“Estrada para Assunção: imagens e memórias da Guerra do Paraguai/Tríplice Aliança, 160 anos depois” é o novo livro do jornalista Helton Costa. A obra disseca o conflito mais sangrento ocorrido na América do Sul
Por José Horta
DA REDAÇÃO – Na guerra, a primeira vítima é a verdade. E após a guerra, cada parte envolvida tem sua ‘verdade’. Os vencedores exaltam suas conquistas, enquanto os derrotados passam a conviver com as feridas que, provavelmente, nunca serão cicatrizadas. Nesse contexto complexo, marcado pela divergência de narrativas e verdadeiras dores, ocorreu entre 12 de outubro de 1864 e 1º de março de 1870, a Guerra do Paraguai foi reflexo da consolidação das nações da Bacia Platina (Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai) e resultou em enorme destruição e grande saldo de mortos. É o maior conflito acontecido na América do Sul e mudou os destinos dos países envolvidos. Agora, o jornalista Helton Costa lança “Estrada para Assunção: imagens e memórias da Guerra do Paraguai/Tríplice Aliança, 160 anos depois” (Editora Matilda). A obra é dividida em quatro partes e traz informações surpreendentes a respeito desta beligerância.
Ilustrando as circunstâncias que transcendem o tempo, Albert Camus é evocado em um discurso sobre futebol: “O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem devo ao futebol”. Então, é exatamente esse esporte que contribuí para confirmar que as feridas do conflito continuam abertas, influenciando as relações entre as nações sul-americanas. Em 2001, uma partida de futebol válida pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2002, entre Brasil e Paraguai, em Porto Alegre/RS, mostrou que a cicatriz continua aberta para um dos lados. Após o jogo, o, então, goleiro paraguaio José Luís Chilavert declarou que uma ofensa xenofóbica de Roberto Carlos foi o que o motivou a cuspir no jogador brasileiro. “Fui à coletiva de imprensa e um dos jornalistas me disse que o jogo era uma guerra para os brasileiros, já que o Brasil poderia ficar fora da Copa. E eu respondi que não era uma guerra, mas futebol e que se fosse uma guerra, o Brasil poderia devolver a parte do Mato Grosso que pertence ao Paraguai”, declarou Chilavert, fazendo clara referência à Guerra do Paraguai e demonstrando o que pensa uma considerável parcela do povo paraguaio.
Para facilitar a compreensão sobre os reflexos dessa guerra que persistem até hoje, o DIÁRIO conversou com o jornalista Helton Costa, que é doutor em Comunicação e Linguagens, mestre em Comunicação, especialista em Estudos da Linguagem e em Arqueologia e Patrimônio; bacharel em Jornalismo e licenciado em História. Pós-doutor em História pela Universidade Federal do Paraná. Autor de “Confissões do Front: soldados do Mato Grosso do Sul na II Guerra Mundial”, de “Crônicas de sangue: jornalistas brasileiros na II Guerra Mundial”, de “Dias de Quartel e guerra: diário do Pracinha Mário Novelli”, de “Camarada pracinha, amigo partigiani: anotações brasileiras sobre a resistência italiana na II Guerra Mundial”, de “Ao alcance da morte: ensaio sobre o estado psicológico dos soldados da FEB na Segunda Guerra Mundial”, de “Soldado 4.600: vida e luta do pracinha Manoel Castro Siqueira” e de “Soldado Justino: um sobrevivente da FEB”.
Helton Costa explica que cada um dos lados envolvidos tem sua versão para o conflito e que também alguns lados optaram por serem lacônicos em suas informações. Ele também destaca: “Não há heróis e nem vilões. Há homens agindo sob o ímpeto de ordens que lhes são dadas e/ou em favor de seus próprios princípios’.
Eis a entrevista.
Suas obras têm foco no ‘Jornalismo de Guerra’, caso dos livros sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Por que a predileção por este tema?
Comecei a estudar o tema muito criança, na década e 90, naquelas antigas enciclopédias da Barsa. Depois, conforme fui crescendo, o interesse foi aumentando com filmes e jogos de computador sobre a Segunda Guerra Mundial. Na faculdade de Jornalismo tive contato com veteranos da Força Expedicionária Brasileira e depois disso não parei mais. Entrevistei dezenas de pracinhas e convivi com um deles, já falecido, que era como um avô adotivo.
Outro fator, como conto no último livro, é que eu sabia desde a adolescência que tinha parentes que haviam lutado na Guerra do Paraguai/Tríplice Aliança, e isso me fez pesquisar bastante também. Sem contar que meu pai e tios foram policiais militares, então, eu tinha familiaridade com esse mundo.
Nos meus trabalhos, uso a guerra não como um incentivo para o combate, mas, como uma ferramenta para que compreendamos o quão ruim ela é. Trata-se de usar a guerra contra a guerra.
Agora falando sobre “Estrada para Assunção”, quanto tempo durou sua pesquisa e quais descobertas mais lhe impactaram?
Os estudos bibliográficos já vinham sendo feitos há alguns anos, com leituras e mais leituras. Especificamente para o livro, faz pelo menos um ano que eu comecei a fichar e redigir. O passo final foi a ida ao Paraguai, em junho deste ano, e dali em diante foi feito um novo trabalho de redação.
De tudo o que vi, os fatos que mais me impactaram, dizem respeito a como a população paraguaia ainda revive a memória do conflito constantemente. A Guerra está presente em toda parte, em todas as cidades, desde nomes de ruas e empresas até os monumentos que demarcam de maneira física aquilo que é perceptível pela observação: a guerra não foi esquecida e nem será tão cedo.
Eu cresci no Mato Grosso do Sul, nasci em Dourados e fui criado em Ponta Porã, na fronteira seca com o Paraguai, a menos de 40 km de onde a guerra terminou (Cerro Corá). Ali, a convivência dos dois povos sempre foi bem tranquila, mas, a guerra era um assunto para o qual não havia acordo, sempre despertava debates. No Paraguai atual, como um todo, não é diferente.
Aqui no Brasil a memória é bem menos relembrada. Somente em alguma efeméride e em alguns quartéis (em Ordens do Dia, por exemplo), mas, não se compara com o que acontece do lado de lá da fronteira. E olhe que fomos o país com maior contingente e que venceu aquele conflito…
Isso se dá não pelo fato de a Guerra do Paraguai não ter sido importante para os brasileiros, mas, porque fatos recentes da história nacional o sobrepujaram em grau de importância na mentalidade social. O conflito no Paraguai parece distante para as atuais gerações.
Seu livro está divido em quatro partes. Como se deu essa divisão?
Na primeira parte optei por fazer um resumo para um público amplo, com observações da guerra por quem nela esteve. O objetivo foi atingir quem não tem muita familiaridade com a temática.
Na segunda parte estão minhas observações ao visitar os antigos campos de batalha.
Na terceira parte eu questionei autoridades dos dois países sobre assuntos que me inquietaram, como por exemplo, a falta de conservação em alguns espaços e o tratamento da memória na sociedade. Inclusive tem uma parte em que conversei com um tataraneto do Dom Pedro II e trineto do Conde d’Eu, sobre como ele se sentia em relação aos dois antepassados serem figuras pouco queridas no Paraguai. Tem outra matéria sobre pedidos de indenização dos paraguaios e muito mais…
A quarta e última parte, foram entrevistas com cinco pesquisadores, entre eles o Jorge Rubiani e o Mário Maestri, que são bem conhecidos do grande púbico (ou pelo menos deveriam ser).
Há ainda um bônus com 42 páginas de fotografias de antes e depois de locais de embates dos exércitos.
Além de pesquisa bibliográfica, o senhor conheceu as localidades paraguaias in loco e também questionou entidades dos países envolvidos para que comentassem sobre questões ainda pendentes daquela guerra. As respostas te surpreenderam?
Sim e não. Explico: sim porque em algumas delas o Estado paraguaio se mostrou bastante inclinado, em publicações oficiais, a culpar exclusivamente os brasileiros, inclusive por crimes de guerra; e não, porque de fato eu já esperava de outras entidades um posicionamento que cobrasse o Brasil por fatos ocorridos naquele conflito. Inclusive, dentro do Mercosul, houve documento paraguaio apresentado por um senador de lá, que queria a condenação e pedidos de desculpas. Isso foi recente, em 2022.
O destaque foi o Ministério da Educação paraguaio, que mandou respostas muito bem elaboradas sobre o ensino do conflito nas escolas do país.
Do lado brasileiro, o posicionamento foi estritamente diplomático e institucional, porém, ressalto que nenhuma pergunta ficou sem resposta.
Do lado argentino e do lado uruguaio, não obtive retornos.
Qual foi o motivo que levou a Guerra do Paraguai?
Depende em qual lado da fronteira você perguntar (risos). Os paraguaios vão dizer que foi a intervenção brasileira no Uruguai, a aliança dos países para lhe prejudicarem e tomarem territórios, entre outros motivos.
Os uruguaios poderiam dizer que foi uma luta para apoiar os brasileiros que tinham colocado Venancio Flores no poder e para levar liberdade ao Paraguai. Os argentinos poderiam alegar, da mesma forma que o Brasil, que eles foram invadidos primeiro e que só responderam às investidas guaranis. E por aí poderíamos seguir cada um com seu discurso.
Do ponto de vista que eu parti para tentar explicar, é que a guerra foi um confronto de Estados que naquele contexto estavam legitimando seus processos de formação e identidade nacional, se consolidando. Neste processo, interesses se chocaram, muito por conta das elites dirigentes locais, e a guerra foi inevitável. A intervenção brasileira no Uruguai e a resposta paraguaia ao fato, só materializaram a tensão que já existia na região.
Quais eram os interesses da Tríplice Aliança em atacar o Paraguai?
Em tese, devolver as afrontas paraguaias, que haviam começado com o apresamento do Marquês de Olinda, invasão do atual Mato Grosso do Sul, tomada de Corrientes na Argentina… Isso do ponto de vista Aliado.
Se você perguntar para um paraguaio, ele te dirá que o objetivo era interromper o crescimento paraguaio e lhe tomar territórios, uma guerra de destruição.
Assim como na pergunta anterior, depende de quem responde. O fato é que depois que os Aliados assinaram o Tratado da Tríplice Aliança, o destino paraguaio estava selado e os combates, doenças e a fome ceifaram milhares de vida nos anos seguintes.
Em 1865, como era a economia paraguaia?
Este é um assunto interessante, pois, como tudo naquela Guerra há interpretações e interpretações. Se você pegar autores dos anos 60 a 80, como Júlio José Chiavenato ou León Pomer, o Paraguai será visto como um oásis de desenvolvimento, o grande Paraguai que estaria causando inveja nos vizinhos e à Inglaterra. Era um recorte daquele momento, com pouco acesso a arquivos e com uma metodologia historiográfica um pouco cambaleante. O negócio é que essa visão influenciou e ainda influência uma parcela de pesquisadores. No Paraguai é uma visão quase unânime e digo quase, porque há uns poucos que discordam.
Do final dos anos 80 em diante, a gente tem uma reformulação de metodologias e uma facilitação de acesso à acervos no caso brasileiro. Logo, se você pegar autores mais atuais, a visão do grande Paraguai já ficou ultrapassada.
Assim como os vizinhos o Paraguai dependia de relações comerciais em 1865, tanto que houve capital britânico aplicado na economia do país para sua modernização nos anos anteriores à Guerra. Havia ainda uma burguesia rural em formação que era beneficiada pelo Estado. Por falar em Estado, as relações deste com a família López eram bem próximas, ao ponto que o clã detinha grande parte das terras privadas para si na época do conflito.
Particularmente, vejo que o país tinha avanços em algumas áreas dentro do contexto no qual estava inserido, mas, depois da guerra tudo foi por terra. Porém, também discordo que o Paraguai era um colosso em expansão. Era um país em desenvolvimento que depois de 1840, quando o ditador Francia faleceu, vinha tentando se tornar como um “player” ali na região do Rio da Prata.
Como ‘cada época escolhe o seu passado’, a história costuma ter contextos diferentes. Houve uma versão de que Francisco Solano Lopez queria dominar parte do Uruguai. Depois foi propagado que o imperialismo da Inglaterra teria provocado este conflito, preocupada com a ascensão paraguaia. Qual o verdadeiro contexto desse conflito?
Um choque de interesses entre Estados, em que um deles, o Paraguai, se viu vencido quando caiu por terra a esperada improbabilidade de uma aliança entre países que havia pouco tempo eram inimigos ferrenhos ao ponto de guerrearem uns contra os outros (Brasil x Argentina (Rosas) e Brasil x Uruguai).
Essa história de que a Inglaterra manipulou os países para se matarem ainda resiste bastante. Há registros que mostram que capital inglês ajudava a economia do Paraguai e técnicos ingleses na modernização em algumas áreas do país. Outros documentos mostram os brasileiros tendo atritos com ingleses antes da Guerra, principalmente pela questão Christie (a Inglaterra pediu desculpas por meio de seu enviado, quando os paraguaios se rendiam em Uruguaiana, em 1865).
Autores mais atuais tendem a rechaçar a tese da manipulação inglesa, ainda que reconheçam que houve benefício para ingleses no pós-guerra. E rechaçam porque se defenderem somente a tese do capitalismo inglês manipulador, seria preciso derrubar a história das nações envolvidas, que seriam transformadas em meros fantoches, que não teriam capacidade sequer de fazer uma guerra sem depender dos estrangeiros, algo como uma História sem povo. Sem contar que teriam que dar a López o papel que ele não teve, que foi de um líder antiimperialista.
Poderia nos falar sobre a vida pré-guerra de Solano Lopez. Ele passou uma temporada na Europa, onde adquiriu conhecimentos militares. Como foi esse período na vida de Solano Lopez?
Conforme dos registros históricos e bibliografias, ele foi como ministro plenipotenciário, ou seja, com poderes ilimitados. Voltou casado com Elisa Lynch. Fora essa parte da vida pessoal, ele fez contato justamente com uma companhia inglesa de tecnologia e deixou acordos para que paraguaios fossem estudar e receber instruções militares por lá. Sem contar que conseguiu trazer 250 técnicos para melhorar a infraestrutura paraguaia. Ou seja, falhar, ele não falhou e também voltou com a esposa que o acompanharia até o dia da sua morte em Cerro Corá, com a mãe dos filhos dele, ainda que Elisa não tenha sido a única mulher com quem López teve filhos.
Tido como um ‘homem das artes’, por que D. Pedro II tomou essa decisão de atacar o Paraguai?
Creio que ele precisava dar uma resposta interna aos pedidos e apelos de políticos opositores, principalmente aos gaúchos, que o acusavam de estar indiferente quanto às agressões uruguaias na região de fronteira. E tanto foi assim, que houve a intervenção que colocou Flores no poder no país vizinho. Dali em diante foi uma reação em cadeia da qual nenhuma das nações envolvidas poderia fugir das consequências.
Em primeiro momento ele aproveitou-se dessa imagem de soldado, como em Uruguaiana, por exemplo, sendo o Voluntário da Pátria número um, e depois da guerra tentou voltar à imagem de homem das artes, à qual você faz referência. Fato é que no relatório apresentado no Mercosul pelo então senador paraguaio, Ricardo Canese, pede-se a condenação de Dom Pedro por diversos crimes, entre eles, genocídio.
Do lado de cá, ele continua sendo amado por uns e ignorado por outros.
Qual o papel de Duque de Caxias nesta guerra? Por ser contra a continuação do conflito que ele foi substituído no comando do exército brasileiro pelo Conde d’Eu?
Ele foi importante, foi quem levou os Aliados à vitória. Hoje é até estranho não associar ele à guerra, inclusive é o patrono do Exército. E olhe que o Paraguai foi somente uma das campanhas em que ele se fez presente. Mas, após a tomada de Assunção em 1869, ele quis mesmo deixar o comando das tropas e já vinha falando disso desde a queda de Humaitá, que acontecera meses antes.
O Conde foi mandado pelo sogro, Dom Pedro, meio a contragosto e coube a ele encerrar o conflito. Inclusive, conseguiu ser mais odiado do que o imperador por setores paraguaios, principalmente pelos episódios de Peribebuy e Acosta Ñu (Campo Grande). No primeiro teria permitido a degola de prisioneiros e o incêndio de um hospital inimigo e no segundo, o massacre de crianças e adolescentes. Lógico que a bibliografia posterior, deixada por ele e por seus defensores, nega tais acusações. É só mais uma das muitas controvérsias desta Guerra.
Foi o conflito mais sangrento da América Latina. Quais batalhas mais lhe chamam atenção?
Ainda que Tuiuti tenha sido a maior batalha, com quase 55 mil soldados de todos os Exércitos se digladiando, a que mais me faz refletir, é Avaí, durante a dezembrada. Ali cinco mil paraguaios enfrentaram quase 19 mil brasileiros. Foram mortos 3.600 paraguaios, com mais uns 1400 prisioneiros e 600 feridos. As baixas brasileiras não chegaram a 1.500.
Contam os participantes daquele embate, que ao final da peleja, os paraguaios formaram um quadrado defensivo único e passaram a ser atacados pela cavalaria e pela infantaria brasileira, até que ninguém mais restasse daqueles que formaram o quadrado. Foi uma matança sem piedade. No local em que o último quadrado teria se reunido, há um monumento em forma de uma baioneta gigante. Depois, mulheres paraguaias ainda teriam sido violadas por brasileiros, segundo relatos paraguaios e do general argentino, José Ignacio Garmendia.
De forma geral, o combate corpo a corpo era tremendo entre os soldados. Os relatos são brutais. Corpos estraçalhados jogados pelo campo, membros expostos e tudo mais. Devia ser uma cena chocante. Eram milhares de homens se batendo ao mesmo tempo e com canhões trabalhando a todo vapor.
Apesar da fragilidade paraguaia, quais fatores fizeram com que essa guerra durasse quase seis anos?
A própria guerra defensiva-ofensiva paraguaia, a falta de conhecimento total do terreno pelos Aliados, a vacilação de Mitre e outros generais em alguns momentos, a necessidade de melhor adestramento dos exércitos, as fortificações militares de López, os obstáculos naturais do terreno em que a Guerra se deu, a obstinação dos defensores em não ceder sua própria terra. Enfim, uma combinação de fatores.
O senhor tem antepassados que lutaram no Paraguai. Quais relatos foram passados de geração em geração dentro de sua família?
Tive parentes que lutaram no Paraguai, sendo dois trisavôs brasileiros e um paraguaio, além de uma trisavó argentina e duas paraguaias. Convivi com uma tia-avó de 106 anos, muito lúcida, que conheceu dois dos meus tataravós que lutaram (um que era escravizado liberto para lutar e o outro, que era paraguaio).
Ela contava que o negro, mais baixinho, chamado David Ferreira, era alegre, mas, que às vezes chorava porque lembrava que tinha que matar os paraguaios para não morrer. Era piauiense. Hoje a gente sabe que isso é o que chamamos que estresse pós-traumático. Do paraguaio, o José Maria Benites Cabrera, ela contava que era muito alegre e sorridente, brincalhão.
Do José eu conheci mais quando estive no Paraguai para o livro. Ele tinha mais dois irmãos, um de 16 e outro de 31 anos que morreram na guerra. Outras quatro irmãs morreram em decorrência da guerra, de fome e doenças. Só ele sobreviveu. Consegui os registros em Assunção.
Houve ainda um terceiro combatente, Jonas Alves, baiano, filho de branco com mãe negra. Era homem livre e também foi soldado. Do lado dele da família, contam que era bastante violento, tanto que os filhos eram temidos na região de Maracaju/Ponta Porã, em que viviam.
Das mulheres, minhas trisavós, foram sobreviventes, passaram por tudo aquilo e conseguiram ficar vivas. Uma delas casou com o David. A outra com um peão brasileiro e a argentina com o baiano.
São histórias orais, com registro dos nomes deles apenas em documentos dos filhos, meus bisavós. Foram peões de fazenda no pós-guerra, imagino que nem documentos tivessem, com exceção do paraguaio.
Brasil, Argentina e Uruguai parecem que não dão tanta importância para essa guerra, mas no Paraguai é uma ferida que nunca vai se fechar. Como esse conflito afetou o desenvolvimento paraguaio?
O país ficou sem mão de obra produtiva, demorou anos para se reerguer. Perdeu a época das grandes imigrações no final do século XIX, porque ainda estava se recuperando economicamente. Depois entrou em um vórtice de crises internas e quando saia, veio uma ditadura. Hoje ainda luta para se posicionar de forma competitiva no mercado econômico.
Do ponto de vista humano foi uma tragédia sem precedentes. Estudos colocam a perda da população geral entre 40% e 60% (depende do autor), a maioria homens, pais de família.
Uma geração cresceu órfã e os vivos tiveram que conviver com a vergonha da derrota, porque pelo menos até os anos 30 do século XX, López era associado a tudo de ruim que a guerra representou. Só mais tarde foi reabilitado do ponto de vista histórico e tem o pedestal que lhe ofereceram hoje.
Guerra do Paraguai gerou consequências, em diferentes graus, para todas as nações envolvidas. Quais foram essas consequências?
A pergunta é ampla. Cada país de fato teve consequências. Brasileiros e argentinos ganharam territórios, por exemplo. Vou me ater a alguns exemplos do Brasil: endividamento e utilização de recursos que poderiam ter sido usados para o desenvolvimento do país; fortalecimento do Exército; melhora na imagem e maior apoio ao fim da escravidão; surgimento de lideranças republicanas que dariam o golpe contra o Império; consolidação territorial e ocupação das fronteiras, para ficar apenas em alguns exemplos.
Quem se deu mal nisso tudo foi o Paraguai, que pagou dívidas de guerra para o Brasil até 1941, quando o Vargas as perdoou.
Em sua avaliação, quem são os heróis e vilãos da Guerra do Paraguai?
Não há heróis e nem vilões. Há homens agindo sob o ímpeto de ordens que lhes são dadas e/ou em favor de seus próprios princípios. Ao fim, foram pessoas de seu tempo, humanos iguais a nós, com suas falhas de caráter e virtudes, tanto os líderes quanto os soldados.
O que me fascina no estudo dos conflitos, de maneira geral, é o fator humano. É tentar entender como é tênue a linha que separa a humanidade da barbárie e como fazer para que a barbárie não prevaleça. Por isso que digo, não há heróis ou vilões, há seres humanos sendo levados pelos seus objetivos a ações às vezes louváveis, às vezes reprováveis.
O senhor avalia que essa guerra é um ato heroico ou uma mácula na história do Brasil?
Nenhum dos dois. A guerra foi um fruto, um produto daquele contexto histórico. Teve um início mais ou menos previsível, mas com um desfecho que talvez não fosse o esperado. Ou será que alguém imaginaria em 1864 que a guerra duraria seis anos e que López seria morto em Cerro Corá?
Vejo, com certeza, momentos que macularam a campanha, como o caso dos jovens de Acosta Ñu, possíveis estupros em massa pós-batalha do Avaí, degola de prisioneiros, saqueio de cidades (principalmente Assunção), violação de igrejas e cemitérios, abusos contra prisioneiros e a população civil durante a ocupação… Em denúncias como estas, não dá para ser indiferente.
Por outro lado, é preciso lembrar que os paraguaios em certas ocasiões agiram da mesma forma, ainda que haja uma defesa por parte de alguns pesquisadores paraguaios, de que foram casos isolados. Mas, a invasão de Corrientes e do sul do Brasil mostra que eles também agiram errado, do mesmo modo que erraram ao humilhar, perseguir e matar os opositores de López ou aqueles que ele supunha o estarem traindo.
Eu diria que a Guerra como um todo, com todos os envolvidos, foi uma mácula para a humanidade, como são todas as guerras.