Depois do atentado em Paris contra a equipe da revista Charlie Hebdo essa questão voltou à tona. O cartunista e artista plástico Camilo Lucas responde a essa pergunta e para ele o bom senso precisa prevalecer
CARATINGA – As pessoas ainda atônitas com o que aconteceu nesta quarta-feira (7) em Paris/FRA. Conforme a polícia francesa, extremistas islâmicos mataram doze pessoas. A causa de tamanha violência seriam as charges publicadas na revista Charlie Hebdo satirizando o profeta Maomé. Entre os mortos estão quatro dos mais renomados cartunistas franceses: Stéphane Charbonnier, conhecido como ‘Charb’ e também editor da revista, o lendário Georges Wolinski, Jean Cabu e Bernard Verlhac, conhecido como ‘Tignous’. Algumas pessoas estão classificando essa quarta-feira, 7 de janeiro de 2015, como o “11 de Setembro da Imprensa”, fazendo a ligação com o atentado que derrubou as torres gêmeas em Nova York/EUA.
Este atentando trouxe à baila questões como a liberdade de imprensa e se o humor tem limites. Para tentar entender essa situação, o DIÁRIO entrevistou o cartunista e artista plástico Camilo Lucas. Para Camilo, é preciso ter bom senso em todas as situações.
Por que o humor incomoda tanto?
– Porque o humor diz verdades e verdades incomodam. O humor usa a sátira, a mordacidade e a crítica ferina para jogar na cara da hipocrisia a verdade que ela finge ocultar e todos fingem não ver – aí vem o humor e escancara. E quando a verdade aflora ela incomoda os que se beneficiam da mentira.
Existem limites para o humor?
– Existe o limite do bom senso. Como qualquer afirmação, uma afirmação humorada traz consequências, e quem faz esta afirmação tem de pensar nestas consequências. O que não justifica o que aconteceu em Paris.
O que você pensa do politicamente correto?
– É um movimento que surgiu para derrubar preconceitos, acabar com desníveis sociais, destruir paradigmas ultrapassados (machismo, homofobia, racismo). Só que está se tornando uma inversão de preconceito, uma vez que quer acabar por decreto com tradições arraigadas desde os tempos bíblicos. Costumes se mudam com o tempo, progressivamente, uma coisa que até hoje de manhã era normal não pode virar crime na hora do almoço e ser punida com pena de morte na janta.
Com a desculpa de criar igualdade, cria-se a desigualdade em favor dos que antes eram desfavorecidos. Criam-se privilégios contra os que antes eram privilegiados. Igualdade é igualdade, um não pode ser mais igual que o outro.
E tem também a questão do eufemismo. Por exemplo, negro é negro, não é vergonha ser negro, não precisa passar a chamar negro de afro-brasileiro dizendo que isso é acabar com preconceito: pra mim é mais preconceituoso ainda, uma vez que é um reconhecimento formal de que ser negro é vergonha! Como assim? Não é vergonha ser negro, vergonha é o que se faz com o negro ao longo da história brasileira! Então continuar usando o termo “negro” não é humilhante. E usar “afro-brasileiro” é ridículo, uma vez que da sua boca sai a palavra “afro-brasileiro” e no ouvido do outro entra a palavra “negro” – ou “preto”. Ou seja, quer combater o preconceito? Combate a causa, deixa a maquiagem pro salão de beleza mesmo.
Usar o humor para criticar as religiões ainda é um tabu?
– Aí é que entra a questão do bom senso que eu citei acima. Religião é uma coisa que pega no âmago da pessoa. Por causa de uma crença pessoal – na qual a pessoa acredita piamente, mas seu vizinho acredita em outra coisa – acredita-se poder até matar o outro. Acho que religião devia ser usada para exercitar a fé, ninguém é obrigado a ter a mesma fé que você nem é pior que você por pensar diferente. Eu exerço minha fé e não ligo realmente pra quem exerce diferente que eu. Tenho em casa meu terço, meu crucifixo e minha imagem da Mãe Admirável e de São Camilo de Lélis. Um crente vai dizer que sou idólatra. Aí eu vou ficar irritado e vou falar pro crente que a fé dele é materialista, que ele acha que ser abençoado é comprar um carro novo e ter casa com piscina. Pronto, começou a guerra! Sem dizer dos muçulmanos, que estão voltando aos tempos de Maomé – ou Mohammed – quando o Corão pregava e seus seguidores executavam aquele trecho que diz que quem não for convertido pela palavra deve ser pela espada.
Vou dar mais um exemplo: Um amigo meu de infância, co-fundador da revista Jararaca Alegre comigo no Colégio Estadual lá nos anos 70, rompeu comigo porque eu afirmei que textos bíblicos do Pentateuco são mitologias. Adão e Eva, Arca de Noé, travessia do Mar Vermelho, Sodoma e Gomorra etc. são mitologias. Pronto, ele não fala mais comigo. E isso nem foi humor, é o que eu acredito mesmo. Não acho que sejam fatos a serem levados ao pé da letra, e sim histórias passadas de geração a geração por séculos, que sofreram alterações e eram usadas para moralizar um povo – tanto que existem em outras religiões anteriores ao judaísmo também, como o zoroastrismo e as religiões mesopotâmicas primitivas. Minha afirmação defendia uma ideia e ele levou para o lado pessoal: afirmou que eu o estava ofendendo!
Um dos programas de maior audiência da história da TV brasileira é “Os Trapalhões”, onde negros, nordestinos, calvos, gordos e homossexuais eram alvos de piadas. Você acredita que um programa desses seria viável nos dias de hoje?
– “Os Trapalhões” falavam a língua que o povo brasileiro falava naquele momento. Naquele contexto era normal falar daquele jeito. Não era só os Trapalhões, todo mundo, todos os outros programas de humor, filmes etc. Era “zuação” de banheiro de colégio. Tenho uma coleção de programas dos Trapalhões dos anos 70 e não vejo mal nenhum naquelas piadas, pelo contrário, eram espontâneas, alegres, inocentes até. Mussum era chamado de “negão” com carinho, quem disser o contrário é militante do humor politicamente correto – mas humor politicamente correto, mula sem cabeça e Papai Noel só existem no folclore. (Voltamos ao campo das mitologias…).
O preconceito é manifestado por quem ri ou por quem conta a piada?
– O preconceito está na intenção. Posso falar pro meu amigo Tonho “Fica na sua aí negão” e estar tudo bem. Ou posso falar pro meu amigo Tonho “Fica na sua aí negão” e estar chamando ele pra briga, entende?
Alguma charge feita por você já causou polêmica?
– Não neste campo. Tive alguns problemas no início dos anos 80, quando comecei a fazer charges diárias em jornais e ainda estávamos sob a ditadura, mas foi só em relação a charges políticas. Mesmo porque nunca fiz piada com minorias, não que tenha alguma coisa contra, se a piada é boa é o que importa, mas porque não é minha praia mesmo.
Fatos recentes ficaram marcados no Brasil como o caso do humorista Rafinha Bastos que falou que ‘pegaria a Vanessa Camargo e o filho também’ e do chargista Duke, do jornal O Tempo, que foi processado por um árbitro de futebol e este árbitro ganhou uma indenização de 15 mil reais. Qual sua avaliação sobre estes fatos?
– São dois casos totalmente diferentes. O Rafinha foi penalizado por ter feito uma piada de extremo mau gosto, usou palavras que se usasse na rua, na presença da pessoa ou de amigos dela, poderia ter lhe rendido uma surra (muito bem dada). Como é que você fala na TV que vai pegar uma mulher grávida e ainda comer o filho dela? Esse cara devia ter apanhado mais quando era criança. Seria menos desbocado. (É, falei “apanhado” mesmo, algum problema?).
Quanto ao Duke, foi uma crítica plenamente aceitável a um erro – ou mesmo ato intencional de má-fé – de um árbitro em campo, uma charge totalmente normal como se vê todos os dias relacionadas a todas as esferas sociais. Mas o árbitro entrou com uma ação e achou simpatia no tribunal, que comprou sua dor. Foi ridículo, foi mais uma prova de que no Brasil o certo é o errado e o errado é o certo. (Estou certo ou estou errado?).
Você acredita que após o que aconteceu com a revista francesa Charlie Hebdo os cartunistas serão mais comedidos?
– Eu acho que liberdade de expressão é o bem mais valioso do homem. Mas temos de reconhecer a realidade: uma religião que promulga uma sentença de morte, onde cada membro desta religião espalhado por todo o mundo tem a obrigação de cumpri-la se tiver oportunidade, passa a ser uma ameaça a se considerar. Os extremistas não respeitam nada, matam em nome de Deus, vivem na idade média e querem obrigar todos a viver lá com eles. Devem ser combatidos com todas as armas, e para gente assim, a arma menos eficiente é o humor.
Charlie Hebdo
A revista satírica Charlie Hebdo surgiu nos anos 1960 e há muito assegurou seu espaço na história do jornalismo francês. Descrita como anarquista, ela não poupa políticos, polícia, banqueiros ou religião. Quanto a esse último ponto, é importante ressaltar que a revista sempre foi ecumênica em suas críticas. Publicou inúmeras charges zombando da Igreja Católica — não apenas de papas, mas também da Virgem Maria ou de Jesus — e nunca teve a religião muçulmana como alvo exclusivo.
Fotos de arquivo mostram cartunistas da equipe da revista Charlie Hebdo mortos no ataque. Da esquerda para a direita: Georges Wolinski (em 2006), Jean Cabut – o Cabu (em 2012), Stephane Charbonnier – o Charb (em 2012) e Tignous (em 2008)