* Fernanda Silva Vicente
Não consigo começar uma crônica sem constar que fazia uma tarde fria e triste. Talvez porque as tardes frias e tristes peçam para ganhar um pedaço de papel e tornarem-se eternas. Pois bem, fazia uma tarde fria e triste.
Senti saudades de não sei o quê. Quis ler alguma coisa, mas os mesmos livros de sempre me olhavam com tédio da estante defronte. Fiz um café e tentei escrever alguma coisa no caderninho lilás – que agora era amarelo. Não consegui. Faltavam-me palavras. Faltavam-me os fatos. Faltava-me a poesia. O eu lírico emudecera. E eu quis saber a causa de tamanha desordem, do silêncio caótico que me ocupava por dentro.
Vesti a roupa da academia para dar a falsa impressão de saúde e disposição e saí. Pensei em caminhar um pouco, mas a tarde fria e triste me convidou a uma boa leitura.
Boa leitura? Lembrei-me da biblioteca municipal. Lembrei-me dos versos de Camões. Dos romances de Machado de Assis. E optei pelo caminho da biblioteca. Atravessei, às pressas, o passeio público e avistei o prédio envelhecido. Entrei.
Ali, nos corredores, o ar era parado. Imaginei estar adentrando uma antiga cátedra mal iluminada. E o pensamento não esvaiu quando entrei nas salas. Escuras e vazias. Extremamente vazias. Cruamente vazias.
Apenas uma senhora espiava o computador através dos pequenos óculos. Não notou minha presença. A sala era tão vazia que eu temia que minha respiração ecoasse pelas paredes. Pela primeira vez, senti-me tão só no meio de tantos livros.
Andei entre as estantes, folheando alguns títulos. Passando aleatoriamente a ponta dos dedos pelas fitas laterais que informavam os nomes.
Filosofia, poesia, romance…
História, literatura, crônica…
Nada novo. Nada que eu já não tenha lido. Procurei algum livro antigo, cuja capa grossa e amarelada devolvesse-me a vida naquela tarde friorenta. Encontrei um. Era o Quincas Borba. Um dos melhores.
Assoprei a camada de poeira que cobria o calhamaço. Abri. De tanto ficar fechado, as páginas estavam grudadas, e estalavam conforme iam sendo abertas. Tamborilava os dedos sobre a capa grossa e amarelada e, aos poucos, sentia que dentro de mim pulsava o sangue. Um grande tomo velho e amarelado. Mil anos se passaram quando li a primeira linha.
[Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã.]
Continuei folheando e caminhando em direção à entrada quando me detive atrás de uma prateleira. Ouvi palavras. Sílabas soltas que, juntas, formavam palavras. Havia, na biblioteca, além de mim e da senhora no computador, um garotinho de sete ou oito anos que lia um pequeno livro de histórias.
Sim, detive-me a fim de não interromper aquele sagrado momento. Sua voz fina ecoava pela biblioteca vazia. O que me fez recobrar a consciência e sair apressada daquele local.
A morna tristeza que me encobria, transformara-se agora em depressão profunda. Tive ânsias e uma vontade estúpida de chorar. Senti-me impotente. Incapaz de salvar aquele garotinho do futuro que o aguardava, dos sonhos que haveriam de povoar sua pequenina alma. Voltei para casa correndo, atravessei as ruas embaixo de uma fina garoa aterrorizante. Subindo as escadas, chorei.
Lá fora, a cidade continuava o seu ritmo natural, a cacofonia das ruas compondo a melodia triste da vida. Pessoas apressadas rumando para a fonte das incertezas. E eu, entre elas, fugindo de mim mesma, tentando encontrar respostas. Mas, afinal, o meu interior também era fonte de incontáveis incertezas.
[E o universo só devolve solidão para quem cultiva incertezas…]
Em casa novamente. As palavras voltavam-me à mente. Assaltavam-me o pensamento a ponto de querer saltar para fora. E, assim, eu sussurrava, a fim de que as paredes pudessem me entender. Pegando a caneta, comecei a contar esta história, buscando palavras que confortassem a mim mesma.
Aqui dentro, corre tudo bem.
Longe das câmeras que deflagram a estupidez humana. Longe das fotografias que expõem a promiscuidade da juventude do século 21. Alquebrado século 21 – cujos anos carregam a desgraça de um período sem estudos. Sem livros. Sem grandes conquistas.
Ainda penso que nasci no século errado.
Aqui dentro, onde ainda se sabe ler, encontra- se um mundo abandonado. Um mundo velho e antiquado, que foi substituído pela tela de um celular. Um mundo em que bancas de jornal não trazem mais a informação. Um mundo frio e doído, que se tornou cruel por aprender a dilacerar sonhos e amores.
As pessoas não sabem o que fizeram do mundo.
A máquina a vapor diminuiu distâncias. Mas a maior distância é aquela que existe entre duas pessoas que se cruzam, e não se falam.
Não mais se discute. Não mais se lê. Não mais se pensa. Não se vive. Apenas se existe. Não mais se questiona sobre a vida. Somente se caminha rumo a um futuro incerto. Caminha-se como um rebanho de vacas pastoreado por um holofote. Destoante, barulhento.
As filosofias transformaram-se em e-books, onde se leem sucessos de grandes vendas. A literatura tornou-se obsoleta. Os antigos livros transformaram-se em esquecidas pilhas empoeiradas em prateleiras velhas de uma biblioteca, onde ninguém mais entra.
E é tão triste!
A literatura padece.
Encontro-me novamente ante os mesmos livros que insisto em guardar, como um bálsamo para as dores. Lembro-me do pequeno que, inocente, ecoava as primeiras palavras numa biblioteca vazia.
Ah, pequeno… Não sabe onde acaba de ser jogado. Não sabe o que lhe espera aqui dentro, do outro lado desse mundo doído.
* Autora convidada – Fernanda Silva Vicente, 19 anos, é ex-aluna da Escola Professor Jairo Grossi, coautora do livro Metafísica Literária – publicado pela editora Funec, 2016
Um comentário
Vitor Alves
Profundo. Futura escritora