Ludimilla Fonseca é curadora independente no Rio de Janeiro. Em entrevista ao DIÁRIO ela fala sobre seu trabalho e a importância do fomento à produção artística
DA REDAÇÃO- Através da arte o ser humano expressa suas emoções, sua história e sua cultura. Essas manifestações ocorrem por todo o País e encantam inúmeras pessoas, gerando debates, inquietações, questionamentos sobre diversos temas. Caratinga sempre foi cenário para grandes artistas, alguns permaneceram por aqui, outros buscaram novos horizontes.
É o caso da caratinguense Ludimilla Fonseca, 30 anos, filha de Helena de Alvarenga Lopes e Maurício Fonseca. Os pais da jornalista e curadora independente residem em Caratinga. Já Ludimilla mora no Rio de Janeiro, onde tem um intenso trabalho ligado à Arte.
Ela já trabalhou projetos em instituições como o Centro Cultural São Paulo, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (Rio de Janeiro) e na Bienal Sul (Argentina). Atualmente, é curadora assistente da exposição “Vaivém” no Centro Cultural Banco do Brasil. A curadoria do projeto é de Raphael Fonseca e pensa as relações entre as redes de dormir e a brasilidade. A mostra segue em cartaz por São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte até maio de 2020.
Em entrevista ao DIÁRIO, Ludimilla fala sobre seu trabalho, avalia quais ainda são os gargalos para investimento na produção artística e ressalta do ensino da Arte.
Como você define a arte? Como a arte se relaciona com a sociedade?
Tentar definir o que é arte é uma tarefa ingrata. Inúmeros estudos se debruçam sobre a questão. Certamente, há consensos generalistas sobre o que pode ou não ser considerado arte, que são baseados em discursos legitimadores provenientes do mercado, das instituições e da academia. Porém, acredito que o mais importante é sermos capazes de lidarmos com uma pluralidade de conceitos e práticas. Para uma compreensão mais abrangente é preciso situar o termo historicamente e culturalmente. Por exemplo: até o século XVII, a arte se referia a qualquer habilidade, não se diferenciando do artesanato ou das ciências. A partir daí, quando considerações estéticas se tornam relevantes, as artes plásticas são diferenciadas. Já no século XX, a introdução da noção de arte contemporânea revê e questiona todos estes cânones. Além disso, culturalmente, os critérios também são amplos e ambíguos. Por exemplo: a sociedade ocidental cristã e capitalista está identificada com valores como beleza, gosto, utilidade, mercado e história, enquanto diferentes povos originários e sociedades orientais estão conectados a outros valores como ritualística, técnica, cura e tradição. Atualmente, todas essas matrizes estão diálogo e/ou conflito. Sendo assim, a história da arte, a antropologia, a sociologia, a filosofia e a estética são instrumentais que nos ajudam a pensar o campo da arte em toda a sua complexidade. Pessoalmente, me identifico com a proposição do crítico Mário Pedrosa: “arte é o exercício experimental da liberdade”. Mas não me permito cair na ingenuidade: mesmo nas expressões artísticas, não conseguimos exercer uma liberdade plena. Da minha parte, acredito que devemos trabalhar para que a arte seja cada vez mais abrangente e acessível. Repensar dívidas históricas, a posição das mulheres, a garantia de políticas públicas, valorizar a arte-educação e pensar em vias de reestruturar o mercado. Prefiro não cair na armadilha de uma definição, mas sem dúvidas, me interessa um conceito de arte que é menos branco, menos masculino/machista, menos europeu e menos óbvio.
Você trabalha com curadoria de exposições de arte. Fale um pouco sobre seu trabalho.
Entendendo a curadoria como o ponto de interseção entre artistas, suas obras, o contexto em que são produzidas e posteriormente expostas (o que engloba as instituições, o público, a imprensa e o mercado). A curadoria é, essencialmente, um trabalho de pesquisa. E cada vez mais, as pesquisas têm o objetivo de investigar a relação entre os processos de produção e exibição de arte, a fim de questionar os “modelos dominantes” e discutir possíveis novas abordagens. Curadores propõem sobretudo exposições, mas também organizam publicações, seminários e eventos. Existem curadores trabalhando em instituições, como museus e galerias, e outros trabalhando de modo independente. Em última instância, a curadoria vai pensar a disposição das obras de arte em um determinado espaço. As obras podem ser objetuais, performáticas, propositivas e os espaços podem privados, públicos, físicos ou digitais. O interesse do curador é que o conjunto de obras produza sentido visualmente e conceitualmente. E cada curador atua de maneira singular: alguns se especializam em determinados movimentos e períodos históricos, outros trabalham de modo transhistórico, há os que partem de perspectivas decoloniais, feministas, tradicionais… Enfim, sobre o meu trabalho especificamente, me interesso pela quebra das “grandes narrativas” e procuro por discursos polifônicos que ampliem nossas possibilidades de afronta às limitações impostas pelo cenário político-econômico e também pelo cenário sociocultural de espetacularização e padronização das exposições. Também é importante para mim, pensar a experiência corpórea que o público tem ao visitar uma exposição: mais que agradar aos olhos e fazer destacar as obras, penso ser importante criar ambientes imersivos, proporcionando uma experiência mais sensorial, sentimental, espontânea e menos intelectualizada, opressora e formalizada. Vivenciar uma exposição, para além de “entendê-la”.
Você está cursando o mestrado em História da Arte. Qual foi ou tem sido sua área de pesquisa?
Eu me formei em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente sou mestranda em História e Crítica da Arte na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antes de mais nada é fundamental lembrar que as intuições públicas de ensino superior no Brasil são responsáveis por praticamente a totalidade da pesquisa científica desenvolvida no nosso país e que elas têm atuado de maneira ostensiva para reduzir desigualdades por meio de políticas de inclusão. Portanto, é preciso lutar pela manutenção dessas instituições. Especificamente, a minha pesquisa investiga a hegemonia da visão sobre os demais órgãos de percepção. Somos uma sociedade obcecada pela imagem e essa primazia do audiovisual impacta o modo como nos relacionamos com o mundo e como produzimos história. Portanto, meu interesse está na produção de artistas que trabalham com as dimensões do olfato e do paladar, convidando o público a ter uma experiência diferente com as obras de arte, que não é pautada apenas na observação à distância, mas na experiência sensorial. Ao utilizar cheiros ou propor que experimentemos algo com a boca, o artista quebra expectativas. Historicamente, diante de manifestações culturais em geral, espera-se do público uma atitude contemplativa. No caso da televisão e internet, o envolvimento independe até mesmo da presença física do indivíduo num lugar e tempo determinados. No âmbito das exposições e dos museus, de modo geral, essa mesma ideia de contemplação se encontra estabelecida, fazendo com que o público assuma certo distanciamento e um comportamento normatizado diante das obras: “não toque”, “não corra”, “silêncio”. O atual regime estético continua a privilegiar a visualidade sobre outras experiências corporais, considerando o que é visto como a base do conhecimento e da própria realidade. No entanto, podemos invocar uma compreensão mais ampla dos sistemas de representação e atentar para as modalidades críticas e artísticas que podem ampliar a experiência visual.
Quais mudanças você identifica no cenário artístico do Brasil nos últimos anos?
Mudamos para pior. Resumiria em três instâncias principais: a falta de informação generalizada, a censura descarada e o corte indiscriminado de recursos. Nos últimos dois anos, especialmente, presenciamos vários casos de repressão explícita a manifestações artísticas. E atualmente, os produtores culturais têm trabalhado pisando em ovos. Retrocedemos no quesito liberdade de expressão. Em relação aos cortes de recursos (que sempre foram baixos), vimos várias instituições fecharem, outras se adequando para funcionar em menor escala, ficamos impotentes diante da destruição do Ministério da Cultura, a Ancine e outras agências estão sendo constantemente ameaçadas, muitos trabalhadores demitidos, muitos projetos cancelados, muita desinformação sobre, por exemplo, a Lei Rouanet e assim por diante. Não há políticas públicas para a cultura no Brasil. Vale ressaltar que “política pública” é diferente de leis de incentivo, de programas de edital, de ações pontuais. E são raríssimas as políticas que duram mais que a gestão que as criaram. Sendo assim, o Brasil caminha na contramão, porque é flagrante que a maioria dos países têm incentivado cada vez a cultura como fator decisivo para a qualidade vida e manutenção dos direitos fundamentais. Me parece que o desmonte está em pleno vapor, mas também sei que há resistência e que continuaremos produzindo.
Você saiu de Caratinga para o Rio de Janeiro. Como avalia a produção cultural comparando o interior e a capital?
A produção cultural é viva e pulsante em todos os lugares. Em cada canto do país existem artistas se virando e produzindo trabalhos maravilhosos. A diferença está na berrante desigualdade de oportunidades, que vai desde o acesso à educação e aos aparatos culturais, até a concentração de renda e monopólios do mercado de arte e cultura. Sendo o Brasil um país de dimensões continentais, considerar que nosso circuito artístico está basicamente restrito ao sudeste e, mais especificamente, ao eixo Rio – São Paulo (lembrando que o Rio de Janeiro está falido), é lamentável. A distribuição de recursos, obviamente, não faz jus à produção artística. É preciso urgentemente pulverizar e multiplicar ações culturais no chamado “interior” do país. E pensar holisticamente, incluindo educação, turismo e desenvolvimento urbano nessa mesma conta. Vale lembrar que nas capitais, a oferta de bens culturais e artísticos é obviamente maior, mas ainda assim é excludente: opera numa lógica centro/periferia, em que maior parte da população continua sem acesso a esses bens. Sendo assim, é fundamental que iniciativas locais, pequenas, incipientes, recebam algum tipo de apoio. O governo tem grande parcela, mas a sociedade civil também pode se organizar nesse sentido.
Qual a importância do ensino da Arte?
É absolutamente importante que crianças e adolescentes tenham contato com a arte. Primeiro, porque no processo de conhecimento da arte são envolvidos, além da inteligência e do raciocínio, o afetivo e o emocional, dimensões humanas fundamentais que estão sempre fora do currículo escolar. Além disso, grande parte da produção artística é feita no coletivo. Isso desenvolve o trabalho em grupo e a criatividade. Segundo Ana Mae Barbosa, uma das maiores especialistas em arte-educação do país, existe a arte como expressão e a arte como cultura. A arte como expressão é a capacidade de os indivíduos interpretarem suas ideias através das diferentes linguagens e formas. A arte como cultura trabalha o conhecimento da história, dos artistas que contribuem para a transformação da arte. É muito importante que o aluno tenha esse leque de conhecimento. Além disso, as artes alargam a possibilidade de trabalhar diferentes códigos culturais. A escola deve trabalhar com diversas matrizes, não só com o europeia e a norte-americana branca, mas com o indígena, o africano e o asiático. Ao tomar contato com essas diferenças, o aluno flexibiliza suas percepções e quebra preconceitos.