José Celso da Cunha (*)
Observa-se que o papel do arquiteto na indústria da construção civil no Brasil, além de outras interpretações e opiniões, teve momentos distintos antes e depois da primeira república, com a tomada do poder por Vargas em novembro de 1930. Enquanto a influência europeia se impôs como consequência natural da cultura do continente colonizador, retratado no urbanismo e na arquitetura de nossas cidades históricas até o início do século XX, percebe-se uma mudança imperativa nas artes e na literatura brasileiras com a visão modernista de 1922, que culmina na arquitetura com a chegada do arquiteto franco-suíço Le Corbusier e sua Escola, já no governo Vargas, influenciando nossos jovens arquitetos e urbanistas, como Niemeyer e Lúcio Costa, respectivamente. Não sou estudioso deste tema, que apenas opino como observador cauteloso do que existe em nossas construções.
Cidades modernas como Belo Horizonte e Goiânia, ambas com urbanismo inspirado na cidade de Washington, nos EUA, planejadas e construídas por engenheiros no final do século XIX, como no caso de BH, tiveram suas principais construções públicas, provenientes da Europa, da indústria francesa e belga. O Palácio do Governo de BH, na Praça da Liberdade, é de arquitetura franco/belga, inclusive projetada por eles, com os principais insumos vindos de navio até o Rio de Janeiro e, posteriormente, sabe-se lá como, até nossas montanhas. Da mesma forma as escadarias das secretarias de Estado, ambas na Praça da Liberdade, são em aço forjado, provenientes da Bélgica. Há também estruturas metálicas provenientes da Inglaterra em nossas ferrovias e estações ferroviárias, portos e mercados como na Amazônia, por exemplo. Arquitetos franceses e belgas estiveram presentes durante o período que durou a construção daqueles prédios em BH. O engenheiro Cristiano Otoni, mineiro do Serro e do vale do Mucuri, do lado brasileiro, participou ativamente do planejamento e das decisões de engenharia que culminaram na mudança da Capital de Minas, da velha Vila Rica para o Curral Del Rey, mais tarde, Belo Horizonte.
Sem uma tradição em arquitetura nacional, a primeira escola de arquitetura, se não me engano, foi fundada em Belo Horizonte, no início dos anos 1930, por um grupo formado basicamente de profissionais de engenharia. Havia poucos arquitetos nesse grupo. O mesmo ocorreu, posteriormente, no Rio de Janeiro, na mesma década. Em ambas, a influência da Engenharia se fez presente, pelo simples fato de que não havia arquitetos com formação erudita em quantidade e qualidade para criar uma escola voltada para o pensamento da liberdade de expressão, como arte ou quase isto, que pudesse se desvencilhar da imposição de pensamento lógico, ainda que inconsciente, da Engenharia. Não havia, portanto, arquitetos que pudessem assumir completamente esse papel.
Voltando-se ao passado, a figura de Aleijadinho e seu conhecimento empírico e intuitivo na arte de construir com criatividade singular, na observação curiosa do que fazia seu pai, o arquiteto Manuel Francisco Lisboa, produziu nossa primeira expressão arquitetônica associada à escultura e à engenharia, por saber juntar conhecimentos técnicos e artísticos num só homem, como um Bernini tupiniquim. No caso, vemos o sucesso do empreendimento conduzido pela arquitetura, como aprendeu com o pai e sua escola europeia, sem nunca ter saído das nossas montanhas. Aleijadinho, como se sabe, tinha uma empresa de construção, com recursos técnicos e de logística para atender às demandas da Igreja e do Estado no âmbito da construção. Infelizmente, não conheço nenhum outro exemplo que repita isto em nossas construções, com tais proporções e alcance, antes do fim da primeira república.
Por outro lado, enquanto a Europa continuava a entregar a condução da construção e sua gestão ao arquiteto ―, entrando com esta prerrogativa pelos séculos XX e XXI, sem jamais perder esta atribuição na indústria da construção civil ―, a nossa arquitetura passou a ser mais voltada para a arte que dela depreende. Ou seja, preocupou-se mais com volumes e formas de obras escultóricas, criadas a partir do edifício Gustavo Capanema, no Rio, com a introdução do novo material, o concreto armado, na construção, dirigida e supervisionada de perto por Le Corbusier, como relatam os especialistas. No início, o exemplo do mestre franco-suíço foi seguido: pensar, projetar, acompanhar e conduzir a obra para o cliente até a entrega das chaves. Niemeyer fez assim no início, possivelmente pela exigência de Juscelino, quando prefeito de Belo Horizonte, no começo dos anos 1940, que exigiria dele um acompanhamento de perto nas obras da Pampulha. Mas, depois, certamente abandonou o barco, sobretudo porque a demanda governamental era grande, do Juscelino governador e depois presidente, não lhe possibilitando estar em todas as obras para acompanhar e conferir de perto o que faziam. Personalista e, porque não, oportunista, o arquiteto resolve ficar apenas com a criação, como um pintor sobre suas telas, não se envolvendo mais com prazos, planilhas e responsabilidades que lhe tomassem o tempo precioso de atender a outras demandas. Com o passar dos anos, não haveria mais espaço para esse arquiteto na obra, dominada pelas empreiteiras. Confiava que os construtores, os que verdadeiramente recebiam diretamente do governo pela construção de seus projetos arquitetônicos, pudessem tocar o empreendimento, já que não havia outra forma de conduzi-la pessoalmente.
Desvincula-se, desta maneira, o arquiteto da gestão da construção, material vasto para pesquisas acadêmicas que identifiquem para nós, em suas dissertações e teses, onde as coisas mudariam de função neste país verde e amarelo.
Na Europa de sempre, o arquiteto pensa a obra com o cliente, propõe alternativas, espaços, volumes, orçamento, prazos, materiais e o ajuda a comprar os serviços da engenharia, gerenciando de perto com a equipe do seu Bureau Technique, tudo o que diz respeito à construção, em todos os sentidos. O Bureau de arquitetura, no primeiro mundo, centraliza nele o controle do orçamento e do prazo, assim como a compra dos demais serviços de engenharia como os projetos técnicos e o construir, dentre outros. O construtor, engenheiro, é cliente direto da arquitetura e não ao contrário. No caso, todos os serviços de engenharia visam a atender o que decorre da arquitetura, pois é nela que está a criação, a visão e a responsabilidade de atender o que necessita o proprietário ou empreendedor.
Fora disto, não existe controle da construção, como produto idealizado no âmbito da arquitetura, sobretudo porque no Brasil não há planejamento suficiente para uma boa gestão da construção civil. Em nosso meio, o cliente proprietário contrata o trabalho do arquiteto, apenas para o “desenho de arquitetura”. Por tradição, de posse deste desenho, ele o entrega para uma construtora, conduzida pela engenharia que ficará encarregada de todo o resto. O resultado, salvo melhor juízo, deixa a desejar. Nosso arquiteto, com raras exceções, infelizmente não se opõe a isto, permanecendo em sua zona de conforto, porque também não foi formado nem forjado numa Escola que o tenha preparado de forma diferente. Refugia-se, por conveniência, no seu trabalho de “desenhar ou até mesmo de criar” o que lhe pede o cliente, sem grandes questionamentos sobre quem vai executar o que contém o seu projeto.
Há, entretanto, exceções. Em Belo Horizonte, há Bureaux de arquitetura que caminham neste sentido. Há outros também no Rio, São Paulo e Curitiba…. Mas, certamente, muito longe do que se obtém em outras culturas. A médio e longo prazos, caberá as faculdades, com seus professores bem preparados e conscientes da sua importância nesse contexto, o papel de mostrar a verdadeira função do arquiteto na indústria da construção civil em nosso país, para que, a partir daí possa haver a mudança esperada, ainda que não percebida por nossos profissionais.
Sei que não vou viver para ver isto acontecer.
(*) José Celso da Cunha, engenheiro civil, professor, escritor, doutor em Mecânica dos Solos-Estruturas pela ECP-Paris. É membro da ABECE, do IBRACON, da Academia Caratinguense de Letras e da Academia de Letras de Teófilo Otoni. E-mail: [email protected]