“Quando nego esse dia, é como se eu negasse também a herança que veio do povo negro”, afirma Giuliane Quintino
CARATINGA- Dia Nacional da Consciência Negra é uma data de celebração e conscientização sobre a força, a resistência e o sofrimento que a população negra viveu no Brasil desde a colonização. O 20 de novembro é marcado pela reflexão e análise dos avanços, na luta pela igualdade racial.
Em Caratinga, quando se fala sobre esta luta, quase que automaticamente o nome de Giuliane Quintino Teixeira é lembrado. Giuliane é formada em Letras pelo Centro Universitário de Caratinga e especialista em cultura afro. Milita no movimento negro desde 2004, atua como presidente do Conselho Municipal de Promoção à Igualdade Racial de Caratinga e trabalha na Superintendência Regional de Ensino.
Nesta entrevista, Giuliane fala sobre as conquistas e os principais desafios em busca da igualdade racial, além de reforçar a importância do dia 20 de novembro.
Você já sofreu racismo?
Sofria muito quando era criança, na época de escolarização, sempre havia algumas piadas que tinham essa menção de chamar a gente de apelidos pejorativos, às vezes ficava muito triste. Mas, eu tive uma base muito grande da minha família, minha mãe sempre me deu muita força, sempre aumentou muito a nossa autoestima, colocando que ser negro é bonito. Sempre que ela via algum ator ou artista negro na televisão, falava: ‘Vem ver que lindo’, sempre nos colocava em sentido que a gente não podia ser diminuído, que ninguém poderia nos diminuir. Então, desde muito cedo sempre tive essa consciência que nós todos temos nosso e valor e ninguém pode nos diminuir.
Como você avalia as conquistas do movimento negro?
Avalio positivamente. O movimento negro no Brasil começa na década de 70 e a gente consegue perceber que através das legislações, do Estatuto da Igualdade Racial, da Lei 10.639/03, que nós avançamos. Há muito ainda que avançar, mas conseguimos perceber nitidamente o nosso avanço, por exemplo, com a Lei 10.639/03, hoje conseguimos perceber que todas as escolas trabalham não somente o dia da Consciência Negra, mas todo o ano letivo com influência da história e cultura afro brasileira e africana com os alunos, desde a educação infantil até no ensino médio. Todas elas fazem a culminância no dia 20 de novembro ou na chamada de Semana de Educação para a Vida. Então, a gente consegue perceber esses avanços e os avanços também com relação às cotas, não somente na área estudantil, mas também para programas de televisão, por exemplo, uma novela tem que ter a porcentagem de negros, um concurso público. Conseguimos perceber a inserção do negro na sociedade através dessas políticas públicas. Ainda há muito o que avançar, mas o que a gente já consegue perceber já é nitidamente perceptível na nossa sociedade brasileira, o que não era percebido antes.
As religiões de matriz africana, ainda há muito preconceito…
Sim, a gente ainda vê a intolerância religiosa. Tenho meus amigos de religião de matriz africana e conversamos muito sobre isso e eu fico feliz quando eles estão junto a nós, quando eles se colocam junto conosco do movimento negro; os meninos da capoeira também, dos outros coletivos porque a gente tem que se unir. Para ter efetivamente a igual racial, todos devem estar unidos em um mesmo objetivo. Então, ainda percebemos a intolerância religiosa com os nossos irmãos de matriz africana, que nada mais é uma religião como qualquer outra, que merece respeito e que merece todo o carinho.
Muito se fala em movimento feminista. E o feminismo negro?
Existe. Como Angela Davis fala, quando uma mulher negra se levanta, toda a sociedade se levanta com ela. Então, percebemos que ainda a questão da mulher por ser uma minoria, quando falamos de mulher negra, ainda a situação é pior. O que a gente consegue ver que feminicídio, a violência contra a mulher, quando vai colocar a mulher negra, ainda os índices são mais altos do que com a mulher branca. Também na questão do trabalho, em um setor de trabalho, uma mulher branca e uma mulher negra, quando eles veem uma mulher negra no setor eles, automaticamente, associam ela a copeira ou a faxineira. Não acham que ela pode estar fazendo um serviço ali de chefia né. A sociedade ainda tem essa visão e infelizmente quando chega às vezes que está tão enraizado, que nem culpamos a pessoa, uma consciência da sociedade de muitos e muitos anos aquela tradição. Tenho uma amiga advogada negra, ela falou que sempre quando eles chegam acham que ela é a secretária. Então, conseguimos perceber ainda isso muito efetivamente na sociedade brasileira, porque durante 500 anos de colonização, nunca vimos o negro nesses espaços. Ver hoje a pessoa não está acostumada.
O Dia da Consciência é questionado por algumas pessoas, que afirmam que deveríamos celebrar a consciência humana. Por que é importante celebrar o 20 de novembro?
Precisamos sim de um dia de Consciência Negra. Às vezes a pessoa fala que não precisa, mas é porque não entende a essência da data. O que é ter não somente o dia, mas a consciência negra? É reconhecer o papel do negro na sociedade brasileira, reconhecer todas as contribuições que foram deixadas por eles para que o nosso Brasil hoje fosse essa nação. Por muito muito tempo só valorizou a cultura do branco, o que o branco deixava para nossa nação, não se valorizou nem a cultura indígena e nem a cultura do negro. A partir do momento que eu, sendo branco, indígena ou negro, reconheço essa contribuição do povo negro, nas artes, cultura, música, dança, esporte, tenho consciência negra. Mesmo eu sendo branco, mesmo sendo de outra etnia. Quando reconheço, isso é chamado Consciência Negra, é porque eu tive a consciência de que o negro contribuiu para que a sociedade brasileira fosse essa nação de hoje e pela miscigenação do nosso país, a importância do povo negro dentro dele. Quando nego esse dia, é como se eu negasse também a herança que veio do povo negro. E se a gente tivesse verdadeiramente consciência humana, desde a época que acabou a escravidão e que nós tivéssemos que ser inseridos na sociedade, hoje nós não precisaríamos, mas a gente ainda precisa discutir, porque se a gente não tiver um dia podermos puxar essa discussão, nós nunca vamos puxar e nunca vai ser falado. Precisamos sim de um dia de Consciência Negra, para que todos reflitam sobre essa data, não somente nesse dia, mas em todos os dias, juntamente, principalmente com as escolas e as faculdades. Hoje, conseguimos perceber o curso de Direito puxando essa discussão, Teologia, História, Letras… Fui fazer uma palestra sobre igualdade racial na Faculdade do Futuro, fiquei impressionada, o curso de Farmácia puxando essa discussão. Então, é uma discussão que perpassa por todas as áreas, com todos os cursos, todas as instâncias da educação. Percebemos que ocupa vários espaços, por a igualdade racial passa pela Educação, Saúde, Assistência Social, Direito, em todas as áreas. Conseguimos perceber a necessidade dessa conscientização. Quando se fala em consciência humana e nega a conscientização da população negra é como se eu trabalhasse só a consciência humana e eu não pudesse trabalhar a consciência negra. Convido as pessoas que têm essa dúvida a investigar um pouco mais qual é a origem dessa data, o porquê foi instituído o dia 20 de novembro, como o movimento negro escolheu essa palavra consciência negra, poderia se chamar também e é chamado em alguns lugares como Dia de Zumbi, mas nos calendários escolar e nacional é o Dia da Consciência Negra.
E em políticas públicas?
Temos as políticas públicas de promoção à igualdade social, o estatuto de Promoção à Igualdade Racial e as ações afirmativas. Temos avançado, através das conferências. Sempre fazemos as conferências a nível estadual, regional, municipal e federal. Através dessas conferências, quando se uma a sociedade civil organizada e quem está nas esferas governamentais, saem as leis, as propostas de leis que vão para ser votadas, então essa legislação conseguimos perceber o avanço das políticas públicas de Promoção da Igualdade Racial.
Falta representatividade política na nossa cidade, por exemplo?
Ainda percebemos que no processo eletivo de votação, prefeito, vereadores, senadores, deputados, presidentes ou vice-presidentes, ainda temos pouquíssima representatividade do povo negro. Ainda não conseguimos ver o povo negro nesses espaços, assim também como nos espaços de serviços, por exemplo, medicina, advocacia, os juristas, promotores, de uma maneira muito tímida, quase um por cento de população negra nesses setores. Onde a vemos mais o povo negro? Nos serviços que são considerados inferiores, não menos dignos, mas inferiores pela sociedade, gari, varredor, faxineira. Queremos mostrar que podemos estar também em outros setores, que temos a mesma capacidade.
Quais são suas considerações finais?
Gostaria de agradecer a vocês do DIÁRIO, que sempre estão de portas abertas para o nosso trabalho, nos apoiam tanto, isso é muito importante para nós, a valorização de vocês, enquanto imprensa, principalmente, na nossa cidade, que é tradicional, mas que sempre está aberta ao nosso trabalho. Quando vemos os avanços, vemos os avanços nossos também enquanto movimento negro, enquanto Grupo São Benedito. Conseguimos perceber o respeito que Caratinga tem por nós quando estamos nos nossos espaços, conseguimos garantir esse respeito a nós, o respeito à diversidade, que é justamente pelo que a gente luta. É a igualdade e o respeito à diversidade, não somente a nós da população afro-brasileira, mas respeito também às religiões de matriz africana, aos nossos irmãos LGBT, às pessoas com deficiência. Queremos o respeito e igualdade em todos os campos. E é isso que a gente luta, para que todos sejam iguais e que todos tenham as mesmas oportunidades e possam exercer os seus trabalhos, as suas funções e o direito de ir e vir.