Sociólogo Eliéser Ribeiro fala sobre esse sistema de governo e ressalta: “democracia é o regime da tolerância, da convivência, da coexistência, do viver junto”
DA REDAÇÃO – 25 de outubro é considerado o Dia da Democracia no Brasil. A palavra ‘democracia’ é muito dita, mas o que significa esse sistema de governo? Para entendermos, o DIÁRIO entrevistou o professor Eliéser Ribeiro, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Sociologia pela UFMG. Ele é professor universitário há 10 anos e reside em Manhuaçu. Professor Eliéser Ribeiro disseca esse conceito e faz uma análise da democracia nos dias atuais, caso da influência das redes sociais nesse processo. Sobre a durabilidade deste tipo de regime, o sociólogo é categórico ao afirmar: “Políticos ruins passam, a democracia fica”.
A DATA
A data foi escolhida devido a um episódio histórico: o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, no dia 25 de outubro de 1975. Herzog morreu numa sessão de tortura no DOI-CODI (Destacamento de Operações Internas – Comando Operacional de Informações do II Exército. Incialmente, foi dito que Herzog teria se matado, porém a verdade veio à tona e sua morte provocou a primeira reação popular contra os excessos do regime militar de 1964, tornando-se um marco na luta pela redemocratização do Brasil.
Na democracia, o poder vem do povo (“demos” = povo e “kratos” = poder). Os governantes são eleitos por um período limitado de tempo e sua atuação sempre está subordinada à lei, ou seja, a uma ordem jurídica. A democracia tem longa história. Nasceu na Grécia, no século 6 a.C. O povo se reunia na ágora, que era a praça pública de Atenas, e deliberava sobre as questões relacionadas à cidade. O voto era direto.
Nesse tipo de regime, o povo escolhe seus representantes. Optam pela continuidade ou pela mudança, embora muitas vezes “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”, frase essa extraída do livro ‘O Leopardo’ de Giuseppe Tomasi di Lampedusa.
Como disse o educador Paulo Freire, “a democracia não pretende criar santos, mas fazer justiça”. Então, VIVA A DEMOCRACIA.
A ENTREVISTA
Segundo o conceito, “Democracia é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal”. Podemos dizer que o Brasil segue esse conceito?
Primeiramente falar em democracia pressupõe um processo histórico e comparativo. É como se eu medisse a realidade com uma régua. Tem-se mais ou menos democracia. Agora referindo ao ponto colocado na pergunta: este é um conceito formal de democracia e nesse sentido podemos dizer que vivemos uma democracia. Temos as eleições regulares, os cidadãos participando e os políticos candidatando. No entanto, um conceito mais amplo leva em conta outros fatores que não apenas o formal. E falar em democracia de forma ampla tem que se analisar pelo menos 3 fatores importante: as relações sociais, as relações entre as instituições e a distribuição de poder dentro de uma sociedade. E nesse sentido o Brasil vai muito mal. Em primeiro lugar, no campo das relações sociais, temos uma extrema desigualdade social e de renda e uma sociedade muito violenta. Isso afeta diretamente a confiança entre as pessoas, nos relacionamentos e no dia-a-dia. Muita gente anda com medo pelas ruas. O país tem uma grande massa de pessoas em situação de extrema pobreza e também carrega uma média de mais de 50 mil homicídios nos últimos anos. Isso equivale a uma guerra. Em segundo lugar, as relações entre as instituições, a gente percebe que a lei não funciona igual para todos, quem tem mais dinheiro tem acesso a benefícios e privilégios que o restante da população não tem. E em terceiro e último lugar temos o poder. Quanto mais distribuído o poder numa sociedade, mas democrática ela é. Quando vemos juízes e desembargadores com privilégios, políticos sendo julgado de forma diferente do restante da população, quando vemos a cobrança desigual de impostos, tudo isso indica poder concentrado de forma errada na mão de poucas pessoas. Vejamos o orçamento público das nossas cidades, onde são investidos os principais recursos? Geralmente nos centros, nos bairros mais nobres. Quem geralmente tem o perdão das suas obrigações? Os ricos e mais abastados.
Um dos questionamentos sobre a Democracia no Brasil é sobre o voto obrigatório. Existe distância entre democracia e obrigação?
Esse é um ponto importante e que muita gente boa faz confusão. Uma democracia pressupõe direitos e deveres. O comparecimento nas urnas é um dever e não o voto. A pessoa pode ir e anular o voto. O voto nulo é também uma expressão. É dizer: “tem este sistema aí que está funcionando e ninguém me representa”. Mas deixar de participar não é uma opção. A não ser que você vá viver isolado, como um ermitão na floresta. Ainda assim ele não está desobrigado de seus deveres. Mas enquanto viver em sociedade é imperativo alguns deveres. Comparecer à justiça eleitoral é um deles.
De outro modo, pesquisas mostram que votar é um aprendizado, tem um efeito pedagógico. Quanto mais se vota, melhor se vota no futuro. É importante que as pessoas sintam e saibam o peso da sua participação, mesmo sendo infinitesimal, 1 (um) voto em 100 (cem) mil por exemplo.
Vale ressaltar também, que em lugares em que o voto não é obrigatório, como nos Estados Unidos, por exemplo, quem tende a participar menos são os mais vulneráveis: pretos e pardos, imigrantes naturalizados, mulheres, mais pobres etc. No Brasil como o comparecimento é obrigatório todos esses grupos precisam de tempos em tempos comparecer e decidir.
Passados dois anos, como o senhor avalia o comportamento do eleitorado nas últimas eleições presidenciais? O brasileiro está maniqueísta?
Na minha opinião a eleição do presidente Bolsonaro foi uma completa tragédia para a história Brasil. Vamos demorar a ter a real dimensão disso. Vamos ter uma noção no futuro dos erros econômicos, no meio ambiente, na gestão da coisa pública, na desregulação da sociedade e até na saúde pública como estamos vendo com os óbitos com a covid-19. Aquela foi uma eleição totalmente fora do padrão. Em primeiro lugar, ela foi marcada pela desesperança, pelo desgaste do sistema político implodido pela Lava Jato. Teve facada, ausência de debate e o mais relevante houve uma avalanche de “fake news”. Durante a campanha houve uma comunicação direta completamente tóxica, agressiva e mentirosa que afetou profundamente a opinião pública. Esse elemento ajudou a manipular os medos e os ódios escondidos da população brasileira, que veio como enxurrada na urna, elegendo Jair Bolsonaro. Assim como o rádio influenciou muito nas décadas de 40,50 e 60, a TV influenciou muito os anos de 70, 80 e 90, a internet veio como uma bomba para influenciar e decidir atualmente.
Sobre o maniqueísmo: o Brasil vem se dividindo desde a eleição entre Dilma e Aécio. Eu acho que é um pouco natural que isso aconteça. Organiza a cabeça do eleitor. Simplifica a coisa. Política é difícil, tem muitas nuances. Numa o cara está certo, noutra está errado e noutra está mais ou menos certo e decifrar isso tudo é difícil para o eleitor. Por isso a polarização ajuda a organizar as ideias. Contudo, essa polarização hoje está dentro das nossas casas. Vemos famílias completamente divididas (muitos tem grupos de whatsapp separados…risos), opiniões muito fortes e antagônicas. No meu entendimento, a ascensão de Bolsonaro acabou ressaltando o pior na política e nas pessoas, que são a raiva, o ódio, o preconceito, a mentira. Estamos trabalhando atualmente na situação de muita tensão e isso prejudica qualquer diálogo.
A que o senhor atribui a polarização política no Brasil atual? Esse fenômeno acontece em outros países?
Esse fenômeno é comum. É como se divide a política em qualquer lugar do mundo. A ideia de direita e esquerda começa depois da revolução francesa com a divisão do parlamento, depois a Inglaterra adotando padrões semelhantes. Do lado direito se sentavam os deputados mais ligados aos valores de liberdade, do livre comércio, geralmente os mais ricos. Do lado esquerdo se sentavam os deputados mais ligados a valores de igualdade, solidariedade e ligados a causas trabalhistas. É muito importante para uma democracia que os dois lados existam, se respeitem e que disputem eleições limpas. O eleitor que vai decidir.
Agora, a extrema polarização que existe hoje no Brasil se dá pelo empobrecimento do debate político. Chegamos num estágio em que pontos pacíficos de concordância como por exemplo, se a terra é plana, se vacina faz efeito, estão precisando ser rediscutidos. Isso é um atraso completo. Na década de 1990 discutíamos genoma, a questão da ética da clonagem, efeitos da globalização, aquecimento global agora estamos discutindo se um remédio indicado para malária, pode ser usado indiscriminadamente para covid. E o que é mais vergonhoso temos um presidente que corre atrás de uma ema para fazer propagando do remédio. É de doer!!!
Como o senhor avalia a presença das redes sociais. Elas estão influenciando o processo democrático?
A resposta é um categórico sim! A rede social é nossa praça. Os gregos faziam política na Ágora (praça pública em Atenas, dá uma pesquisada no Google depois), a rede social é nossa Ágora. Lá que são discutidas as questões coletivas agora. Vamos refletir um pouco, há 30 anos qualquer opinião que fosse publicada passava por um jornalista, depois um editor, depois patrocinador e etc. Hoje em dia, você pode tirar uma foto de um buraco na rua, com seu rosto na frente criticando o governo e assim produzir conteúdo. As redes sociais estão influenciando decisivamente o processo democrático. No entanto, a grande questão é como regulamentar isso para que as “fake news” não viciem os processos de decisões como tem acontecido. Esse é um dos nossos desafios no futuro próximo.
Hoje vemos grupos extremistas. Como falar em Democracia quando tantos propagam a cultura do ódio?
A democracia é o regime da tolerância, da convivência, da coexistência, do viver junto. Quando qualquer grupo que se organiza, se junta para discriminar, agredir, difamar isso enfraquece a democracia. Quando eram indivíduos isolados, com suas opiniões extremadas, o próprio convívio social dava conta de barrar isso. Lembra daquele seu tio que tem umas piadas de mau gosto? Então…Antigamente as pessoas que se sentiam incomodadas iam se afastando ou até repreendiam. Mas com o advento das redes sociais, eles encontraram formas de se organizar, viram que tem outros que pensam como eles e tem o reforço das suas opiniões extremadas. Isso dá mais coragem, dá mais força, e faz este movimento ser mais visível.
Por que é tão difícil para a maioria das pessoas aceitar uma opinião contraditória?
Ninguém gosta, na verdade, de ser contraditado. Pense nas vezes que você foi corrigido por alguém numa conversa. Você teve aquela pessoa que te corrigiu como arrogante ou chata mesmo. No entanto, no Brasil isto ganha um contorno mais interessante, porque as pessoas levam para o lado pessoal. Temos que aprender a separar a opinião da pessoa, dela mesma.
Muitos estudos mostram que uma pessoa para mudar de opinião leva muito tempo. Pois para mudar de opinião ela precisa reconstruir toda uma narrativa que faz a vida dela fazer sentido. As pessoas demoram a assumir que erraram e não estão dispostas a mudar. Por isso mesmo diante de fartas evidências de que a pessoa está errada, ela faz um malabarismo intelectual gigantesco para adaptar a sua “verdade” a realidade.
Isso tem acontecido em abundância durante a pandemia. Bolsonaro era contra dar dinheiro a pobres. Toda uma massa de opinião foi com ele. O Congresso aprovou o auxílio emergencial. Bolsonaro sancionou. Agora ele teve aumento de aprovação. As pessoas tiveram que fazer o sacrifício do intelecto para continuar com o presidente. Depois veio a cloroquina, remédio para malária, com ampla divulgação de ineficácia contra covid. O governo comprou, produziu, pouquíssimos médicos receitaram e os estoques ficaram abarrotados. Agora será a luta contra a vacina coronavac. É muito difícil as pessoas aceitarem que votaram errado para o cargo mais importante do país.
“A democracia é a primeira vítima da desigualdade de hoje”, disse pensador polonês Zygmunt Bauman. Seria utopia falar em igualdade em 2020?
Vou fazer uma analogia com o poeta Manuel Bandeira as utopias são como as estrelas. A gente anda 10 (dez) quilômetros para frente e não as alcanças, mas elas orientaram o caminho. Nunca alcançaremos um patamar de justiça social pleno, mas temos que ser mais justos do que o ano passado, que a década passada. Precisamos repensar estruturas da nossa sociedade o tempo todo para melhorar a justiça social em direção de um pouco mais de igualdade. Temos realidades diferentes na Finlândia, Suécia, Angola e Brasil. Infelizmente o mercado não consegue produzir igualdade ou justiça social. É preciso que o estado assuma essa função e faça a distribuição do capital social ser mais justa. Não estou falando de socialismo, veja bem, pois em muitos lugares ele suprimiu outro valor importante que é a liberdade. Mas não é possível termos uma sociedade tão injusta, tão desigual quanto a sociedade brasileira.
Na segunda-feira (19). O senhor escreveu em seu twitter “Bolívia tem novo presidente apoiado por Evo Morales. A democracia está de volta”. A situação da Bolívia poderia exemplificar a diferença entre a vontade dos ‘poderosos’ e a vontade do povo?
O caso da Bolívia é bastante curioso. Eu visitei a Bolívia em 2009. Evo Morales tinha sido eleito em 2005 e no ano que estive lá ele fazia um referendo para promulgar uma nova constituição para o país. Ele participou da elaboração das “regras do jogo” democrático. Ano passado ele quis mudar as regras para se manter no poder. Deu errado. A oposição se organizou e não aceitou as eleições que Evo havia ganhado. Expulsou Evo do país, perseguiu outros políticos de seu grupo. Deu um golpe e governou por um ano e chamou novas eleições. Aí o grupo de Evo se organizou e ganhou as eleições, tudo dentro das “regras do jogo”. A democracia, como vontade popular, foi restabelecida na Bolívia.
Para finalizar, mesmo com todas as campanhas de esclarecimento em torno de valores humanos e sociedade, a democracia corre perigo de ser vencida por regimes autoritários?
Sim, corre esse perigo! Hoje as democracias no mundo moderno morrem de forma diferente de tempos atrás. Antigamente era exército na rua, opositores presos ou torturados. Hoje em dia é mais sutil. O autor Steven Levitsky escreveu recentemente um livro chamado “Como as democracias morrem”, explicando como acontecem as derrotas das democracias nos dias de hoje. O centro do argumento do autor é que a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar, mas ela é enfraquecida aos poucos em suas instituições, como divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário), com o enfraquecimento da imprensa, com a manipulação da opinião pública através de notícias falsas, desvalorização de valores humanos básicos e por aí vai. O autor usa como exemplo a grande surpresa da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Eles terão novas eleições há duas semanas, vamos conferir a vitalidade da democracia americana. Mas isso é assunto para outra conversa.Experimentamos isso também com o golpe em Dilma Rousseff em 2015. Não quero nem entrar no mérito, se ela era ruim ou boa para o cargo, pois a história mostrou que ela era inábil para a função. Mas quero ressaltar que naquele momento ela tinha o que se chama de tempestade perfeita na política: baixa popularidade, falta de apoio político, escândalos de corrupção e crise econômica. Somado, estas quatro condições foram fundamentais para darem um golpe parlamentar, indo contra a vontade popular expressa nas urnas no final de 2013/2014. Michel Temer tinha apenas apoio político e se salvou. Agora temos Jair Bolsonaro no poder. É preciso que ele termine o mandato. É preciso que se for a vontade da população ele saia somente nas urnas. Estou convencido que todo esse processo é pedagógico, precisamos respeitar as regras democráticas. Políticos ruins passam, a democracia fica.