aço por três meses, para orientar os demais funcionários a respeito da operação da máquina. Rapidamente, Senna passou de impressor a repórter e, posteriormente, a editor.
“Em 1969 vim para Ipatinga pela primeira vez, com a intenção de ficar 90 dias. Mas, antes do fim desse prazo, muitas pessoas me questionaram se eu não desejaria ficar e construir uma cidade. Ipatinga, nessa época, era algo meio estranho. De um lado da linha do trem, havia os bairros com infraestrutura e, do outro, toda uma cidade ainda por ser feita. Contudo, eu me encantei pelo povo daqui e decidi ficar. Logo, o Wilton viu que eu tinha uma capacidade para escrever, e fui chamado para compor a redação do Diário da Manhã”, relembra o jornalista.
A entrevista
Hoje João Senna mora no Espírito Santo. Como nesta semana o Diário de Caratinga comemorou seus 28 anos de fundação, nada melhor do que ouvir os ensinamentos do Mestre João Senna. A começar por: “A apuração dos fatos sempre será um dos princípios basilares do jornalismo”.
Ben Bradlee disse certa vez que “escrever é habilidade adquirida”, mas no caso de João Senna dos Reis somos obrigados a discordar do grande editor do Washington Post, pois Senna já nasceu com essa habilidade.
Quando criança, você já imaginava qual seria a sua profissão no futuro?
Na década de 1950, o Brasil era um país eminentemente agrícola, e as crianças estavam livres dessa pressão. Assim, nos primeiros anos de vida, tive a felicidade de brincar à vontade. Já crescidinho, passei a ajudar meu pai na lavoura.
O que aprendeu no seminário o ajudou no exercício do jornalismo?
O ensino no Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont, primava pela qualidade e rígida disciplina na hora das aulas. Mas havia tempo para atividades esportivas e para o lazer. Essa formação salutar, sem dúvida, foi uma base importante para que muitos ex-seminaristas se destacassem no jornalismo e em outras atividades que exigem um bom nível de conhecimentos.
De impressor a editor, como foi essa transição?
Foi um processo longo. Em novembro de 1969, fui cedido pela Minas Gráfica e Editora para fazer as primeiras impressões do Diário da Manhã, que funcionava na rua Belo Horizonte, em frente à antiga rodoviária de Ipatinga. Muitas vezes o revisor deixava passar alguns erros, e eu fazia as correções. O jornalista e advogado Frederico Ozanam Barcellos, um dos colaboradores do jornal, percebia essas situações. Ele sugeriu que me submetessem a um teste como repórter. Graças a Deus, fui muito feliz nesse desafio. Desde então, com o passar dos anos, tive a oportunidade de galgar cargos de maior responsabilidade no jornal até chegar à editoria.
E como não havia escolas de jornalismo na região àquela época, cursei Direito na Faculdade do Vale do Rio Doce, em Governador Valadares.
O que tem a dizer sobre o senhor Wilton Rodrigues?
Wilton Rodrigues de Oliveira é merecedor de um capítulo especial na história da imprensa regional. Depois do pioneirismo de instalar o Diário da Manhã, em sociedade com José Francisco de Oliveira, anos mais tarde, a convite de Marcondes Tedesco e Parajara dos Santos, passou a integrar a direção do Diário do Aço. Ousado e inovador, Wilton sempre procurou dotar o jornal das mais modernas tecnologias que começaram a dar nova roupagem aos jornais a partir da década de 1980.
E sobre a criação do Diário de Caratinga?
Com a projeção alcançada pelo Diário do Aço, muitas cidades do entorno de Ipatinga se interessaram em instalar sucursais ou jornais locais que eram impressos no DA. No caso específico do Diário de Caratinga, além da verificação da viabilidade do projeto, houve também um fator de ordem afetiva. Natural de Imbé, Wilton atuou muitos anos em Caratinga, e assim não mediu esforços para colocar essa ideia em prática.
O senhor foi o primeiro editor do Diário de Caratinga. Como foi essa experiência?
Com muito empenho, indicado pelo Wilton, prestei a minha colaboração ao Diário de Caratinga, um trabalho facilitado pela experiência na implantação do Diário da Manhã.
Ainda cabe falar da ameaça ao impresso com o advento da internet?
A essa altura, não cabe mais esse tipo de especulação. A chegada da internet, de forma avassaladora, instalou esse temor. Mas logo os jornais descobriram mecanismos para se integrar e tirar proveito da nova tecnologia. Então, o caminho agora é persistir nessa direção.
Temos hoje o termo ‘fake news’. Falta atualmente melhor apuração dos fatos?
A apuração dos fatos sempre será um dos princípios basilares do jornalismo. Essa conduta se tornou ainda mais importante a partir da popularização das chamadas mídias sociais, para se contrapor ao imediatismo e à falta de compromisso de muitos sites voltados exclusivamente para o sensacionalismo.
Notamos que, com a internet, as pessoas parecem não estar dispostas a ler um texto mais longo, com riqueza de detalhes. Como você analisa a preferência por pílulas a um texto mais apurado?
O texto em pílulas, embora largamente utilizado, não satisfaz ao leitor que exige uma informação mais aprofundada. Prova disso é que articulistas com notável conhecimento para avaliar assuntos mais complexos continuam em evidência.
O senhor passou por diversas editorias. Qual é a sua preferida?
Cada editoria é cercada por suas especificidades e exigências. Assim, quem teve a oportunidade de passar por várias áreas, adquire um pleno conhecimento de como fazer um jornal. Difícil indicar uma editoria preferida, mas ficaria com Cidades, pela possibilidade de uma maior integração com todas as parcelas de uma comunidade.
Mark Twain, autor de livros de sucesso e também jornalista, se referiu à segunda citada profissão com uma afirmação letal: ‘A função da imprensa é separar o joio do trigo e publicar o joio’. Em suma, as tragédias alimentam a imprensa?
Essa definição apontando a imprensa como responsável por separar o joio do trigo já passou por algumas atualizações. Em decorrência das modificações de conceitos e costumes, a fronteira que antes separava o joio do trigo, o bem do mal, etc. passou a comportar várias interpretações. Nesse contexto, os jornais têm de buscar uma posição de equilíbrio para não se deixarem levar por ondas revisionistas que assolam o nosso país e o mundo.
Nos últimos anos, a imprensa sofreu ataques de determinado grupo político. Como chegamos a esse ponto?
A tentativa de manter a imprensa amordaçada é uma velha prática que, vez ou outra, ressurge sob novo enfoque. Por trás da aparentemente preocupação de resguardar direitos, essas investidas refletem apenas a preocupação de grupos interessados no exercício de um poder ditatorial.
Jornalismo é uma ‘cachaça’, como foi lagar esse ‘vício’?
Essa comparação entre jornalismo e cachaça se justificava pelas dificuldades para o exercício da profissão, devido à precariedade de recursos. Essa situação acabava mergulhando o jornalista num processo desgastante, mas ao mesmo tempo desafiador e instigante. Mas há muito o ambiente de uma redação é muito diferente daquela agitação em meio a impressoras, salas enfumaçadas pelo consumo de cigarros, etc. Com o advento do computador, as redações agora estão mais silenciosas e sem aqueles componentes que levavam ao “vício”.
E nessa nova configuração, o que antes era uma rotina, bater ponto nos botecos antes de ir para casa, agora é algo esporádico no meio jornalístico.
- Senna folheando as páginas do Diário do Aço (Foto: Arquivo DA/Wôlmer Ezequiel)
- João Senna, um dos mais renomados jornalistas do interior de Minas. Embora no expediente constasse o nome de Marcondes Tedesco, ele foi o editor do Diário de Caratinga em suas primeiras edições. Depois, Tedesco assumiu a edição deste periódico (Foto: Arquivo DA/Wôlmer Ezequiel)
- Na redação do Diário do Aço ((Foto: Arquivo DA/Wôlmer Ezequiel)
- “Wilton Rodrigues de Oliveira (foto) é merecedor de um capítulo especial na história da imprensa regional”, afirma João Senna. Senhor Wilton é o fundador do Diário de Caratinga (foto: arquivo)
- Marcondes Tedesco e Parajara dos Santos são duas referências do jornalismo regional. Senna conviveu e aprendeu com ambos. Marcondes Tedesco também foi editor do Diário de Caratinga. Jornalista, cronista e escritor, Parajara faleceu em março de 2018. Em 1979, eles deixaram Governador Valadares e vieram para Coronel Fabriciano, onde fundaram o Diário do Aço, que ainda tinha como diretores Antor Santana e Carlos Alberto Sobreira. Posteriormente, o DA foi adquirido por Wilton Rodrigues (fotos: arquivos)
- Citados logo no começo da matéria, os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein e o editor Ben Bradlee, todos do jornal Washington Post, são considerados grandes nomes da imprensa de todos os tempos. Eles foram os responsáveis pela apuração do Caso Watergate, que culminou com a renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon (Foto: Arquivo Washington Post)
- Mark Twain é o pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens. Ele nasceu na localidade de Florida, Missouri, em 30 de novembro de 1835 e faleceu em Redding, Connecticut, em 21 de abril de 1910. Foi um famoso escritor e humorista norte-americano, autor de obras bastante conhecidas, como “The adventures of Tom Sawyer”, publicada em 1876 e apontada como “o maior romance norte-americano”. Apesar do sucesso dos seus livros, Mark Twain foi basicamente um jornalista. Senna na entrevista faz uma reavaliação da famosa frase de Twain sobre o papel da imprensa (Foto: Getty Images)