Em “A dupla face da guerra: a FEB pelo olhar de um prisioneiro. Baseado no diário do cabo Waldemar Reinaldo Cerezoli”, Cristina de Lourdes Pellegrino Feres traz à luz a história de um herói comum
Por José Horta
DA REDAÇÃO – As histórias contadas sobre as guerras procuram focar as grandes batalhas, como foram lembrados os 80 anos do Dia D, também conhecido como Operação Overlord, que resultou na conquista de parte da Normandia, no Norte da França, e aconteceu no dia 6 de junho de 1944. Mas a guerra tem seus anônimos, pessoas comuns que vivenciaram momentos que os perseguiram por toda vida. E uma dessas histórias é que nos conta Cristina de Lourdes Pellegrino Feres em “A dupla face da guerra: a FEB pelo olhar de um prisioneiro. Baseado no diário do cabo Waldemar Reinaldo Cerezoli” (ed. Intermeios). Cabo Waldemar foi pracinha brasileiro capturado por nazistas na Segunda Guerra. Sua história escondida agora veio à luz graças a esse livro. Trata-se da história de um jovem 24 anos que sentia saudade de tudo e de todos. Ela deixou a pacata vida de funcionário dos Correios para ir até uma terra estrangeira e manusear armas, o que escondeu da mãe a quem disse que iria para o Norte do Brasil. Enfim, a história de um herói comum.
A historiadora Cristina Pellegrino Feres é pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER), da Universidade de São Paulo (USP). Ela vem pesquisando a história da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e descobrindo onde o feito histórico é sobreviver diante da barbárie. E como cantava Belchior em “Alucinação”: “Amar e mudar as coisas me interessam mais”. Feres tem uma linha de pesquisa diferentes da maioria dos historiadores: “Não me interessam os dados sobre batalhas, sobre estratégia militar; me interessa o homem em combate, a valorização do indivíduo na história”, disse na matéria “Os diários de pracinha brasileiro capturado por nazistas na Segunda Guerra: ‘Comíamos neve para enganar o estômago’, publicada no dia 26 de maio no site da BBC Brasil. Informações constantes nesse texto estão presentes nesta reportagem que estampa as páginas do DIÁRIO.
E mais uma vez, fazendo alusão à uma música de Belchior, “Era uma vez um homem e seu tempo”, cabo Waldemar foi um homem que viveu em tempo de guerra. Morador da cidade paulista de Ribeirão Pires, que na época era um distrito de Santo André, Waldemar foi sorteado para servir ao Exército em 1941. Segundo sua certidão funcional, ele era um soldado que se destacava por sua disciplina, força de vontade e resistência física evidenciadas durante os treinamentos. Junto de outros pracinhas, saiu do porto do Rio de Janeiro em 29 de junho de 1944 com uma incógnita em seus pensamentos, pois nem sabia onde desembarcariam no ‘Velho Mundo’.
O diário conta relatos dos 381 dias em que Waldemar ficou fora do Brasil, sendo 142 deles como prisioneiro de guerra no campo de concentração alemão. Sobre a viagem, ele relatou:
“Dia 4 de julho.
A maior parte dos meus colegas está doente. Eu, felizmente, estou me acostumando com a viagem, mas cada dia mais triste porque afasto-me cada vez mais da minha terra e com poucas esperanças de tornar a vê-la. Temos passado fome aqui no navio, onde só temos duas refeições durante o dia todo, e eu não me acostumo com essa comida americana, tudo é doce.
À noite, é uma tristeza, apagam-se todas as luzes cedo e temos que ficar no escuro com os ratos, e o porão faz um calor insuportável! Todos os dias temos instruções de abandono do navio, é a maior chateação!”
Posteriormente, diante de tantas agruras, cabo Waldemar ainda conseguiu ter senso de humor: “Às 7h, preparei minha cama dentro de um galinheiro, mas não pude dormir porque os piolhos me atacaram. Pior que os alemães!”.
A historiadora Cristina de Lourdes Pellegrino Feres teve acesso ao diário de 98 páginas. Ela recebeu uma cópia no fim da década de 1990, das mãos de um amigo da família de Waldemar. Como ainda não pesquisava o tema, deixou o caderno guardado, até que, em 2020, decidiu analisar seu conteúdo. Essa relíquia foi conservada pela família do cabo Waldemar, que faleceu em 1975.
“Mas memória não é só o que se conta, é também o que se decide omitir…”
Para saber mais sobre esse achado, o DIÁRIO entrevistou a historiadora Cristina de Lourdes Pellegrino Feres. Ela nos conta sobre seu trabalho, seu tipo de pesquisa e destaca a importância da memória.
Analisando todas suas publicações, percebemos que a senhora trabalha o resgate da memória e dá visibilidade para histórias escondidas. Por que optou por esse traço de pesquisa?
Valorizar o papel do sujeito comum é dar um toque de humanidade aos grandes acontecimentos históricos, que tendem a valorizar aqueles que têm o poder de decisão e, no caso da guerra, os dotados da visão estratégica. Não é possível entender a sociedade como um todo com uma visão unilateral e que desconsidere seus efeitos e reações nas vidas das partes envolvidas.
No caso de “A dupla face da guerra: a FEB pelo olhar de um prisioneiro. Baseado no diário do cabo Waldemar Reinaldo Cerezoli”, como a senhora tomou conhecimento dessa documentação?
Meu trajeto profissional não foi nada convencional. Já na iniciação científica na USP fui apresentada ao uso de Histórias Orais de Vida, uma novidade que engatinhava no Brasil dos 80 no campo da História – mas largamente usada na Sociologia. Aprofundei neste campo no mestrado, dedicado ao estudo da imigração de famílias italianas que se dirigiram aos primeiros núcleos coloniais que surgiam em São Paulo para abastecer de gêneros alimentícios a cidade que se desenvolvia com a exploração de café. Em seguida, desenvolvi vários projetos de memória empresarial e sindical, quando sócia de uma assessoria de comunicação. Foi nesta época que ganhei o diário, quando nem imaginava estudar a participação do Brasil na Segunda Guerra. Anos mais tarde, decidi largar o empreendedorismo e voltar para o mundo acadêmico, quando montei um projeto junto ao LEER – Laboratório de Estudos da Etnicidade e Racismo (USP) para estudar histórias de vida de soldados no front. Durante esta empreitada – que já dura 9 anos – coletei mais de 40 entrevistas de veteranos de guerra, uma vasta gama de fotografias, cartas e diários. Durante a pandemia, com a dificuldade de deslocamento para pesquisa, dediquei-me a analisar o material que já havia coletado e voltei meus olhos ao diário de seu Waldemar, que chamava a atenção pelo diferencial de contar a história de um brasileiro prisioneiro de guerra dos alemães. O Brasil enviou para a Itália 25.334 homens e apenas 35 foram feitos prisioneiros. Por outro lado, o Brasil aprisionou 20.573 alemães. Meu objetivo foi trazer para discussão o que um prisioneiro brasileiro tinha a contar sobre a história do cativeiro.
Como seu livro dialoga com a historiografia brasileira, e que obras e autores te ajudaram a pensar o tema?
Nos últimos anos, tem sido grande a profusão de diários de
veteranos de guerra brasileiros vindos à público. Na Europa, o boom deste tipo de publicação remonta a Primeira Grande Guerra.
No caso brasileiro, falta um inventário das “escritas de si”
produzidas por aqueles que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália durante o último conflito mundial, cujas publicações se caracterizam, predominantemente, pela reprodução dos manuscritos como resultado das iniciativas de familiares dos sobreviventes, num esforço isolado para manterem-se vivas as memórias e histórias vividas por seus entes. Amadoras, tais iniciativas não conseguem ir além das palavras grafadas, tampouco apresentar reflexões que permitam ao leitor compreender o contexto do registro. Elas têm o mérito da preservação, mas carecem do rigor metodológico.
Eu não queria apenas reproduzir o diário, mas ir além do texto escrito para, como historiadora, dialogar com as palavras e os silêncios, cruzar com a documentação oficial a fim de desvendar a teia social envolvida. Neste campo, os trabalhos de Carlo Guinzburg sobre micro história foram inspiradores.
A senhora mesmo já declarou que “não me interessam os dados sobre batalhas, sobre estratégia militar, me interessa o homem em combate, a valorização do indivíduo na história”. Qual a história mais interessante que a senhora se deparou ao longo da pesquisa para o livro ou a que mais te surpreendeu?
As histórias que o diário não conta: o silêncio. A ausência de detalhes sobre a vida no campo de prisioneiros de Moosburg instigava minha curiosidade, e o tom de sofrimento de suas prosas acrescidas ao diário logo em seguida à volta ao Brasil, levavam-me a supor que pudesse ter prováveis sequelas de guerra. Mas ciência se faz com prova e para eu passar da suposição ao fato era necessário localizar a documentação pessoal do diarista junto ao acervo do Exército no intuito de identificar avaliações médicas que constatassem ou não a hipótese. Confesso que foi grande a emoção quando abri sua pasta com o laudo médico da Junta Militar de Saúde, diagnosticando-o com reação depressiva neurótica.
Pelo fato de estar numa guerra, onde a morte é iminente, como cabo Waldemar lidava com essa situação?
A morte estava sempre presente: seja nos corpos que Waldemar encontrava pelo caminho, nas histórias que chegavam aos seus ouvidos e que comoviam a todos. Em seu primeiro encontro com o inimigo, a morte apareceu personificada em nove cadáveres de alemães encontrados em uma velha trincheira. Os corpos ali dispostos não pareciam perturbá-lo. A frieza com que descreveu a situação, sugere sua possível incapacidade de reconhecer qualquer traço de humanidade naqueles corpos. Parecia indiferente ao cenário trágico. Não descreveu a posição que estavam, o tipo de ferimento ou a expressão em seus rostos, se é que olhou para eles. A única reação mencionada foi a curiosidade de revistar aqueles corpos. Ali encontrou elementos que revelavam o homem ocultado pela farda, cujos bolsos depositavam fragmentos de vidas e histórias carregadas de sentimentos e lembranças registradas nas fotos de moças, de crianças e daqueles homens que ali jaziam. Levou consigo algumas destas imagens sob o argumento de serem “lembranças desse dia de sacrifício”, e que materializavam momentos de vidas que não pertenciam a ele, em objetos que humanizavam seus personagens e contribuíam para o sentimento de não ser tão diferente do inimigo. Neste momento, ponderou sobre como deve ser triste morrer em combate. Imagens que devem tê-lo assombrado e que justificam o sentido da guerra para ele: “na guerra é preciso matar para não morrer”.
Mary del Priore assim escreveu sobre seu livro: “Alguém já comparou os diários a barômetros da Alma. Ali, são medidos os movimentos da consciência, as tensões entre o certo e o errado, os sonhos e frustrações, a banalidade do cotidiano”. Como era a ‘alma’ do cabo Waldemar?
Waldemar era um homem dividido entre a experiência do aprisionamento, das mortes que cometeu (ele era do Pelotão de Petrecho/Secção de metralhadora) e a dificuldade de seguir a vida dentro dos padrões de normalidade no pós-guerra. Ele deixou de ser prisioneiro ao ultrapassar vivo os limites do campo alemão. Mas, ao seu lado, outro Waldemar, envelhecido pelo tempo continuou a olhar para trás, como se fossem duas vidas e dois mundos.
As regiões das cidades de Caratinga e, principalmente, Manhuaçu, enviaram soldados que combateram na Segunda Guerra. Cabo Waldemar chegou a citar se teve algum contato com esses combatentes?
Waldemar pouca escreveu sobre seus companheiros. As raras referências nominais são dadas aos envolvidos no cerco que ele e seus 16 companheiros sofreram em 31 de outubro de 1944 e que resultou em seu aprisionamento. O diário está focado em seus conflitos pessoais, suas expectativas. Penso que o diário nasceu como companheiro de viagem e que não havia, de sua parte, a intenção de um dia torná-lo público.
Cabo Waldemar desenvolveu alguma ‘neurose de guerra’? Como foi a vida dele no pós-guerra?
Como já dito anteriormente, ele foi diagnosticado tardiamente, em 1960, com reação depressiva neurótica, quando procurou a instituição militar diante das crises emocionais frequentes que se acentuavam com o tempo e que dificultavam a manutenção de uma atividade laboral regular. Na volta ao Brasil, ficou seis meses sem trabalhar devido às crises emocionais, e ao longo de sua vida útil dedicou-se ao exaustivo trabalho de cortar pedras, num misto de esforço físico e fragilidade emocional que fizeram dele um sujeito incapaz de competir no mercado de trabalho já aos 41 anos de idade.
Como a senhora avalia a contribuição da sua pesquisa para a historiografia?
Ao tirar do anonimato o diário de Waldemar e trazer à tona um testemunho de guerra desejo estimular a reflexão sobre este episódio da história em que o Brasil esteve envolvido e que ainda é pouco valorizado nos bancos escolares. Quem sabe, também contribua para estimular à refletir sobre o conceito de herói e o impacto da guerra sobre a vida daqueles que combateram.
Continuando no lado pessoal, o que a senhora gostaria de dizer sobre o seu ofício de historiadora, das dificuldades da profissão e suas compensações?
Eu vou fugir do argumento que envolvem falta de recursos para tocar pesquisas e bancar publicações. Considero que o principal desafio tenha sido fazer um trabalho que tenha o reconhecimento dos pares, com o rigor acadêmico desejado, mas que também seja acessível a todos que se interessam pela temática. Ir além das palavras escritas para revelar o universo em que viveu o cabo Waldemar foi o principal desafio que enfrentei ao escrever “A dupla face da guerra”. O mundo mudou depois da guerra, vivemos estruturas mais horizontais, líquidas e inclusivas, e o escritor deve estar ciente de seu papel neste contexto para se fazer entender fora da bolha. Se o meu trabalho tiver despertado o interesse de alguém pela história, pela leitura, ele já valeu à pena.
Fazendo referência a primeira pergunta desta entrevista, como a senhora definiria ‘memória’?
Tendemos a considerar a memória como o conjunto de experiências que guardamos e que nos tornam diferentes de outros. A memória precisa de suportes: eles estão nos grupos de convívio, nas ruas da cidade, nos objetos que nos remetem ao passado. Mas memória não é só o que se conta, é também o que se decide omitir, e o livro de Waldemar é prova do quanto o silêncio diz. O que registrou e o que esqueceu ou é fruto de decisões pessoais. Não há memória sem esforço e sem seleção. Sabemos que escolhas podem ser inconscientes, mas não são aleatórias. Como disse Oliver Sachs, “perdemos um braço, perdemos uma perna, mas se perdermos a memória perdemos a nós mesmos”.