Finalmente começo a entender a passagem na qual Jesus disse que veio trazer fogo e divisão à terra (Lc 12, 49-53). Por curioso que seja, me vejo autorizado a ler esse texto na esteira do que passa no longo verão amazônico onde as queimadas fazem arder vastas áreas de floresta e ao mesmo tempo, de maneira inédita, a opinião pública se vê preocupada com tal catástrofe.
Digo isto, pois observo que geralmente temos uma ideia fixa a respeito da classificação de quase tudo, incluindo daquilo que pouco conhecemos. Sabemos definir rapidamente o que seja bom ou mau, bonito ou feio, útil ou inútil. É como se tivéssemos a obrigação moral de passar pessoas e situações em uma espécie de sensor que nos informa e nos faz informar todas as verdades a partir dessa simples lógica binária. No entanto, ainda que essa disposição natural nos ajude a sobreviver, nem sempre ela é suficiente para captar situações complexas como no caso amazônico.
Em inúmeros discursos que acompanho, quase sempre vejo pessoas que não buscam nada mais além do que culpados pela destruição de uma floresta. Os mais poéticos comumente têm se lembrado da ganância humana que destrói o planeta, os mais politizados geralmente lembram daquilo que fez ou deixou de fazer seu grupo político opositor, os mais práticos apontam os criminosos que grilam terras públicas e cometem crimes ambientais…
No entanto, chamo atenção para a particularidade do tema ao passo que não basta tratar a questão das queimadas no âmbito de seus responsáveis diretos (na maioria das vezes produtores rurais que se beneficiam de um Estado que não implementa políticas de prevenção e proteção). Assim como todo ladrão necessita de um receptador, também os madeireiros, agricultores e pecuaristas respondem a um amplo mercado consumidor.
Obviamente sabemos que não é gratuito o fato de que os dados dos satélites confirmem a tendência ao forte incremento nas taxas de desmatamento. Dentre eles o Deter do INPE registra no mês passado o assustador crescimento de 222% de áreas desmatadas em comparação ao mesmo período do ano anterior. E com números precisos, o Prodes nos mostra que se em agosto de 2018 perdemos 526Km2 de florestas, no recente agosto de 2019 a Amazônia brasileira permitiu que se destruísse 1.701Km2. Em apenas um mês, em termos comparativos, foi destruído a mata de uma área muito superior ao território de uma capital como São Paulo.
Igualmente também temos ciência de que as queimadas na Amazônia são precedidas pelo desmatamento. Elas se inserem na prática da ampliação e domínio territorial para a agricultura e pecuária. Certamente não é uma bituca de cigarro ou um ongueiro que consegue a triste proeza de colocar fogo em regiões que já no início do inverno amazônico (dezembro) estarão prontas para o desenvolvimento de uma atividade que não requer grandes custos de manejo no curto prazo.
No entanto, não basta demonizar o produtor rural que impunemente comete delitos ambientais. Também é pouco efetivo voltar todas as baterias contra os políticos de turno. Eles tão somente respondem a uma cultura que todos criamos e reproduzimos como sociedade. Se bem que ambos atores possuem responsabilidades constitucionais que devem ser respondidas no foro civil e penal; também lembro que por ignorância, obra ou omissão também somos todos receptadores dos vilipêndios que se praticam na Amazônia.
Em outro momento pretendo falar a respeito dos selos ambientais, no entanto me adianto a perguntar: você está seguro de que a carne ou os inúmeros produtos à base de soja que sua família consume não provém dessa região? Ou ainda, você tem noção de que está sendo beneficiado com a segurança energética e os resultados mais imediatos do PIB a partir de áreas amazônicas que teoricamente deveriam estar reservadas à preservação ambiental?
É óbvio que a fiscalização intencionalmente tem diminuído. Os órgãos reguladores e de fiscalização ligados ao Ministério do Meio Ambiente continuam sem ter a força institucional que necessitam. Também sabemos de poderosos movimentações políticas para reduzir as reservas florestais (Projeto de Lei n° 2362, de 2019). Mas por mais assombroso que seja, nada disso se compara ao assombroso silêncio que toda sociedade tem em relação a si mesma. O fato é que países como o Brasil cresceram dando às costas para o bioma e a gente amazônica.
Como dito, jamais deixaria de imputar responsabilidade àqueles que assumem obrigações constitucionais de proteger o território Amazônico (Art. 225, CRFB, 1988). Porém não podemos esquecer que tanto em períodos democráticos como autoritários, nunca nos organizamos como sociedade tendo uma agenda estratégica sustentável.
Ficar de luto pelos animais que morrem queimados sem conseguirem escapar das chamas registra um bom sentimento de compaixão, mas por si só não nos compromete em nada. Detectar o vilão, demonizar um terceiro, encontrar alguém para acusar só serve para amenizar nossas próprias culpas, pra dormirmos com a falsa consciência do dever cumprido.
Enquanto estivermos querendo apagar incêndios – literalmente ou não, seguiremos tratando um tema antigo como se fosse novo. Para essa questão bastaria o cumprimento da legislação ambiental e fundiária vigente. Temos que estar cientes que as queimadas são frutos de um longo processo que sequer começa na região norte de nosso continente Sul Americano.
Sim, por mais contraditório que pareça, as queimadas que anualmente sobrevém à região amazônica tem sido a denúncia profética que nos faltava. Nesse ponto, já não me soa estranho que um pacifista como Jesus tenha prometido espalhar fogo e divisão na terra, com tal de que despertasse toda e qualquer falsa consciência que sempre imputa a outros a culpa. Se não olharmos a partir de nossa própria casa nunca modificaremos nossas opções económicas, políticas e de consumo. Ainda que arda, oxalá que esse fogo nos modifique.
Gilton Ferreira de Holanda, sss – [email protected]