* Fernanda Silva Vicente
Sede. Sinto sede. O dia está quente, e há muito trabalho a fazer. De uma pilha enorme de processos, a fita verde. Fita de plástico verde, que indica o que já estou farta de saber. Réu preso. Outro boletim de ocorrência, vindo do presídio, e sinto náusea ao lê-lo – mas é preciso que eu faça. “… socou sua cabeça contra a grade, causando-lhe graves ferimentos na face.” Violência. Violência desmesurada entre aqueles que estão sob a tutela do Estado – que pune. E punindo, gera, indiretamente mais violência, mais crime, mais mortes.
Em tese eu deveria encarar a realidade plausível – no caso concreto, tal fato – com normalidade; mas uma estranha normalidade inquieta que me chacoalha os ossos e não parece cabível numa sociedade inteligente. Não consigo aceitar a violência como coisa normal. Deveras, não é minha função indicar meios alternativos de cumprimento de penas, ou discutir sobre grandes tratados de direito penal. Abstenho-me a proferir e explicar uma singela constatação: o sistema punitivo brasileiro é falho.
O nome da vítima não consta na pauta, o que significa que devo descer até à cela e conferir presencialmente se as partes ali se encontram. Desço para o subsolo, na escada fria e escura – diferente da fachada ostensiva e corredores brilhantes daquele respeitável órgão da justiça – pela qual somente passam os presos e os policiais que os acompanham. Confirmo, peço que me acompanhem. Deixo atrás a cela, com sua abertura na parede por onde sai água fria e a cavidade no chão que serve de “sanitário”. Começa a audiência.
O barulho das correntes me incomoda. Parecem apertadas. O metal frio das algemas em fricção me dispersa a atenção. Por alguns minutos, penso como grande parcela amedrontada da população, que se esquiva da responsabilidade social de que detém parte e julga prontamente “mas ele mereceu”, “fez alguma vítima aqui fora, tem de pagar”. Sim, penso assim por alguns instantes, mecanicamente, como me ensinam a pensar os telejornais e alguns especialistas no assunto. Contudo, tais pensamentos abruptamente fogem-me à mente no momento exato em que fito o rapaz que está algemado e trêmulo em minha frente. Não penso em mais nada quando olho os cortes profundos costurados em seu rosto. Não aparenta ter mais de 25 anos.
Começa a falar-me. Sinto o medo desenhado em seu rosto machucado. Diz que sofre ameaças constantemente, que precisa de ajuda. Diz ainda que é agredido todos os dias e, não raro, chega ao ponto de desmaiar. Estava preso provisoriamente, junto com centenas de outros, pelos mais diversos tipos penais, que aguardam o lento desenrolar do processo – e, enquanto isso, frise-se, não têm ninguém por eles. Estão lançados à própria “sorte?” e sob a tutela do Estado que, legalmente, “zelará por seus direitos individuais, previstos constitucionalmente”. Consto seus relatos na ata e não há muito que eu possa fazer no momento, remeto os autos ao Ministério Público para que proceda como convier.
Peço que entre o agressor. Tem duas vezes o tamanho da vítima, também é duas vezes maior sua ficha criminal e mostra-se destemido. É necessário um número maior de policiais para conduzi-lo, tamanha periculosidade. Hesito. Há tensão no ambiente. Pela primeira vez vejo a maldade personificada. A maldade e a violência têm cor, forma e nome. E usa um uniforme vermelho e surrado.
Não posso deixar de pensar na criança que um dia fora tal criminoso. Não posso esquivar o pensamento de sua infância empobrecida e renegada, relegada ao abandono. Do seio familiar turbulento e negligente no qual fora concebido. Não posso deixar de me importar com a causa que motivou seu primeiro crime, talvez banal, que, consequentemente, motivou o segundo, até transformá-lo num ser temível, que esconde sabe-se lá o quê dentro de seus olhos ditos cruéis. Não, não posso. A maldade e a violência sentam-se diante de mim. E jamais esquecerei o semblante imperscrutável daquele homem, tal como carapaça.
Ora, não possui a prisão a louvável função institucional de coibir a violência e ressocializar o agente? Estaríamos diante de uma (dis)função da prisão? Pois a violência e o crime reproduzem-se exponencialmente dentro e fora de presídios, e a construção de mais estabelecimentos prisionais não aumenta a segurança da população, que continua amedrontada e impotente, confiando na única arma violenta que o Estado apresenta como melhor forma de manter a segurança – a prisão.
É fácil conduzir a audiência. São explicações ensaiadas que repito todos os dias, sem me importar com o passado daquele preso, que também é um ser humano, e que por algum motivo tornou-se mau. Motivo esse que preferimos ignorar. Sabemos que é mau. Mas o que é a maldade? “O homem é o lobo do homem”? (Hobbes) Ou o homem nasce bom e a sociedade o corrompe? (Rousseau) Deixo a resposta a cargo do leitor, mas, diga-se de passagem, nem mesmo Jesus Cristo escapou da ira dos homens.
O agressor não aceita a transação penal. Diz, rudemente, que não há como pagar. Não tem ninguém com quem contar no mundo exterior, e não se importa em cumprir mais alguns meses na prisão. Também não quer assinar a ata de audiência. Peço que dois policiais assinem em seu lugar e os dispenso. Assim finda mais uma audiência, e os presos saem conduzidos.
Lembro-me da sede que me seca a garganta. Por alguns dias, não conseguirei dormir em paz. Nos telejornais, as notícias. Propagandas eleitorais que pregam promessas de “reforçar o poder policial” “revogação do estatuto do desarmamento” “trabalho forçado nos presídios”. Tudo o que uma população insegura e amedrontada, e apesar de tudo, pouco instruída, precisa e quer ouvir em momentos tão difíceis.
Deixo de lado as questões políticas, fico com o pensamento de Friedrich Nietzsche, que, em 1885, aconselhava: “meus amigos, desconfiai de todos aqueles que sentem forte desejo de castigar! […] desconfiai de todos aqueles que falam muito de sua justiça. Não vos esqueçais que, agora, para fariseus, só lhes falta poder.”
Desconfiai, meus amigos. E se este breve caso despertar o pensamento de eventual (e)leitor, terá valido o meu relato. Mas fiquemos por aqui com nossa crônica, que já se torna maçante ao desacostumado e desconhecido amigo.
* Autora convidada – Fernanda Silva Vicente, 19 anos, é ex-aluna da Escola Professor Jairo Grossi, co-autora do livro Metafísica Literária – publicado pela editora Funec, 2016