Comparado à dependência química, o vício em jogos on-line tem afetado número cada vez maior de pessoas de diferentes estratos sociais, causando danos diversos
Qualquer pessoa que faça uso do transporte público, provavelmente, já se deparou com a cena: passageiros distraídos, deslizando os dedos pela tela do celular, enquanto as luzes cintilantes do“jogo do tigrinho”– game de cassino on-line– brilham. O que parece ser apenas mais um passatempo digital tem se mostrado uma perigosa armadilha de dependência, perdas financeiras e psicológicas. Tanto é que o Hospital Espírita André Luiz, referência no tratamento ao sofrimento mental e à dependência química há quase seis décadas, na Região Oeste de Belo Horizonte, registrou aumento de 300% nos atendimentos relacionados à ludopatia, o vício em jogos.
Agora, em janeiro de 2025, entram em vigor as novas regras para regulamentar as bets no Brasil, o que promete medidas de proteção aos apostadores e estabelece políticas para prevenção e tratamento dos jogadores compulsivos.
O que muitas vezes começa como uma diversão ou tentativa de ganhar um dinheiro extra pode facilmente se transformar em dependência. Em geral,existem dois tipos principais de plataformas de apostas on-line. A primeira são os jogos como Fortune Tiger, o famoso “tigrinho”, que são basicamente versões digitais de caça-níqueis de cassinos. A segunda modalidade são as apostas esportivas, geralmente focadas no futebol, com palpites que vão desde o resultado final do jogo até se o jogador receberá um cartão amarelo ou vermelho.
De acordo com Pedro Rezende Tanajura, psiquiatra e diretor técnico do Hospital André Luiz, o vício em apostas apresenta uma raiz comparável a de outras dependências, como aquelas relacionadas às substâncias químicas. “O vício em jogos tem muitas semelhanças com a dependência de substâncias. O descontrole de impulsos e o prazer intermitente ativam o circuito de recompensa do cérebro, levando a comportamentos compulsivos”, explica. O hospital atende, atualmente, pacientes que perderam economias, contraíram dívidas com agiotas e enfrentam transtornos como depressão e bipolaridade associados ao vício.
Em um ano, a unidade registrou um aumento de 300%nos atendimentos relacionados ao jogo patológico. Para Tanajura, porém, a assistência hospitalar é apenas a “ponta do iceberg” de um problema muito maior, que não recebe a atenção proporcional à sua gravidade. Antes de chegar ao hospital, as pessoas buscam apoio em grupos de ajuda, na igreja, na família ou no psicólogo. “Quem busca o hospital é porque já falharam esses recursos ou está em um estado muito grave”, aponta ele, que vê o acesso irrestrito às bets como um problema de saúde pública.
“Algo que os pacientes mencionam com frequência é como o valor das apostas perde completamente o significado. Apostar R$ 10 ou R$ 200 se torna indiferente, porque o processo é tão fácil, basta apertar um botão”, comenta.
Uma apostadora, que preferiu não se identificar, relatou à reportagem do Estado de Minas a dificuldade de reconhecer quando o vício assume o controle. “Perco R$ 30 em uma aposta, coloco mais R$ 30 em outra, depois R$ 50, mais R$50…”, conta. Mesmo consciente das perdas, ela admite não conseguir se livrar do hábito, sentindo-se frustrada toda vez que faz um novo depósito, já sabendo que vai perder.
Em algumas ocasiões, o desespero com as contas ou uma simples chateação a levam a buscar o jogo como uma válvula de escape. Outras vezes, joga apenas pela sensação de ver as apostas acontecendo, apesar de saber, como ela mesma diz, que não haverá lucro. Ela também reconhece o ciclo de autossabotagem, com pensamentos como “amanhã vou reduzir” ou “amizades vão e vêm”, ao falar de amigos que se afastaram após ela acumular dívidas com eles.
Quem passa pelo tratamento enfrenta, em algum grau, sintomas de abstinência. “Muitas dessas pessoas nunca tiveram problemas com vícios antes. Os primeiros dias são os que a pessoa vai ter mais vontade de jogar. É necessário um período de separação daquilo que causa a dependência, para que possam se recompor e restabelecer os níveis normais de prazer, e o cérebro precisa de tempo para reajustar esse equilíbrio”, explica o médico do Hospital André Luiz.
O comportamento dos viciados segue alguns padrões: a tolerância(necessidade de jogar mais para sentir o mesmo prazer), a abstinência (mal-estar na ausência do jogo) e o estreitamento do repertório (abandono de outras atividades prazerosas para focar exclusivamente nas apostas). A dependência também está frequentemente associada a outros transtornos mentais, como a depressão.
“Algo que os pacientes mencionam com frequência é como o valor das apostas perde completamente o significado. Apostar R$ 10 ou R$ 200 se torna indiferente, porque o processo é tão fácil, basta apertar um botão”
– Pedro Rezende Tanajura, psiquiatra e diretor técnico do Hospital André Luiz
No consultório da psicóloga Fernanda Duarte, especialista em dependência química, o assunto das bets já é recorrente nas sessões. Cair nessas armadilhas das bets, segundo ela, envolve uma complexa interação de fatores psicológicos, sociais e culturais, o que torna o problema muito maior do que uma simples “escolha consciente”. “Vulnerabilidades emocionais, influências sociais e culturais, predisposição biológica e aspectos psicológicos, como impulsividade e baixa autoestima, desempenham papéis significativos”, aponta.
A psicóloga também destaca que, geralmente, os pacientes procuram ajuda apenas quando começam a perceber prejuízos significativos em diferentes áreas de suas vidas, como na esfera financeira, profissional ou familiar. “Muitos só buscam auxílio quando já estão em um ponto crítico, mas é fundamental reforçar a importância de procurar ajuda ao primeiro sinal de perda de controle”, alerta.
A ciência por trás do vício
O efeito “bets” já está impactando até o consumo das famílias, que têm cortado gastos com lazer e, em alguns casos, economizado até mesmo na alimentação para destinar parte do orçamento às apostas. Estudo da consultoria PwC, divulgado no ano passado, estima que as apostas já representam 1,38% do orçamento médio familiar nos estratos sociais de menor renda no país. O índice é cinco vezes o de cinco anos antes: 0,27%.O cálculo leva em consideração dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O sistema de recompensa do cérebro, que funciona a partir da dopamina–um neurotransmissor ligado ao prazer e a motivação –, é o responsável pelo vício. Quando nos envolvemos em atividades prazerosas, o cérebro libera a dopamina, o que nos faz querer repetir a experiência. O problema é que o cérebro, como aponta o neurocientista Bruno Rezende de Souza,da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é “burro”, pois busca padrões de prazer mesmo onde eles não existem ou são prejudiciais.
As apostas exploram essa vulnerabilidade do cérebro ao prometerem recompensas rápidas e frequentes. “O cérebro minimiza as perdas e superestima as vitórias. Mesmo que a pessoa perca na maioria das vezes, ela se lembra com mais intensidade das poucas vitórias”, explica. As plataformas de apostas e cassinos digitais, segundo Souza, utilizam técnicas sofisticadas para explorar o sistema de recompensa do cérebro humano. “Os jogos facilitam a gratificação instantânea,intensificando o vício. Antigamente, para apostar, era preciso ir a uma lotérica. Hoje, com o celular, qualquer barreira desaparece, tornando o processo mais rápido e perigoso. Então as bets tiram proveito de um sistema fisiológico natural, pois é um facilitador para conseguir prazer”, afirma.
O especialista destaca ainda a vulnerabilidade social brasileira, marcada pela falta de acesso a opções de lazer e entretenimento, o que agrava o vício. Segundo ele,esse é um problema complexo, com raízes em fatores sociais, econômicos e psicológicos, é essencial abordar todos esses aspectos para proteger a sociedade.“Porqueobrasileiroémaisvulnerável às apostas? Pela vulnerabilidade social. A diversidade de prazeres dificulta vício,mostram estudos. Quando há competição entre diversões, o vício diminui. Ir ao cinema é caro, a pipoca é cara, há poucos teatros, quase não existem parques”, explica.
Essa vulnerabilidade também é agravada pela presença de figuras públicas e influenciadores digitais promovendo apostas nas redes sociais, o que contribui para a normalização e o apelo dessas plataformas, especialmente entre os jovens. Segundo o neurocientista, esses ídolos frequentemente passam uma imagem de sucesso fácil e rápido, reforçando a falsa promessa de ascensão social por meio das apostas. A discussão sobre o tema,inclusive, ganhou destaque após uma investigação da Polícia Civil de Pernambuco (PC-PE), que mira no cantor Gusttavo Lima e a advogada e influenciadora digital Deolane Bezerra devido a supostas ligações com esquema de lavagem de dinheiro.
Regulamentação das bets
Desde 1º de janeiro, os dados dos jogadores já estão sendo coletados, e o fluxo financeiro das casas de apostas será monitorado pelo Ministério da Fazenda. Com a regulamentação, o órgão também intensificará a fiscalização sobre as empresas e os apostadores. A regulamentação das bets parte do princípio de que as apostas devem ser vistas como uma atividade de lazer, não como uma forma de ganhar dinheiro ou enriquecer.
O Sistema de Gestão de Apostas (Sigap) será responsável pelo envio contínuo de informações ao governo. Inicialmente, essa transferência de dados será feita de forma escalonada devido ao grande volume. Para jogar no mercado regulado, os apostadores precisarão se recadastrar nas plataformas, com reconhecimento facial e conta corrente. Aqueles que preferirem não migrar poderão retirar seus fundos das antigas plataformas. As casas de apostas autorizadas agora devem operar sob o domínio bet.br.
As operadoras são agora obrigadas a monitorar o perfil dos jogadores e implementar ações para evitar problemas relacionados ao jogo patológico, como limites de apostas e alertas de segurança, embora o texto da norma não detalhe como isso será feito. Além disso, o Ministério da Fazenda afirma que acompanhará as transações financeiras para identificar atividades suspeitas e evitar o superendividamento. Uma mudança importante é a proibição de crédito para apostas, aceitando apenas débito e sistemas pré-pagos, para minimizar o endividamento.
Outra área afetada pela regulamentação é a publicidade.A portaria proíbe propagandas enganosas ou que apresentem as apostas como uma forma fácil de enriquecer ou complementar a renda.As campanhaspublicitárias deverão enfatizar o caráter recreativo das bets e incluir mensagens que alertem sobre os riscos do jogo excessivo. Essa é uma tentativa de conter o apelo exagerado das apostas, que têm se popularizado especialmente entre os jovens.
Fonte: Estado de Minas
- Hospital André Luiz, em BH, registra aumento de 300% nos atendimentos relacionados à dependência de jogos de apostas crédito: Marcos Vieira/EM/D.A.Press