
Pela proposta, crianças, em todo o país, deverão ter acesso desde cedo a conteúdos de português e matemática (imagem ilustrativa)
Sobre as mudanças na Base Nacional Curricular Comum (BNCC), professora diz que elas são necessárias, “mas não suficientes para a alfabetização”
DA REDAÇÃO – As crianças, em todo o país, deverão ter acesso desde cedo a conteúdos de português e matemática. Até o 2º ano do ensino fundamental, geralmente aos 7 anos, os estudantes deverão ser capazes de ler e escrever. Além disso, aprenderão conteúdos de estatística e probabilidade. As definições estão na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apresentada nesta quinta-feira (6) pelo Ministério da Educação (MEC).
Na educação infantil, que vai até os 5 anos, a BNCC estabelece que seja desenvolvida a “oralidade e a escrita”. O conteúdo começa a ser introduzido aos poucos. Até 1 ano e 6 meses, as creches deverão garantir, por exemplo, que as crianças reconheçam quando são chamadas pelo nome ou demonstrem interesse ao ouvir a leitura de poemas e a apresentação de músicas.
Aos 7 anos, no 2º ano do ensino fundamental, as escolas deverão garantir que os estudantes saibam escrever bilhetes e cartas, em meio impresso e digital – e-mail, mensagem em rede social. Devem também ler, com autonomia e fluência, textos curtos, com nível adequado, silenciosamente e em voz alta.
A matemática também deverá estar presente na formação desde cedo. A partir dos 6 anos, no 1º ano do ensino fundamental, os estudantes terão acesso a conteúdos de probabilidade e estatística. Até o final do segundo ano, saberão, por exemplo, coletar, classificar e representar dados em tabelas simples e em gráficos de colunas, além de classificar eventos cotidianos como pouco ou muito prováveis, improváveis e impossíveis.
PROFESSORA ANALISA MUDANÇAS NA BNCC
Para entender melhor essas mudanças, o DIÁRIO pediu a opinião de Celeste Aparecida Dias, que é professora de cursos de graduação e pós-graduação do UNEC, diretora do Instituto Superior de Educação – ISE e também trabalha com consultoria e assessoria em Educação. Segundo ela, essa decisão de alfabetizar todas as crianças no 2º ano retoma um direito que vigorou no País até na década de 80, quando era chamado de 1ª série primária. “Naquela época, quando aconteceu o fim da ditadura militar e se iniciou o processo de redemocratização do Brasil, um dos direitos básicos garantidos na educação foi a democratização do acesso de todas as crianças às escolas públicas. Dessa forma, as crianças das classes populares, cujos pais de maioria analfabeta e com ausência da cultura da leitura e da escrita, entraram para as salas de aula e desafiaram todas as didáticas adotadas pelos professores brasileiros, pois cerca de 50% delas não aprendiam a ler no tempo esperado e, por isso, eram reprovadas, “repetentes” até abandonarem a escola com rótulo de “burro””.
De lá para cá, por pressão de órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos, muitas foram as mudanças nas políticas públicas em busca de fazer essas crianças aprenderem a ler a um custo de investimento mínimo possível. “Bateram cabeça em busca de soluções, às vezes quase milagrosas, mas nestes últimos 5 anos, tem adotado medidas mais sensatas de apoio à educação e à saúde das crianças de classes populares, usando como critério de prioridade de apoio as famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família”, observa professora Celeste.
As leis brasileiras de educação transferiram o antigo 3º período da educação infantil para o 1º ano do ensino fundamental, obrigaram a matrícula e frequência de crianças de 4 e 5 anos na escola infantil e ampliaram o direito a creches para, pelo menos, 50% da população. “Desse modo, as classes populares desamparadas da década de 80 passaram a ter, pelo menos em legislações, alguns direitos na educação de base e o desafio agora é transformá-los em realidade de fato. Mas, como conseguir cumprir esse desafio?”, indaga a professora.
Para professora Celeste Aparecida Dias, essas mudanças nas leis brasileiras da educação, sobretudo a alfabetização no final do 2º ano, é uma decisão sensata e coerente com o desenvolvimento infantil, “pois a criança inicia seu processo de simbolização em torno de 2 anos e é uma das principais capacidades para a aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, considerando que o MEC estabeleceu que, a partir de 2016, as famílias são obrigadas e matricularem suas crianças de 4 e 5 anos nas escolas de educação infantil, se os municípios fizerem a qualificação de seus professores do pré-escolar para trabalharem o currículo de acordo com a BNCC da Educação Infantil, estas crianças chegarão no 1º ano do ensino fundamental (antigo 3º período do pré-escolar) com todas as capacidades básicas para a alfabetização plenamente desenvolvidas, portanto, prontas para se alfabetizarem. Essas crianças ainda terão 2 anos para serem alfabetizadas, pois deverão ler e escrever no 2º ano”.
DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM (DA)
De acordo com a professora, as crianças que não conseguirem se alfabetizar dentro deste prazo podem ser consideradas crianças que possuem algum tipo de Dificuldade de Aprendizagem (DA) e, por isso, precisam de algum tipo de apoio e intervenções didáticas e psicopedagógicas, identificadas após a realização de avaliações psicopedagógicas do desenvolvimento dessas crianças. “Meus mais de 20 anos de experiência de estudos e de práticas de avaliação e intervenção psicopedagógica com estes perfis de crianças, e de igual tempo de experiências com cursos de formação continuada para professores, me permitem afirmar com convicção que este é o principal desafio de todo o processo de alfabetização”.
Por um lado, os professores que atuam na educação infantil e nos anos de alfabetização não possuem formação inicial que os qualificam para identificar sinais de prováveis Dificuldades de Aprendizagem da criança, nem eles tem tempo pago disponível para fazer esta avaliação. “Por outro lado, os municípios contratam quantidade insuficiente de pedagogos para realizarem as avaliações e as intervenções psicopedagógicas necessárias como apoio ao trabalho do professor em sala de aula. E essa conta é relativamente fácil de fazer: todo município tem, no mínimo, cerca de 10 a 15% de suas crianças com algum tipo de DA”, salienta professora Celeste.
Para ilustrar sua linha de raciocínio, a professora cita, por exemplo, um município que tiver cerca de 7 mil alunos tem, no mínimo, 700 crianças com algum tipo de DA. “Se uma pedagoga tem um contrato de 8 horas por dia, somente para fazer avaliações e intervenções psicopedagógicas, com 2 sessões semanais para cada criança, que é o ideal, ela consegue atender a 20 crianças por semana, considerando sessões de 1 hora, que também é o ideal. Assim, este município precisaria contratar, pelo menos 35 pedagogos, exclusivamente para realizar estes serviços psicopedagógicos de apoio ao desenvolvimento das crianças com DA, que vão refletir no apoio à aprendizagem realizada pelos professores, em suas salas de aula. Ou seja, os demais serviços administrativos e pedagógicos da escola, não estão incluídos nestes serviços e devem ter outros pedagogos contratados para realizá-los”.
Conforme a educadora, somente este exemplo confirma as palavras de vários pensadores da educação brasileira de que agora o desafio é transformar os direitos garantidos legalmente a todas as crianças brasileiras em realidade de um modelo de escola inclusiva. “As políticas públicas nacionais de apoio financeiro aos municípios estão relativamente bem estruturadas. Cabe aos municípios escolherem profissionais da educação competentes e que tenham vontade de trabalhar pelo cumprimento dos seus deveres em relação ao atendimento aos direitos dessas crianças, especialmente as pertencentes às classes populares, que sofrem na pele a perversidade de uma exclusão sutil das escolas e sistemas, que responsabilizam somente as famílias pelo fato de as crianças não irem à aula. Escolas e sistemas que não se olham no espelho, que não olham para dentro de si mesmos e, por isso, não percebem suas contribuições para o fato de essas crianças não desejarem e não sentirem prazer de estarem nas escolas e de aprenderem a ler e a escrever”.
A professora Celeste Aparecida Dias conclui dizendo que “nossas escolas de educação infantil e de ensino fundamental e nossos sistemas escolares tem muitos desafios pela frente para alfabetizar todas as crianças e adolescentes brasileiros e transformá-los em leitores proficientes, muito além da implantação de uma Base Nacional Comum Curricular”.