Interagir com um suíço foi desafiador nos quatro anos que vivi por lá. Em um país com dois terços do território ocupado por montanhas, natural que seus habitantes não sejam assim tão dados ao convívio social. Ao viajar pelo interior da Suíça, é comum ver casas incrustadas em montanhas tão altas e íngremes que sequer podemos imaginar como foi possível ao homem construir ali. Outro fator que favorece o isolamento e ajuda a explicar a personalidade dos helvéticos é o inverno prolongado, com suas temperaturas baixas e seus dias curtos.
O suíço adora preservar sua individualidade. É discreto e também modesto. Não gosta de consumir artigos de luxo e dificilmente se gaba de algum atributo. Todas as vezes que eu perguntava a um suíço se ele fala inglês ouvia como resposta: “um pouco”. Mas esse pouco era tão perfeito que me deixava constrangida.
Trata-se de um povo extremamente educado. Não fala alto, não gesticula, não joga lixo no chão, não invade o espaço físico alheio. Em contrapartida, não admite sequer a cogitação de que seu espaço possa ser invadido ou seu direito, mitigado. Ser educado não significa necessariamente ser gentil. Há uma sutil diferença entre esses predicados. A gentileza vai além da educação e pressupõe ceder algo em favor do outro. E o suíço, muito embora respeite rigorosamente o direito alheio, não está muito disposto a ceder em sua subjetividade.
Para perceber estes pequenos traços da personalidade helvética, basta dar uma volta de bonde – ou tram. A verdade é que a aproximação forçada dentro do vagão é o máximo de interação que muita gente terá com um suíço. O primeiro choque cultural evidente é a ausência de catraca ou de qualquer forma de controle do ingresso de passageiros. Óbvio! Um povo tão educado nem sonha em utilizar o transporte público sem ter pago o bilhete. Ali dentro, o silêncio rompido por uma conversa descontraída ou por uma chamada de vídeo pelo celular receberá, sem dúvida alguma, o olhar de reprimenda de algum suíço mais velho. Na verdade, não é só o olhar. É toda uma linguagem corporal empregada para te dizer, sem emitir uma única palavra, que você acaba de estragar o sossego de alguém.
O tram avança pelas ruas a uma alucinante velocidade de 30 km/h. O ritmo é contínuo, consistente, quase sempre sem solavancos ou freadas bruscas. As paradas são rigorosamente calculadas e raramente há atrasos. Tamanha precisão tem um custo. Adivinha qual? Uma certa ausência de gentileza. Foram várias as vezes em que eu corri para pegar o bonde empurrando carrinho de bebê e vi a porta se fechar diante de mim. Nessas horas me bate uma saudade do jeitinho brasileiro…
Mas desçamos do bonde. Há mais coisas interessantes a se observar por aí.
A simplicidade e introspecção suíça também podem ser observadas na culinária – especialmente a de expressão alemã. Quase tudo se resume a batatas e suas variações: frita, rösti, com maionese em forma de salada… Claro que o queijo está na base da pirâmide alimentar, assim como o pão. Certa vez ouvi que somente uma pessoa de coração muito empedernido poderia fabricar um pão tão duro. O pão em questão é aquele tradicionalmente oferecido como acompanhamento à salsicha, um dos destaques da cozinha local. Diferentemente do nosso pãozinho francês, cuja crosta cede à mais suave pressão dos dedos, o brot suíço pode se transformar em uma eficiente arma branca se necessário. Não há maleabilidade nem na massa do pão.
A pontualidade é um atributo suíço muito conhecido mundo afora. E não é lenda. Atrasar-se para um compromisso é intolerável. Desde muito cedo as crianças aprendem esta comezinha lição nas escolas, onde os horários são bastantes rígidos e, uma vez fechada a porta, não há Papa Francisco que faça abri-la. Sabe aquele tradicional atraso nas consultas médicas? Lá não existe isso. Também não há muito espaço para desmarcar um compromisso, a menos que se tenha uma razão muito justa. Aquela mania nossa de confirmar um encontro na véspera pode ser entendida como um insulto, afinal, se a palavra do suíço foi dada, ela será cumprida sem necessidade de confirmação.
Em uma caminhada pelas ruas residenciais de Zurique, longe das hordas de turistas, é muito comum ser abordado por um suíço com um afetuoso cumprimento, sempre com um sorriso e buscando olhar nos olhos do interlocutor. Não se deixe enganar por tamanha simpatia; ela não significa que o suíço está disposto a abrir seu coração. Significa, no máximo, que ele está testando sua educação ou buscando abertura para dar um conselho ou uma lição de moral.
De fato, o suíço parece acordar de manhã, espreguiçar e pensar: hoje eu vou achar um estrangeiro e ensinar a ele como se deve viver aqui. Eu já fui repreendida, já recebi conselho e já ouvi palpite de estranhos sem pedir. Talvez a explicação para tamanha ingerência na vida alheia seja reflexo do sistema político adotado por lá: frequentemente o suíço é chamado às urnas para participar da tomada de decisões, o que deve deixá-los mais à vontade para sair distribuindo opiniões por aí. É a democracia participativa transformando a vida cotidiana em um eterno referendo.
Mas a verdade é que eles têm muito o que nos ensinar. Se por um lado não há flexibilidade, por outro há confiabilidade. Não se deve contar com a capacidade do suíço de improvisar ou de relaxar regras e procedimentos, mas se pode sempre esperar que ele faça aquilo a que se comprometeu, a tempo e modo. Nesse contexto, parece-me que a sociedade suíça fez uma opção: entre ser maleável e ser confiável, optou por ser confiável. E é uma escolha legítima.
* Grüezi é uma saudação verbal comum na Suíça de língua alemã (especialmente no cantão de Zurique) e significa Olá. Assim como a forma de se cumprimentar, algumas das características comportamentais do suíço variam bastante a depender da região.
Greyce Silveira Carvalho é caratinguense, escritora e advogada pública
@greycecarvalho
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