Nelson de Sena Filho
Evidentemente a ocupação de Caratinga deve-se aos inúmeros nativos que aqui viviam e que foram esquecidos pela história oficial: Os Botocudos, que no imaginário branco eram os terríveis e exóticos canibais, nômades que margeavam o rio Caratinga em busca de alimentos; os Puris, os Bugres e tantos outros que, sedentários e mais pacíficos, sobreviviam da pesca no outrora grande rio Bugre ou Cuithé, e da coleta de alimentos e que, mais tarde foram obrigados a trabalhar para os colonos. A historiografia recente, ainda que de forma incipiente, tem buscado contar estas histórias. Vamos nos ater aqui, com documentos ainda raros em nossa historiografia com a chegada dos primeiros colonos e o desbravamento de uma parte dos Sertões do Rio Doce.
A data e o “fundador” de Caratinga
Em 1841 (e não 1848 como normalmente divulgado) chegava as matas de Caratinga o cidadão, Domingos Fernandes de Lana (e não João Caetano do Nascimento, como também se divulga) e, junto com seus companheiros, impressionados com a enorme quantidade de certo tubérculo alimentício chamado caratinga (cara= tubérculo e tinga-branco), deu aos montes o nome de serra do Caratinga. Entretanto, o “poaeiero do Araponga”, como era conhecido Lana, ficou esquecido de nossa história, que prefere a mítica chegada de três Joões, na noite de São João, não por acaso nosso padroeiro transformando a mitopoética religiosa em versão oficial. Entretanto as provas da antecedência de Lana em relação aos Joões podem ser vistas em alguns documentos que não deixam dúvidas historiográficas e que passamos a expor.
Um dos primeiros a levantar a questão foi o médico Lázaro do Val, no excelente, “Cronologia da Região do Caratinga”, que afirma textualmente, “em 1841, Domingos Fernandes Lana… alcançou as nascentes do rio Caratinga”. Baseava ele no, até então, documento mais antigo de nossa história, de autoria de Antonio Caetano Nascimento, intitulado, “Relatório sobre a cidade de Caratinga”, de 1914, infelizmente perdido. Até então, por que hoje publicamos um documento de um dos fundadores de Caratinga, a saber, João José da Silva. Assim, ainda segundo Lázaro do Val, “foram, pois, os Lanas e não os Caetanos, como mais geralmente se afirma, os descobridores de nossa terra, conforme aliás já ficou documentado com o insuspeito relatório de Antonio Caetano”.
Além deste documento, outros atestam a primazia de Domingos Lana na chegada a Região. No Relatório da Província de Minas Gerais, de 1854 o então presidente Diogo de Vasconcelos, falando sobre uma estrada do Abre Campo até o Cuithé, diz que, João José da Silva, um dos três que chegaram em Caratinga, queria continuar a estrada, “aproveitando em alguns lugares a picada já aberta pelo cidadão Domingos de Lana para a colheita de Poaia”. Este importante documento, mostra que até mesmo as autoridades provinciais sabiam do trabalho de Lana.
Um terceiro e definitivo documento, não tendo sido ainda citado em nossa historiografia é de autoria do próprio João José da Silva. Interessando em continuar a estrada acima referida, o mesmo envia uma correspondência ao Presidente da Província, explicando os motivos de seu requerimento. A importância deste documento é enorme para a história de Caratinga.
Raro documento de um dos “fundadores” de Caratinga
Datado de 13 de abril de 1857, o documento faz um balanço detalhado das ações de João José da Silva nas matas dos “Sertões Mineiros”. O Capitão João José da Silva era um rico fazendeiro na região de Abre Campo e amigo de Joao Caetano do Nascimento. Possuía terras em vários pontos de nossa região, a saber, no Ribeirão do Galho, nas Cabeceiras do Sacramento, na Cabeceira do ribeirão Vermelho, no Córrego de São Lourenço e no Rio Preto…
Lázaro do Val citando documento de 1856, afirma ser ele um dos primeiros posseiros de Bom Jesus do Galho. João José da Silva foi bastante atuante em nossa região, abrindo estradas e “picadas”, como por exemplo, do Vermelho até Quartel do Sacramento e de Abre Campo até o Cuithé (Conselheiro Pena). Por este motivo, ele envia correspondência ao Presidente da Provincia, pedindo permissão para abrir outras estradas e informar sobre a região. O documento citado, foi publicado no “Correio official de Minas de 13 de abril de 1857”, com o título, “Estrada do Cuithé – Relatório”. As contribuições mais importantes deste documento são: 1) Ele comprova a primazia de Domingos de Lana na região. 2) Ele comprova que chegou em Caratinga realmente em 1848, junto com seus companheiros. 3) Ele cita como sendo responsável pela abertura da estrada até Cuithé o desbravador João Caetano do Nascimento.
No chamado “Documento dos Ribeiros”, citado pelo Padre Othon, em seu importante livro, “Diocese de Caratinga”, ficamos sabendo que João Caetano foi em Abre Campo conversar com Domingos Fernandes de Lana, que deu a eles “um roteiro até onde tirou poaia com os bugres”. Além dos Joões, e dos filhos de João Caetano, sete indígenas da etnia Tapuya os acompanhavam. No seu relatório, João José da Silva fala que também convidou alguns moradores do Vermelho. A comitiva foi até o Quartel do Sacramento e, antes ou depois da chegada, foram nas nascentes do Ribeirão do Galho, daí até Sapucaia e, enfim chegaram na “barra do Córrego da Barreira”, atual Praça Cesário Alvim.
Assassinos de índios e ladrões de terras: Domingos Lana e João Caetano
Domingos Fernandes de Lana teria nascido em Araponga (munícipio de Viçosa), daí seu apelido de “poiaieiro do Araponga”. Era casado com Dona Mariana Carlotina da Rocha e filho de João Fernandes de Lana e Dona Maria Joaquina Polidora, sendo ele capitão no Distrito da Santíssima Trindade do Descoberto. Domingos Lana é tido como o fundador de Manhuaçu e Raul Soares, que possuem bustos em sua homenagem, como o primeiro branco a chegar nestas cidades. Ao lado o busto da cidade de Manhuaçu.
Encontramos registros de terra em nome de sua esposa, Dona Mariana, em Matipó, na cabeceira do Ribeirão Jequitibá, na Areia branca e no córrego São Vicente, identificado por nós, como sendo perto de Santo Antonio do Manhuaçu. João José, fala destas terras e que Lana possuía várias culturas nela. Interessante documento de 1856 relata que sua esposa possuía nas terras próximas ao córrego São Vicente,” culturas de café, arvores de espinho, paiol, monjolo…”. Ou seja, Lana se estabeleceu em nossa região como fazendeiro, ao contrário do que nossa historiografia afirma.
Seu pai era um importante capitão, que conseguiu junto a Guido Marliere, uma licença para se estabelecer próximo ao Espírito Santo e sobreviver do negócio da Poaia, a mesma função que seu filho exercerá mais tarde e que, por causa dela chegará a nossa região. Esta licença ao capitão foi na verdade uma solução para um grande problema para Marliere. Apesar do pai ser capitão de alguns tios seus ocuparem cargos militares de destaque, Lana e seus irmãos, formaram uma quadrilha que aterrorizava os sertões mineiros. O chefe da quadrilha era seu irmão, José Fernandes Lana, que chefiava “um ajuntamento de malfeitores e desertores” e que tinha escapado da prisão com duas pistolas em mãos, atirando contra a patrulha. Esta quadrilha era acusada de perseguição e violência contra os índios, além de terem ameaçado de morte ao diretor do Aldeamento de São Matheus que acabara fugindo com medo. Além disso, a quadrilha era acusada de terem assassinados alguns portugueses, índios e até “inocentes mulheres”. Além disso, Domingos e seu irmão, foram acusados de espancar dois índios na presença de toda a tribo. Após o espancamento os índios fugiram do aldeamento.
Marliere não pede tempo e pede autorização para prender dentre outros bandidos, a Domingos Fernandes de Lana e seu irmão, “ambos facinorosos ali refugiados, maltratando índios e aos bons Brasileiros” que deveriam ser presos para receberem “pena de severo castigo”.
Diante disso, uma expedição militar adentra os sertões e captura a quadrilha, com os seguintes Lanas: Domingos (nosso conhecido) João Fernandes Lana e Joaquim Fernandes Lana. O perigoso chefe José Fernandes Lana consegue fugir atirando contra a patrulha.
Entretanto, Marliere, acaba soltando os três Lanas, sendo eles Domingos e dois irmão mais novos. Os motivos: Domingos Lana era aleijado de uma mão (detalhe novo para nossa historiografia, que o tinha somente como aleijado, sendo que em alguns escritos diziam ser da perna) e improprio para o serviço militar e seus dois irmãos menores faziam falta a seu pai para os trabalhos. Guido ainda diz que teme ser censurado por ter soltado os facínoras:
Ao soltar os três Lanas, Marliere fez com que eles assinassem um termo protendo nunca mais voltar ao contato com os índios. Jurando que: Nos abaixo assinados… solteiros, vivendo ente os Índios, com outros desertores e malfeitores: prometemos e juramos aos Santos Evangelhos de não voltar-mos ao dito Sertão nem inquietar aos Índios… e de não tornarmos a formar ajuntamento ilícito… Prata 27 de Abril de 1826. Entretanto, e mesmo apesar dos graves crimes atribuídos aos Lanas, um pedido do Presidente da Província leva Marliere a perdoar a família e, como vimos, deixar que a eles regressem aos sertões da divisa com o Espirito Santo para ali recolherem Poaia. Marliere, em oficio ao Alferes João do Monte da Fonseca, afirma que revogou o termo como este havia pedido como “prova completa da minha estima para com a sua pessoa remeto-lhe a portaria incluza em que se acham satisfeitos todos os seus desejos relativos a família do Capitão João Fernandes de Lana”. A seguir Marliere faz interessante afirmação sobre o nosso sertanista e sua família: “O Ceo não permita, que faltar as minhas obrigações, eu não servisse a húa gente desgraçada, qual Vm’ mos pinta”. Ao que parece a família era numerosa e com grandes dificuldades de subsistência. A seguir ele dá um último conselho aos desgraçados sobrinhos do Alferes:
Assim, quando Lana chega em nossa terra, já não pesa sobre ele nenhuma condenação. Mesmo com seu passado de banditismo ele pode se apossar de várias terras em nossa região. Em 1857, pelo documento de João José da Silva, sabemos que Lana “já não estava mais entre os viventes”.
Joao Caetano do Nascimento procurado pela polícia
Joao Caetano nasceu em Ponte Nova no ano de 1806, filho de Manoel Caetano do Nascimento e de Margarida Mendes Coura. Era casado com Generosa Maria da Costa com quem teve dez filhos. A data de seu falecimento é incerta, mas sabe-se que em 1868 era falecido, conforme certidão de vendas de terras feita pela sua esposa, que assim o diz. Ele se apossou de uma grande quantidade de terras, como por exemplo, no Ribeirão do Jacutinga, no Ribeirão Grande de Sacramento, em Abre Campo, Cuithé, no Ribeirão Vermelho, em Inhapim, Bom Jesus do Galho etc. foi sem dúvida, dos desbravadores quem mais se apossou de terras na região. Possuía ainda negócios em Mariana, Arrepiados (por sinal a mesma de onde viera Domingos Fernandes Lana), São Sebastião do Paraiso… Conforme o documento de João José e também já citado por Do Val, João Caetano fez um importante caminho ligando Vermelho Velho até próximo ao Rio Cuithé, e que sem dúvida foi uma de suas maiores contribuições para o Estado.
A primeira menção que encontramos ao nosso desbravador, data de 1842, João Caetano era fazendeiro em Arrepiados (mais tarde Araponga) perto da cidade de Viçosa, por sinal, de onde veio Domingos Fernandes Lana. Conforme o documento acima, em 1848, esteve não só em Caratinga, como também desbravou algumas estradas na região, indo até a “Barra do Cuithé”. Pelos documentos citados Por Do Val e Padre Othon, vemos que ele se estabeleceu na região, vendendo terras, abrindo estradas e possivelmente se estabelecendo na Fazenda de Boa Vista (entre Caratinga e Ubaporanga), como pode ser visto em documento de 1891: “… testemunha que o dito João Caetano do Nascimento, sempre cultivou e habitou o terreno até o ano de 1859”, citado pelo Padre Othon.
Em 1861, João Caetano passa a seu filho uma procuração outorgando-lhe plenos poderes em seus negócios. Ela foi oficializada em Vermelho Velho. Em agosto de 1862 acerta uma viagem a Vermelho para negociar terras, na qual afirma possuir “4 casas no arraial de Vermelho Velho, mostrando que ainda estava em nossa região. Em agosto de 1865 escreve uma carta de São Miguel, desfazendo-se de duas escravas suas. O ano de 1866 termina de maneira terrível para os Caetanos.
Em 16 de outubro, em uma Sessão Ordinária da Assembleia Legislativa Provincial, o Deputado Paula Homem, que havia sido eleito com grande votação em Viçosa e, portanto, atuante em nossa região, passa a denunciar graves crimes dos Caetanos. As acusações são gravíssimas: roubos, assassinatos, tráfico de índios, roubos de terras etc. O resultado da sessão foi, como veremos uma ordem de prisão expedida ao velho Caetano e seus filhos.
Documento raro sobre os “Caetanos”
As acusações do Deputado de Ponte Nova, são extremamente pesadas. Mostrando conhecimento da geografia dos Sertões do Caratinga, ele descreve exatamente a área de atuação da família dos Caetanos, como vimos acima. Segundo o deputado, os Caetanos, ao virem o grande afluxo de pessoas para a região, “continuaram os ladroes e assassinos a lançar posses, e a invadir terrenos quer públicos, quer particulares e a praticarem outros crimes”. Continua traçando um quadro terrível da situação dos Caetanos, avisando que, como falta aparato policial, estas ações ficam impunes: forjam escrituras de compras de vertentes dos córregos de até de rios; ameaçam de morte quem denunciar a situação.
Paula Homem afirma que a quadrilha de João Caetano e seus filhos Antonio e Manoel, possuem 30 indígenas, alguns desertores, e vários escravos fugidos. A seguir, o deputado afirma que já conhece esta situação há mais de dois anos, mas que decidiu agora, levar ao conhecimento das autoridades por causa de uma carta de um importante cidadão de Ponte Nova que além de reclamar da situação de insegurança causada pelo bando, expõe 19 compradores de terras dos Caetanos. Neste ponto uma interessante situação é exposta: João Caetano já havia sido processado em Campos pelo roubo de cavalos. Outra situação que chama a atenção é a seguinte: a quadrilha de João Caetano aprisiona os indígenas no Rio Doce, e os mantém em “duro cativeiro” incitando-os à cometerem crimes e a sustentarem as vendas ilícitas”.
Diante da situação de abandono que a região se encontra, o deputado reitera um pedido de providencia: Que se crie o Distrito de “São Roque do Caratinga”, para que fique mais fácil a prisão e a regulamentação de terras na região. Esta reunia foi em outubro e já no mês seguinte, as primeiras medidas eram tomadas, dada o cenário de impunidade citado: Em 14 de novembro de 1866, o então Presidente da Província, Joaquim de Saldanha elevou a Distrito de Paz, a povoação de São Roque do Caratinga. Ou seja, além de ser um dos desbravadores iniciais de Caratinga, João Caetano também foi responsável pela elevação a Distrito de paz de nossa atual cidade, mas por sua atuação como bandoleiro.
No dia 30 de outubro a Assembleia, aprova sem debater e por unanimidade o requerimento de Paula Homem “pedindo providencias ao governo sobre fatos criminosos praticados por João Caetano do Nascimento e seus filhos”. E a resposta vem na sessão do dia de novembro do mesmo ano: O presidente da Província oficia aos chefes de polícia a prisão e a punição de João Caetano do Nascimento pelos crimes cometidos.
Não sabemos o desfecho da história. Se a prisão se efetivou ou não. Nossa hipótese é que a prisão não se efetivou, pois no dia 27 de março de 1867, poucos meses depois da ordem de prisão, os “caetanos” publicavam um texto se defendendo das denúncias. Antes, porém, em fevereiro do mesmo ano e, possivelmente em represália, Antonio Caetano do Nascimento pede dispensa da Guarda Nacional, o que é prontamente tendido. Devido a proporção que o caso tomou, certamente se teria notícia da prisão da quadrilha dos Caetanos. Seja como for, um ano após o texto se defendendo, sabemos que o velho Caetano já havia falecido.
Documento raro dos Caetanos se defendendo e afirmando a data de 1848
Como dissemos, pouco tempo depois da ordem de prisão expedida, os Caetanos mandam um texto para ser publicado no Diário de Minas, assinado em conjunto com o nome, “Os Ofendidos”. O título é direto: O discurso do Sr. Paula Homem na Assembleia Provincial. Logo de início, os Caetanos afirmam que as denúncias foram feitas por que o deputado estava “coberto com as impunidades da tribuna”. Dizem que vão se justificar perante “o cortejo da polícia em caminho para as maras onde eles habitam”. A seguir os Caetanos dão uma importante contribuição para nossa história: Em 1848 eram inóspitas e cerradas as matas do ribeirão Vermelho; José Caetano do Nascimento acompanhado de seus filhos, Manoel e Antonio, arrostando trabalhos e perigos mortais, abrem nelas uma estrada cômoda que faz a comunicação com o Cuithé, Rio do Sacramento e o Porto de Souza, ajudados por sete índios da raça tapuya.
Temos aqui, uma descrição dos trabalhos em nossa região, feita pelos próprios desbravadores. É natural que ele não fale nada sobre o ainda deserto Sertão do Caratinga e sim sobre a Estrada do Cuithé, muito mais importante para a época. Quanto ao nome constar José e não João a explicação mais simples é que foi um erro tipográfico. A seguir, ele passa a sua defesa, dizendo que não rouba terras, “por que elas sobram” e que não tem índios aprisionados e traz um dado interessante sobre seu estado de saúde:
Em março de 1867 João Caetanos estava no leito da morte. Quanto a estar “sem recursos”, parece um exagero, devido a quantidade de negócios feitos por ele e pelos seus descendentes. E terminam o texto da seguinte maneira:
Ao que tudo indica, este processo não foi levado adiante. Já nos anos seguintes temos notícia de Antonio Caetano tomando posse como Sub delegado de Santo Antônio do Manhuaçu, além de inúmeras confirmações de posse de terras na região em seu nome.
Assim, entre índios assassinatos, ordens de prisão, formação de quadrilhas e degredos, teve início o desbravamento dos Sertões do Caratinga.