Neste ano, os registros já somam 4.421, considerando o período de janeiro a agosto
“Eu entreguei para ele R$ 100 mil. Estava feliz vendo-o feliz. Fiz empréstimos para dar para o meu ‘príncipe’ tudo o que ele queria. Ele foi embora e me abandonou com uma dívida que, hoje, está em cerca de R$ 1 milhão. Mas o pior vazio não é o do bolso: é o da alma”. O relato de Magali* (nome fictício), de 58 anos, se junta ao de milhares de mulheres vítimas de violência patrimonial no Estado. De acordo com dados da Polícia Civil, 19 ocorrências do tipo são registradas em Minas Gerais, em média, todos os dias. Neste ano, os registros já somam 4.421, considerando o período de janeiro a agosto. Nos mesmos meses do ano passado, os casos somaram 4.500. Em todo 2023, foram 6.684. Nessa segunda-feira (26 de agosto), O TEMPO mostrou como esse tipo de violência afeta também os idosos, privando-os de usufruir de seus bens na terceira idade.
Conforme explica a delegada Karine Tassara, titular da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher em Belo Horizonte, a violência patrimonial é entendida “como qualquer conduta que configure a retenção, a subtração, destruição parcial ou total dos objetos, instrumentos de trabalho da vítima, documentos pessoais, bens, valores, direitos e recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades básicas”. Apesar de os abusadores poderem ser filhos, pais, entre outros, em Minas Gerais, a maior parte deles são os companheiros ou ex-companheiros das mulheres.
No caso de Magali*, o ex-namorado pedia dinheiro como prova de amor. Ele também utilizava os cartões dela sem pedir permissão — mas, quando a mulher se dava conta, não se importava, porque, segundo ela, estava apaixonada. O assunto violência patrimonial também veio à tona após a atriz Samara Felippo ter afirmado que sofreu um golpe do ex-marido e ex-jogador de basquete Leandrinho Barbosa. Ela contou que usou o dinheiro da venda de um imóvel para comprar uma casa com o então companheiro. No entanto, ela diz ter descoberto anos depois que a residência estava no nome do ex-cunhado e, agora, luta para reaver a parte que ela investiu.
Esses, porém, são apenas alguns exemplos de tudo o que a violência patrimonial compreende. Conforme Karine Tassara, são diversos os casos registrados no Estado. E é importante conhecê-los para saber se está sendo vítima do crime.
“Temos as situações em que o homem apodera-se dos rendimentos da vítima e não deixa que ela controle o seu próprio dinheiro. Situações em que ele faz dívidas em nome da vítima, se apropria de bens dela, por exemplo, começa a utilizar o carro, a moto, o celular. Situações em que ele se apropria de herança, de bens anteriores adquiridos pela vítima, sem se tratar de comunhão universal de bens”, conta ela.
Outra ocorrência comum, conforme a delegada, é quando, no processo de separação, o homem camufla os bens e coloca tudo o que tem em nome de laranjas. Quando há a partilha, a vítima fica sem nada. Também há casos, como Karine Tassara relata, em que o homem impede que a mulher trabalhe e conquiste o seu dinheiro. Outro exemplo é o de estelionato sentimental, em que o homem ilude a mulher e faz com que ela o beneficie financeiramente, inventa mentiras e diz que a ama.
“O meu abusador fazia justamente isso comigo: me tratava como uma rainha. Ele foi o homem mais doce e incrível do mundo! Nós nunca brigamos, ele nunca levantou a voz para mim, fazia de tudo por mim. Ele me deixava escolher todos os nossos passeios, sempre tinha um ato romântico, parecia saído de um romance. No entanto, às vezes ele lamentava a situação econômica dele, me pedia dinheiro, mas de uma forma muito carinhosa. Eu não tinha grandes quantias, então eu fazia empréstimos. Ele sempre se mostrava grato e fingia estar lutando para me pagar. No entanto, sumiu. Eu não o denunciei porque, mesmo após tudo, eu ainda o amo”, diz Magali.
Abuso ‘invisível’
Em grande parte das vezes, é justamente dessa maneira que o abusador se comporta quando o assunto é violência patrimonial, de acordo com o psicólogo Thales Coutinho. Por isso, a vítima pode não reconhecer a situação. O profissional explica que identificar esse tipo de crime pode ser um desafio maior do que quando se trata da violência física ou psicológica, que são mais ‘aparentes’.
“Quando a violência não é explícita, como algo físico, ela pode ser mais difícil de perceber. Muitas vezes, o companheiro se aproveita do amor da mulher, usa a sedução para camuflar o que está fazendo. Ele precisa que a vítima acredite que está tudo maravilhoso no relacionamento. Quando você ama alguém, você ‘baixa a guarda’, por causa da confiança. Você não espera que justamente essa pessoa vai te aplicar um golpe”, diz Coutinho.
O psicólogo ressalta que, em geral, as vítimas vivem um relacionamento muito bom com o companheiro, com momentos de tranquilidade e alegrias, demonstrações públicas de afeto, o que torna turva a percepção dela. “Ele faz de tudo para que a violência passe despercebida”, conta. “No caso da violência patrimonial, ela é muito sutil, e a mulher é sempre ludibriada”, acrescenta a delegada Karine Tassara.
Ajuda de terceiros
Como a violência patrimonial pode ser bastante silenciosa, tanto Coutinho quanto Karine afirmam que é importante estar atento ao que as pessoas próximas dizem sobre o relacionamento. “Nesses casos, é importante observar as pistas que terceiros possam dar. A violência, em geral, é sinalizada por outras pessoas. Se alguém sinalizar que você está sendo vítima, dê crédito para essa bandeira vermelha”, diz Coutinho.
A delegada Karine Tassara também ressalta a importância de contar com o auxílio de terceiros para identificar e sair da situação. “Quando a mulher estiver em dúvida se ela está sendo vítima de algum tipo de violência, inclusive patrimonial, ela pode conversar com uma amiga, um profissional, um psicólogo, pessoas próximas, familiares, que poderão auxiliá-la no sentido de identificar se ela é vítima de algum tipo de violência”, diz.
Conforme a delegada explica, as vítimas de violência devem procurar as autoridades. Ela relata que a Polícia Civil atua a partir do momento em que a mulher vai até uma delegacia ou até uma base da Polícia Militar e registra um boletim de ocorrência relatando os fatos. Várias medidas podem ser tomadas, inclusive para proteger o patrimônio da vítima.
“Por vezes, ela vai pedir uma medida protetiva contra o suspeito, por vezes ela só vai querer uma providência criminal, instauração da investigação. Então, é necessário uma ação positiva dessa mulher no sentido de noticiar para a polícia os fatos para que a polícia tome as providências cabíveis, oriente essa mulher em relação aos seus direitos e em relação aos seus mecanismos de proteção”, afirma ela.