*Glauco Gomes de Arantes
Certa vez fui convidado para palestrar a um grupo de pais de crianças com deficiência sobre o porquê de crianças nascerem com problemas mentais ou síndromes genéticas. Passei um par de semanas tentando elaborar algo sobre o assunto, porém as explicações que deveriam fluir naturalmente, já que sou psiquiatra, estavam represadas em mim. Nada saia, nem mesmo uma linha. Na noite anterior ao dia da palestra a situação era a mesma e fui dormir um pouco frustrado, mas pensei que ainda haveria a madrugada e que antes da palestra algo surgiria em minha já exaurida mente. Por volta das quatro da manhã acordo sentindo-me revigorado e pronto. A mente ainda vazia, mas o coração transbordava de algo. Ao ligar o computador para mais uma vez tentar escrever algo veio à mente uma passagem bíblica, João 9:1-5, que transcrevo aqui:
“1Jesus, ao passar, viu um homem cego de nascença.²Perguntaram-lhe seus discípulos: Mestre, quem pecou para que este homem nascesse cego? Ele ou seus pais? ³Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais, mas isso se deu para que as obras de Deus nele sejam manifestas. 4É necessário que façamos as obras do que me enviou enquanto é dia; pois a noite vem e ninguém mais pode trabalhar. 5Estando Eu no mundo, sou a Luz do mundo.”
Foi então que tudo se encaixou, aquela plateia que haveria de me ouvir em breve merecia algo mais que explicações sobre a natureza e suas mutações, defeitos genéticos, efeitos de drogas lícitas ou ilícitas, acidentes ou infecções, para além disso, merecia espiar sua culpa, culpa que jamais tiveram, ao contrário, como na passagem bíblica, ninguém havia pecado. Através de pessoas com deficiência Deus quer manifestar sua graça que é alcançada nas superações aos obstáculos de cada dia. Os pais são pessoas especiais escolhidas por Ele, que serão capacitadas, serão elevadas a níveis superiores de existência e comunhão com o Divino, ainda que sequer acreditem Nele. A essa altura algum leitor pode estar pensando que nem tudo são flores, que conhecem exemplos onde não parece ser bem assim. É que, como explica Bernardo de Claraval, somos criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus e para que assim sejamos Ele nos dotou do livre arbítrio e nem sempre fazemos bom uso dele. Dentro dessa lógica do livre arbítrio mal utilizado é que acontecem as coisas ruins; o pai abandona a família, os parentes se afastam, a vizinhança julga e o estado pouco ajuda. Mas quanto maior a atribulação, maior a Graça e, por conseguinte, maior a Glória do Pai. A Graça é um “favor imerecido”, um presente que fazemos com ele o que quisermos, assim é necessário capacitação para a utilizarmos bem. E foi assim a nossa palestra, essa foi a mensagem. No início olhares apreensivos e corações apertados pela possibilidade de culpa, mas ao fim lágrimas de alívio ao ouvirem uma explicação que já sabiam, precisavam apenas que fosse reafirmada. E como sabiam? Ele, o Pai, já havia contado, por exemplo, através do olhar singelo de uma pessoa com paralisia cerebral, do abraço sincero e quente de outra com síndrome de Down ou do agitar incontido de braços e mãos do autista ao ver entrar em casa mãe após o dia de trabalho. Esses pais maravilhosos já sabiam de tudo, se entreolhavam de forma cúmplice em meio a discreto sorriso de aprovação um ao outro.
Pessoas com necessidades especiais são oportunidades de elevação espiritual e moral para os pais, mas são também para qualquer cidadão através do exercício da tolerância e muito mais que isso, através do exercício da compaixão. Compaixão é uma palavra de origem latina formada pela junção de duas outras; cum e patior. Cum é uma preposição que indica “junto com” e patior significa “sofrimento”, assim compaixão é sofrer junto com alguém. O versículo 04 da passagem bíblica acima nos ensina que devemos fazer as obras do Pai enquanto é dia, “pois a noite vem e ninguém mais pode trabalhar”, assim a compaixão nos remete à empatia e essas duas a um desejo de ação. Recomendo a você leitor deste artigo que aja, existem várias de formas de compaixão e empatia, pratique e você também sentirá, através das pessoas com deficiência, o poder de Deus. Se você não sabe como começar conheça a APAE de sua cidade.
GLAUCO GOMES DE ARANTES é médico, psiquiatra, formado pela Faculdade de Medicina da UFMG, lutando todo dia para não ser idiota. É membro da Loja Maçônica Caratinga Livre e Vogal da diretoria da Academia Maçônica do Leste de Minas –AMLM