Publicação, que completa 40 anos, se tornou referência na área cultural. O editor Camilo Lucas conta um pouco desta história
Quarta-feira, 18 de junho de 1975. Caratinga vivia um dia típico de final de outono. E, em comparação com os dias atuais, a cidade lembrava uma galáxia distante: – eram, no máximo, dois canais de TV e o rádio ligado o dia todo. Internet era algo só imaginado no cinema. Computador, nem pensar; era tudo na base da máquina de escrever, estêncil e mimeógrafo. Em relação à cultura, não existiam as informações recebidas ao atacado como hoje. Era preciso garimpar para saber o que estava acontecendo.
Os fatos marcantes daquele dia foram: o príncipe Faiçal Bin Mussaed é decapitado em público, em Riad, pelo assassinato do rei Faiçal da Arábia Saudita; no Brasil, a Folha de São Paulo estampava em sua
manchete que o presidente Ernesto Geisel entrava com um pedido de ‘salário extra’ para trabalhadores que recebiam até cinco salários mínimos. Este salário viria dos fundos do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP); em Portugal, católicos e comunistas brigavam nas ruas de Lisboa. Na música, a banda America liderava a parada da Billboard com o compacto “Sister Golden Hair”. Em Caratinga, os amigos Camilo Lucas e Márcio Soares Batista lançavam a primeira edição da revista Jararaca Alegre. A data coincide com o aniversário de Paul McCartney, de quem Camilo é fã de carteirinha. Anos mais tarde, ele idealizaria a campanha para que o eterno beatle se apresentasse em Belo Horizonte e falasse ‘Uai’.
Agora a revista completa 40 anos. E as comemorações incluem exposições, shows e lançamentos de edições especiais. Camilo Lucas, 52 anos, mas com um corpinho de 51, descreveu assim sua criação: “Uma vida. 40 anos é uma vida. Passeando pelos arquivos da Jararaca Alegre, vemos toda uma geração de estudantes que hoje são médicos, advogados, empresários, músicos, artistas plásticos, escritores, guerreiros. Ali, nas páginas do jornalzinho, eles eram apenas garotos. A Jararaca virou revista e hoje não brinca mais com os colegas. Hoje publicamos ideias, arte, humor, poesia, rock and roll. Mas existe toda uma história ali, e está história queremos contar este ano na grande festa que estamos preparando pra comemorar esta efeméride. Efeméride é ótimo”.
E como a vida começa aos 40, Camilo Lucas fala sobre a Jararaca Alegre, de seu processo criativo e do que espera para o futuro. Afinal, não é fácil passar quatro décadas fazendo as pessoas rirem e pensarem.
Infância. Ao ouvir essa palavra, o que lhe vem à memória? Uma cena.
– Eu e meus amiguinhos, Marcelo e Alexandre, brincando na rua onde morávamos (Travessa João Coutinho). Eles me colocando no latão de lixo e tentando me virar dentro do rio Caratinga. A mãe do Alexandre chegou e me salvou. Os dois, depois, foram cofundadores da Jararaca junto comigo.
Sua relação com a família, em algum momento, foi afetada por sua decisão, ser artista?
– Sim, porque não tem horário, não tem feriado, não tem segurança financeira, não tem sossego. Tem de acostumar e criar uma forma peculiar de convivência.
O que você não consegue trazer da adolescência e que faz falta? Pode ser um sentimento, um objeto que tenha perdido, um comportamento.
– Meus dentes.
Quando você percebeu sua vocação e quando você sentiu que as pessoas também reconheceram suas habilidades artísticas?
– Quando eu tinha seis anos e meus coleguinhas ficavam em volta de mim na hora do recreio pedindo pra eu desenhar o Batman e o Robin com giz no chão, na escola Sinfrônio Fernandes.
O que abriga o quarto do Camilo? Mudou muito em relação ao que era em sua adolescência?
– Meu quarto hoje é minha casa inteira e abriga as mesmas coisas: Meus discos, livros, quadrinhos, vídeos, memorabilia, material de desenho, estoques de revistas Jararaca Alegre, minha imaginação, minha bagunça. Alguns discos estão guardados realmente desde minha adolescência.
De onde veio a inspiração para o nome Jararaca Alegre?
– De uma historinha do Walt Disney, estrelada pelas bruxinhas “Maga Patalógica” e “Madame Min”, em que elas foram participar de uma Convenção das Bruxas na cidade de “Jararaca Alegre”. Quando li, achei que esse nome seria bom pro nosso jornalzinho, pois o que tínhamos era uma bosta: “Um Barato Que Não Sai Caro”
Quais suas principais influências?
– Quadrinhos, rock e literatura, nesta ordem.
Minha cultura é pop. São os heróis da Marvel e DC; os quadrinhos nacionais de Angeli, Glauco e Laerte; a Revista Mad; o Pasquim e a Bundas.
A atitude e o som de músicos e bandas como Beatles, Rolling Stones, Casa das Máquinas, Raul Seixas, Rita Lee & Tutti Frutti, Mutantes, Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd, Velvet Underground, David Bowie. Enfim, o rock em todas as suas vertentes: Rockabilly, Clássico (rock feito nos anos 60 e início dos 70, quando não havia rótulos), Progressivo, Glitter, Punk, Grunge, Hard, Heavy… E tem a MPB que é bem rock and roll, como Chico, Caetano, Gil, Elis, Alceu Valença…
Na literatura: Hemingway, Cortázar, Érico Veríssimo, Garcia Marques, Woody Allen (as crônicas que ele escrevia nos anos 70), Norman Mailer, Jorge Amado, Ignácio Loyola Brandão, Ruy Castro…
Falei até agora das minhas influências primordiais, a partir das quais vieram todas as outras. Mas paro por aqui senão isso vai ficar uma lista telefônica, só quero encerrar com a principal: Ziraldo. Só comecei a saber o que era cartunismo quando meu avô me apresentou o trabalho dele, falando que ele era daqui, que a família dele era amiga da nossa e tals; e depois, quando lhe entreguei uma das primeiras Jararaca Alegre e ele a autografou pra mim (tenho até hoje) e me incentivou a continuar o que eu estava fazendo.
Você já teve problema ao retratar alguém por meio de caricaturas?
– Só quando mexi com gente que eu não conhecia. Como a gente brincava muito com as pessoas da cidade, um amigo me pediu pra fazer uma coluna zoando a turma dele, que eram os para-gliders da cidade na época. Ele me deu as dicas, pois eu não sabia das suas piadas internas. Um deles me levou na justiça. Tentei falar com ele antes pra evitar ter de ir na frente do juiz, mas ele mandava falar que não estava – e olha que eu fui é no trabalho dele, várias vezes. Era uma bobagem tão grande que eu li o pensamento do juiz quando estávamos na frente dele: “Nossa, que sujeito babaca, me fazendo perder meu tempo por uma bobagem dessas”. No fim, me mandou fazer uma retratação, que era exatamente o que eu iria propor a ele se ele tivesse me recebido, poupando assim o tempo do juiz e o dinheiro do contribuinte.
Sua relação com a censura. Você foi vítima dela também? Sei que seu trabalho, em parte, era de denúncia.
– É engraçado, eu tive sim, pois passei a juventude sob um governo ditatorial, que exercia controle sobre manifestação de pensamento e esse controle era exercido na maior parte por gente que não pensava. É um paradoxo… e isso acabava chegando às esferas inferiores, com cada microcosmo social do país tendo suas autoridades autoinvestidas em cargo de censor.
Assim, sofri algumas vezes com censura no tempo do colégio: uma vez, por causa de um jornalzinho apócrifo que foi distribuído no Estadual e atribuído a mim e minha turma; outra, quando proibiram a J.A. de circular dentro do colégio e nós ficávamos distribuindo do lado de fora do portão…
De outra vez, quando eu e outros amigos fomos acusados de sermos “maconheiros e comunistas”, e meu avô foi advertido por um seu amigo capitão do Exército, de que eu estava no campo de observação deles.
E teve uma vez que foi bem engraçado. Quando surgiu o primeiro convite da NASA para um astronauta brasileiro, eu era chargista do Jornal do Norte, em Montes Claros, onde tem uma unidade do exército. Eu viajei na maionese e comecei uma série de charges com o presidente Figueiredo intitulada “O Fig na Lua”, como se ele fosse ser o astronauta brasileiro. Cada dia uma charge ia mostrando os preparativos, o voo, a chegada à lua, até que o editor me mandou parar porque recebeu uma advertência do pessoal do exército e ele não queria que eu tivesse problemas. E nem eram críticas ao governo, era mesmo a transformação do presidente ditador em um personagem de quadrinhos, não tinha conotação de esquerda, subversiva, nada, mas ridicularizava um cara que todos sabiam que não tinha o mínimo senso de humor…
Enfim, eu peguei o fim da ditadura, quando ela já se tornava “ditabranda” graças à abertura “lenta, segura e gradual” iniciada pelo Geisel, e embora tenha passado alguns sustos, eles só serviam pra gente comemorar depois dando uma de herói. Não teve nada mais sério não.
Atualmente, existe algum outro tipo de censura?
– Acho que hoje a censura vem do seu vizinho, do seu amigo na mesa do bar, do seu amigo do Facebook, etc. Existe um patrulhamento muito grande hoje em dia. Opiniões divergentes não são respeitadas, e existe uma “nova moral”, politicamente correta, de esquerda, pseudo-humanitária e socialista, que aponta o dedo na sua cara quando a política era autoritária, de direita, nem um pouco humanitária e muito menos socialista. A de hoje eu acho pior porque ela usa a vitória que obtivemos contra a anterior para por o dedo no nosso nariz.
Sem contar que esse povo é chato pra caralho!
Como se dá o processo de criação das histórias? Há um lugar ideal, facilitador das suas criações?
– Minha inspiração vem do dia a dia, da minha vida pessoal e de meus amigos, do noticiário, da zueira na mesa de bar. Muita coisa que escrevi veio na verdade da minha autobiografia, porque muita coisa que me aconteceu foi coisa de quadrinho, viu… garanto que tem muita testemunha aí pela cidade!
Como foi deixar o mimeógrafo e migrar para a era digital? Você ainda desenha à mão?
– Praticamente só desenho à mão, depois escolho como colorir – se no computador ou diretamente no papel, mas desenho digitalmente também.
Quando fazia o jornalzinho no mimeógrafo, a prática foi levando à “perfeição”. As últimas edições mimeografadas já saíram praticamente em policromia. Depois fomos pro xerox, e, com o barateamento do off-set, chegamos ao céu.
Difícil foi sair do “paste-up” – quando montávamos a arte com a composição e as ilustrações numa folha de papel, para depois ser fotolitada – para o design digital, com os coreldraw/photoshop/ilustrator da vida. Eu não tinha computador e nem saco pra aprender a nova ferramenta. Mas não teve jeito, então aprendi a usar a nova ferramenta, e hoje combino todos os recursos que posso.
Como é ter o talento reconhecido por pessoas como Ziraldo e Ruy Castro?
– Tive alguns momentos com estes dois mestres e até mesmo alguns outros que foram de reconhecimento mesmo. São meus amigos, gostam de mim como pessoa e me fizeram comentários que, vindos da parte deles, foram verdadeiros “certificados de conclusão”. Informalmente e sem alarde, só entre nós ou para algumas pessoas presentes, mas isso me deu uma segurança quanto à qualidade do meu trabalho e de que o caminho que eu escolhi é bom.
E sei que não foi da boca pra fora, porque esses caras não fazem isso. Se o seu trabalho for uma bosta, meu amigo, por favor, não peça a opinião deles, se não tiver uma autoestima muito boa pra aguentar a resposta!
Sua melhor produção? Aquele trabalho pelo qual você se apaixonou, seja pelo processo de criação, seja pelo resultado.
– Tenho uma produção grande, graças a Deus, mas não tem como deixar de escolher a Jararaca Alegre, pois é uma coisa intrinsecamente ligada à minha vida pessoal. A história da minha vida está ali naquele arquivo que eu guardo desde 1975. E é uma obra em construção, que acho que só vai se concluir quando eu concluir minha passagem também.
Seus filhos herdaram sua veia artística?
– Sim. O Felipe é jornalista em BH, hoje na assessoria de comunicação da Cemig; e a Juliana é assistente de direção de arte na W/McCann, no Rio, e se forma esse ano em publicidade. Os dois desenham e escrevem muito bem.
Viver de arte dá pé?
– É tipo aquele rio em que você tem de ficar na ponta do pé pro nariz ficar fora da água. Mas com a porcentagem certa de inspiração e transpiração, mais um pouco de piração, dá sim!
O que motiva seu trabalho?
– Realizar, produzir, fazer acontecer. Bolar uma coisa e fazer todo o processo até se concretizar. O processo é a melhor parte.
Você esperava que a Jararaca Alegre atingisse quatro décadas?
– Nunca pensei nisso. Quando a gente fazia o jornalzinho no colégio, só queria se divertir. Passado o tempo de colégio, fui trabalhar em jornais e continuava publicando uma edição cada vez que a turma antiga tinha oportunidade de se encontrar: festas como caratinguense ausente, carnaval, Tiapo Tia Tiapo, até mesmo no Natal, quando todo mundo vinha pra cidade. Publiquei a Jararaca também como colunas em jornais e revistas onde trabalhei.
Depois, como muita gente, de fora achava a revistinha legal, mas reclamava que só entendia as piadas quem era de Caratinga. Achei, então, que era hora de dar um upgrade e fazê-la de forma mais universal, que pudesse ser lida por qualquer um em qualquer lugar. Aí foram chegando novos colaboradores: cartunistas, escritores, poetas, artistas plásticos e outros, que conheciam a revista e se interessavam em participar.
No fim das contas, com o trabalho amadurecido, me vi aprovado na Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, como projeto relevante nas áreas de Literatura e Artes Gráficas, e, graças ao patrocínio da Viação Riodoce e do Irmão Supermercados, e agora também da Cachaça Caratinga, a J. A. vive uma fase em que busca a excelência em conteúdo e apresentação, chegando a nichos culturais importantes de todo o Estado e também do País.
Fazendo essa trajetória, passaram-se 40 anos, mas eu só me dei conta no ano passado, quando resolvi que este ano faríamos uma comemoração à altura.
Ao longo desses 40 anos, o que mudou no humor?
– Ah, muita coisa. Hoje em dia não basta uma piada ser engraçada. As pessoas estão muito delicadas e sensíveis, se ofendem por tudo. Se antes um jogo de palavras sem sentido valia por ser simplesmente engraçado, hoje o mesmo jogo de palavras encontra mil interpretações diferentes na cabeça das pessoas, e você com a mesma piada pode ser chamado de coxinha e de petralha, de fascista e de comuna, de reaça e de preconceituoso, de preto e de branco, enfim, tá todo mundo neurótico.
A vantagem é que não existe censura oficial, e a censura que você recebe daquele mala que fica enchendo o saco no Facebook você pode simplesmente ignorar ou mandar ele se…
Esse é um ponto. O outro é que surgiram várias novas formas de se fazer humor, vários novos meios e veículos, e com a era digital qualquer um pode ter seu network, sem precisar implorar a um editor. E o que é bom ou o que é ruim, quem decide é quem está do outro lado da tela. Isso facilita e ao mesmo tempo filtra. Só permanece o que é bom.
O cartunista Nani disse que “precisamos do humor para não morrer de realidade”. Essa é a tônica seguida por você?
– Eu tento, sabe… com humor, dá pra encarar e até mesmo superar a realidade, sem precisar por os dois pés pra fora dela. E isso inclui até o mau humor.
Qual sua avaliação do cenário cultural caratinguense?
– Caratinga se renova sempre. E, embora todos os governos se ufanem da nossa cultura, ela é feita mesmo é de baixo pra cima. Tirando leite da pedra. E por incrível que pareça, artista em Caratinga é igual pernilongo: você mata um e aparecem cinco em seu lugar, graças a Deus. A arte em Caratinga brota das pedras portuguesas do Jardim Grande, da grama da praça do Menino Maluquinho, do underground e da elite. Todo mundo em Caratinga é artista. Ser caratinguense é uma arte.
Em cinco linhas, como você sintetizaria sua carreira artística?
– Outro dia eu estava pensando que eu sou um amador profissional. Apesar de ter alguns cursos técnicos de desenho, sou na verdade autodidata, faço arte por diletantismo, e consigo viver dela, pois é o que faço há 40 anos, ou seja, desde adolescente. No fim das contas, não sei onde termina o trabalho e começa a diversão. Sou muito apoiado em minha cidade, e por isso também contribuo com todas as campanhas que sou convidado, com meu trabalho voluntário. E assim, me sinto vivendo bem. E mais: esta resposta deu o dobro de linhas.
O que você espera quando tiver 64 anos?
– Como na música dos Beatles que inspirou esta pergunta, quero ainda estar ganhando presente no Dia dos Namorados, mas acho que dificilmente terei netinhos sentados no meu joelho, muito menos cuidando de um jardim, pois sempre tive preguiça de mexer com terra… Saindo um pouco da música, espero ainda estar podendo criar e produzir, como o Ziraldo, que está fazendo 83 bem agora enquanto respondo a estas perguntas.
Acima de tudo, se Deus me der todo esse tempo sobre a Terra, quero estar com meu coração em paz. O resto, a gente corre atrás, como diria Rubinho Barrichello.