Funcionários da extinta SUCAM realizam encontro: memórias e uma reflexão sobre o combate a endemias na atualidade
Por Nohemy Peixoto
CARATINGA- Guerreiros. Combatentes que salvaram vidas. Eles atuaram no controle de endemias como Malária, Esquistossomose, Febre Amarela e Doença de Chagas. Na década de 80, a extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública, a SUCAM recebeu um importante reforço com funcionários que atuavam no distrito sanitário de Caratinga.
Em 1991, foi extinta quando era considerada o órgão público de maior presença nas áreas rurais do Brasil. Com a descentralização das ações de controle de endemias, a responsabilidade de combate a essas doenças passou a ser de estados e municípios.
O DIÁRIO esteve no encontro dos sucaneiros do distrito de Caratinga, realizado nos dias 30 de maio a 1° de junho. Muitas memórias e uma reflexão sobre o combate a endemias na atualidade.
DO SERVIÇO À APOSENTADORIA
Agostinho Martins Ribeiro, 85 anos, já se aposentou. Ele se recorda do início da carreira profissional, ainda pela Campanha de Erradicação da Malária (CEM). Ele foi admitido em 1966. “A sede era em Teófilo Otoni, mas, tínhamos distrito em São Pedro dos Ferros, foi lá que eu fiz o concurso público. Acabamos vindo trabalhar no Vale do Rio Doce, nessa região aqui. Nessa época a gente fazia somente o controle da Malária, trabalhava mais com operação de inseticida, que era o DDT. De casa em casa aplicando o inseticida para combater o mosquito transmissor da Malária. Na década de 70, também começamos o combater o triatomíneo, que é o transmissor da Doença de Chagas. A Doença de Chagas estava bem expandida nessa região aqui também, com as habitações precárias, o vetor tinha facilidade de fazer a transmissão, casa de pau a pique e tudo mais”.
Sobre a descentralização, Agostinho opina que os profissionais já imaginavam que os trabalhos seriam prejudicados. “A gente já tinha uma experiência, trabalhando junto aos municípios. A gente via que o município não tinha estrutura para tocar uma campanha de erradicação ou de controle de endemias do tamanho que era. A doença não tem fronteiras, se expande no País inteiro, então, acho que teria que ter um órgão federal para fazer esse controle”.
Para Agostinho, que foi homenageado pelos colegas durante o encontro, ainda há uma parcela sociedade que ainda lembra dos sucaneiros. “Os mais antigos reconhecem que nosso trabalho era de suma importância. Até hoje, a gente encontra com eles, ainda chamam daquele órgão antigo. Nosso órgão era respeitado demais na sociedade. E nós tínhamos o apoio, devido a total responsabilidade e empenho”.
Nilson Silva, 66 anos, aposentado, relata que entrou na SUCAM em abril de 1983. “Houve um concurso público, onde entrou um grande número de pessoas. Aqui no distrito de Caratinga, foram mais de 200 funcionários admitidos nessa época, para intensificar o controle da doença de Chagas, o Programa criado pelo Fim Social. A área era imensa, o distrito de Caratinga era responsável por mais de 200 municípios, pegávamos uma área ali perto daquela região de Bom Jesus do Amparo, Barão de Cocais, Itabira e vinha até as divisas com o Espírito Santo”.
Ele se recorda das dificuldades da rotina de trabalho, ainda percorrendo as casas e depois a mudança de setor. “Quando iniciei trabalhei em equipes, com muita dificuldade, a pé, caminhando distâncias que quando a gente conta, até os filhos da gente duvidam. Mas, andava a pé, 20km, 30 km, isso era fichinha para nós, procurando o barbeiro, transmissor da doença, nas casas e no entorno. Depois as equipes voltavam para fazer a aplicação do inseticida para eliminar esses insetos. Trabalhei em equipes durante sete meses só, depois, fui destacado para trabalhar na área de Educação e Saúde, houve uma oportunidade, uns treinamentos e passei a trabalhar mais com palestras, treinamento, reuniões com a comunidade. Então, tive um contato pequeno com inseticida e mais mesmo na orientação das pessoas”.
Conforme Nilson, a Doença de Chagas atingia mais de 10% da população brasileira. E Minas Gerais estava entre os municípios com maior índice, perdendo apenas para alguns municípios do Nordeste. “O trabalho era muito intenso, nós tínhamos o Vale do Jequitinhonha, também altíssimo o número de barbeiros. Aqui em Caratinga, tínhamos algumas regiões também com índice alto. É uma doença que até hoje não tem cura, então, a forma de combater era combater o transmissor e orientar as pessoas. Um agravante desse índice alto, que as residências eram muito precárias na época, se tinha muita casa de pau a pique, muita greta, as pessoas não tinham noção na verdade e nem condição financeira, muitas vezes, de ter uma casa melhor. Não precisa ser uma casa, não poderia ter gretas e nosso trabalho era orientar também nesse sentido”.
Para Nilson, um trabalho que era intenso e contínuo, acabou sendo interrompido com a descentralização, pois, a SUCAM tinha critério exclusivamente epidemiológico. “Com a descentralização, infelizmente, começou a entrar critério político no trabalho. Deixou de ter a sequência necessária, porque, para se conseguir controlar qualquer doença transmitida, tem que ter sequência. Os transmissores dessas doenças estão sempre se reproduzindo, se elimina aqui, cria um outro foco em outro local”.
Nilson cita como exemplo doenças que voltaram a preocupar a população brasileira. “A Febre Amarela estava controlada há muitos anos, depois houve um descuido, porque, quando você está preparado, mesmo tendo alguns casos, é fácil interromper rápido. Além da Febre Amarela, temos a própria Dengue. Mantínhamos o mosquito num índice de infestação, que dificilmente a gente tinha epidemia de Dengue. E, hoje, o mosquito está praticamente incontrolável diante das ações que são desenvolvidas, que são ineficazes para manter o controle num nível baixo”.
Apesar de tantas memórias e histórias dos guerreiros no combate às endemias, para Nilson ainda falta reconhecimento, pois, a SUCAM ia onde mais nenhum outro órgão ia. “Aquele morador mais distante, isolado, ele conhecia a SUCAM, estava presente na vida dele e da família dele. Talvez 30 anos atrás o trabalho era reconhecido. Hoje, se perdeu. Quem sabe, quem tem reconhecimento desse trabalho são os funcionários que trabalharam, que têm histórias para contar, depoimentos que a gente recebia de moradores, que ficavam até gratos pelo trabalho, que era obrigação nossa. O próprio funcionário caiu no abandono, o próprio governo abandonou. Hoje temos um número muito grande de funcionários doentes com inseticida, incidência de câncer alta e praticamente abandonados. O governo na verdade virou as costas e a população atual nem conhece. Somos anônimos realmente nessa história”.
Erisvaldo Carlos Pereira, 61 anos. Assim como a maioria dos sucaneiros de Caratinga, entrou na turma de 1983 e se aposentou há pouco mais de um ano. “Entrei como guarda de campo, atendi também as campanhas de Chagas e Febre Amarela, com as viagens indo até os municípios para fazer visita domiciliar. Depois, o próprio distrito de Caratinga, já não estava havendo contratação mais, precisou de pessoas para trabalhar no laboratório de entomologia”.
Depois de sete anos, Erisvaldo deixou então o trabalho de campo, para ir para o laboratório. “Exatamente para ajudar, pois já não estavam dando conta mais, por causa dos grandes casos que estavam tendo, tanto de coletas de barbeiro como as larvas do mosquito da Dengue, que já estavam crescendo muito. Fazia as identificações das larvas para o combate ao Aedes aegypti. Exames do barbeiro para ver se estava contaminado, para dar o suporte às pessoas. Se era necessário fazer exames, às vezes até tratamento de Chagas. Eu também era um dos suportes técnicos para o exame parasitológico de Malária”.
Com a sua aposentadoria, a Secretaria Municipal de Caratinga treinou uma pessoa para continuar esse suporte. “Não temos casos de Malária na nossa região, aqui não é endêmico para Malária. Mas, as pessoas que vão lá no Norte, pescar, trabalhar, passear mesmo, pega Malária lá e temos o vetor na nossa região”.
José Geraldo Teixeira, 61 anos, relata 36 anos de dedicação exclusiva à SUCAM. “Mudou tudo na minha vida, porque entrei lá com 21 anos e fui me aposentar com 56. Entrei menino e saí um avô. E na convivência diária com praticamente 300 colegas de trabalho, mas, o aprendizado das culturas que a gente conheceu, não só em Minas, mas, fora do estado. Mudou a vida de todo mundo pra sempre e positivamente. Iniciei guarda sanitário ou agente de saúde pública e lá dentro você, na medida que ia aprendendo e recebendo confiança da chefia, ia galgando os postos até chefe de setor técnico, que era o cargo maior que chegava lá. Trabalhei, com exceção de peste bubônica, todas as outras doenças”.
Para José Geraldo, um ofício que merecia mais atenção, pois, vários profissionais se arriscavam para o bem da população. “Não é reconhecido, nunca foi reconhecido. Porque no tempo da SUCAM a gente tinha uma política interna de não divulgar, para não alarmar. Qualquer surto, antevisão de uma epidemia, não divulgar, eram outros tempos. Por isso, a gente trabalhava muito escondido. Vamos tomar por base Caratinga, que era um distrito sanitário que comandava 194 municípios. Era comum chegar no começo do mês, trabalhar 20 dias e o prefeito nem ficava sabendo. Esse trabalho não foi propagado na época. Quem viveu aquele trabalho e vê hoje o que acontece, vê a importância que tinha. Se tivesse sido bem divulgado na época, hoje a população sentiria mais falta daquele guarda que ia de casa em casa”.
LEVANDO EXPERIÊNCIA AOS MUNICÍPIOS
Nelson Mendes Gomes e Domingos Sávio Pereira atuaram na extinta SUCAM e seguem na ativa, como funcionários do Ministério da Saúde. São considerados referências técnicas em zoonose e atuam ministrando cursos e capacitações, levando toda a experiência no combate à endemias aos municípios.
Nelson, que presta serviço para a Gerência Regional de Saúde de Itabira, também entrou na turma de 1983. “Estava caminhando ali no Jardim das Palmeiras, fazia curso de datilografia, que eu queria ser uma pessoa importante, um auxiliar de escritório. Vi os jovens sentados no banco, perguntei onde eles estavam indo, me disseram que estavam fazendo inscrição da SUCAM. Aqueles caras que andam com a bolsa amarela, falei que ia fazer também. Fiz, não tinha o CPF, antigamente as coisas eram difíceis, mas, o advogado Nilo Dias de Moura me ajudou, fiquei devendo o CPF, mas, fiz o concurso. Fui aprovado e tem 41 anos que estou lá”.
Especialista em Doença de Chagas, ele se orgulha pela experiência adquirida e destaca a importância da atuação da SUCAM. “Conheço barbeiro pelo cheiro. Foi um trabalho árduo, mas, se eu precisasse começar do zero eu começava, mesmo com a idade que eu tenho. Foi muito gratificante, tenho certeza do que eu fiz pelo País. Para mim não tem coisa melhor no mundo, tenho certeza que ajudei milhares de pessoas a não morrer ou não estar com doença crônica de Chagas. Nosso serviço era muito bem feito, a gente não tinha estudo, nada”.
A serviço do Ministério da Saúde, atuando em São Domingos do Prata, ele destaca que o trabalho está ativo. “Temos lá até funcionários além do necessário. Mas, não temos é inseto pra combater, acabamos com tudo. Lá não tem uma casa de pau a pique, uma caixa d’água destampada. O índice nosso lá de levantamento do Aedes aegypti é 0,3%, 0,5%. Quando precisa de barbeiro para dar treinamento lá, tem que buscar em outra regional, porque o nosso não tem. Fizemos um serviço de educação em saúde, melhoria habitacional, tiramos todas as palhotas, sapé, colocamos telha. Reformamos todas as casas, estrume de boi, terra tabatinga e areia de beira de estrada, fazia uma massa, que dá a mesma massa da casinha de joão de barro, que dura mil anos. Zerou, acabou tudo, serviço feito dentro da metodologia. Poucos municípios que têm uma pessoa que está lá há mais de 30 anos igual estou, funcionário da SUCAM, porque temos qualidade”.
Domingos Sávio, que atua na Regional de Saúde de Coronel Fabriciano, também iniciou em 1983 trabalhando com a Doença de Chagas. “Em 1988, foi o primeiro momento que trabalhei com esquistossomose, uns dois anos em Mutum, de lá vim para Caratinga e trabalhei no governo do sô Dário e do Zé de Assis no combate a esquistossomose em todos os distritos, inclusive com uma alta incidência da doença. Encontramos vários casos delicados. Temos no Brasil vários casos de esquistossomose, ovo migrando para a medula óssea, a pessoa ficando paralítica. Hoje, se você tratar a tempo, a pessoa pode voltar a andar normalmente”,
Próximo de se aposentar, ele segue capacitando os municípios e frisa que mudanças ocorreram ao longo dos anos, no combate a endemias. “Treinei as três micros da regional de Coronel Fabriciano, repassando o serviço para os profissionais que vão ficar. E, agora, 17 de junho, estou indo a Teófilo Otoni treinar a equipe de lá. Os saneamentos básicos e as habitações mudaram muito daquela época pra cá. Por si só, o povo evoluiu, diminuiu o índice da doença, mas, ainda temos muitos casos”.