DA REDAÇÃO – O advogado e escritor americano Mike Godwin disse que “À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%”. Para ele, se alguém usou essa nefasta página da história ao fazer uma comparação, é sinal que os argumentos são flácidos e essa pessoa já perdeu o debate ideológico. Mas, diante de uma situação atual, fica difícil não se lembrar da frase atribuída a Joseph Goebbels, político alemão e ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945, que teria dito: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Passados mais de 70 anos, essa frase sintetiza o que hoje vivemos com o fenômeno das fake news. As notícias falsas sempre existiram, mas com o advento das redes sociais, ganharam maior intensidade e atingiram o alvo principal: os incautos usuários da internet.
Apenas um exemplo. Para temos noção da dimensão dessa situação, é o caso da morte da vereadora Marielle Franco, assassinada na semana passada, no Rio de Janeiro. O PSOL, partido que Marielle era filiada, disse que recebeu até domingo (18), cerca de 11 mil denúncias de postagens com informações falsas e difamatórias da parlamentar publicadas nas redes sociais. No Facebook, no Twitter e em áudios do WhatsApp, internautas têm divulgado informações de que a vereadora teria ligação com o tráfico e que sua morte estaria relacionada a um “acerto de contas”. Em um áudio, um homem não identificado afirma que ela só foi eleita por ter apoio de criminosos. Por outro lado, existem também aqueles que ‘decifraram’ o crime. Houve quem considerasse que a morte da vereadora seria uma prova de suas críticas à violência policial. No entanto, nenhuma das autoridades que investigam o crime se pronunciou. Enquanto isso, as redes sociais fervilham e as fake news tomam conta
Para entender esse quadro, o DIÁRIO entrevistou o jornalista, historiador e professor de Teoria de Comunicação, Sávio Tarso, inclusive ele já ministrou essa matéria em Caratinga, no final da década passada, quando a cidade ainda abrigava curso de Jornalismo. Sávio discorre didaticamente sobre o assunto. Fala da origem das fake news, de como combatê-las e sinaliza que o jornalismo sério nunca será afetado pelas notícias falsas.
Então, comemorando os 23 anos do DIÁRIO DE CARATINGA, uma aula com o professor Sávio Tarso.
As fake news são uma invenção das redes sociais?
Definitivamente, não. As fake news, as notícias falsas, decorrem de um processo de massificação do jornalismo. Tem a ver com início desse jornalismo de hoje, que é um jornalismo altamente padronizado e objetivo. Na virada do século XIX para o século XX, o jornalismo deixa de ter aquelas relações profundas com a Literatura e outras áreas, como Economia, para ser popular. Nos Estados Unidos foi lançado The Sun, que, comparando, valia um tostão. Esse jornal vai apresentar características diferentes, com notícias curtas, com pouca apuração, com escrita absolutamente simples e de fácil leitura. Notícias padronizadas. É esse jornalismo das notícias rápidas, objetivas e imediatistas que vai dar origem a um jornalismo que pode ser facilmente copiado e também facilmente falsificado. Aí vai surgir a famosa ‘imprensa marrom’, a imprensa sensacionalista, que vai criar mentiras usando esse padrão objetivo. Veja bem, é difícil você reproduzir algo sofisticado, é difícil copiar os grandes artistas, é difícil reproduzir uma tela do Leonardo da Vinci. Já algo que é simples facilita a reprodução. Evidentemente que as redes sociais por oferecerem essa agilidade, essa simplicidade, essa capacidade de viralizar essas notícias, ela toma à proporção que a gente nunca imaginou antes. As fake news são hoje um grande problemas porque são facilmente produzidas e assim viralizadas. Mas as fake news não são uma invenção de agora e sim uma invenção do início do grande jornalismo de massa, os jornais padronizados, estilo americano, do século XIX.
É possível combater as fake news de uma maneira mais efetiva ou trata-se de um fenômeno com o qual teremos de conviver de agora em diante, uma parte da formação e interpretação da “realidade”?
O processo de combate às fake news tem a ver com dois enfoques. Primeiro, a internet até agora é um território absolutamente livre, é um território onde os internautas agem com uma liberdade extraordinária. Nós sabemos que as pessoas de um determinado país estão subordinadas às leis, mas o que ocorre com a internet é que esses sites que proliferam as fake news estão sediados em outros países, onde há uma legislação frouxa em relação a esse controle. A maioria dos fake news é transmitida de um país para o outro. Haja vista o que ocorreu nas eleições americanas onde a Rússia foi a principal produtora de fake news para garantir as eleições do Donald Trump. Infelizmente ainda a internet é um território livre, um lugar onde esse tipo de comportamento vai existir em função da dificuldade desse controle global, ainda que exista no país uma legislação poderosa, forte; alguns países já estão começando a ter essa legislação. Para a internet o Brasil tenta criar o seu Marco Regulatório, mas ainda há uma facilidade de troca de informação e uma facilidade de produção e de acesso a essas fake news. O outro enfoque em relação ao combate tem a ver com a interpretação dos espectadores (internautas). A internet não completou 40 anos e ainda é uma novidade. Boa parte da população não tem acesso a ela, seja pelas condições socioeconômicas, seja por causa da censura, mesmo governamental, que é o caso da China. Mas o que ocorre é que temos um internauta que está se formando nas redes sociais. É um internauta que está se acostumando ainda; 30, 40 anos é muito pouco para você forjar uma mentalidade que seja forte no sentido de enfrentar essa indústria da fake news. De fato há toda uma expectativa dessa nova legislação e também em torno desse internauta que consiga com o tempo, de forma contundente, rechaçar esse tipo informação dentro da rede. Mas acho que essa educação, essa formação de internauta ainda vai demorar algum tempo e será, inclusive, na escola comum como parte do nosso currículo.
Vários levantamentos mostram que, em geral, os assuntos mais acessados e compartilhados nas redes sociais são fake news. O que explica esse comportamento?
A internet criou uma forma diferente de comunicação no mundo. Até a chegada da internet, as comunições eram de duas naturezas, face a face ou mediada, e essas relações mediadas tinham um produtor e um emissor. Agora nós temos com a internet uma nova configuração em que todos são produtores, existem os receptores, existem os grandes veículos de comunicação que estão loteando a internet, mas a internet conseguiu dar a cada pessoa o poder de produzir informação. E como bem alertou o Umberto Eco, a internet empoderou os imbecis, empoderou o discurso de ódio, as manifestações extremistas e radicais porque um internauta solitário em qualquer ponto remoto do mundo, ele pode causar realmente um processo de ebulição, pois ele cria uma fake news num momento onde há uma grande expectativa de receber informação sobre determinado assunto e aí vem logo em seguida uma avalanche de outras opiniões. Então esse empoderamento da recepção, que se torna produção, ou seja, esse emporamento do receptor que agora é mais um produtor é uma nova configuração das comunicações, onde todos podem ser receptores, é criado esse quadro que estamos vendo. É o que explica o novo modelo de comunicação em que todos podem ser transmissores. É a famosa aldeia global que o filósofo canadense Herbert Marshall McLuhan falava, onde todo mundo pode ser produtor e ter os seus quinze minutos de fama. É isso que tá produzindo esse caos informativo que vendo a partir da invenção e da consolidação da internet como um meio de comunicação de massa.
Um aspecto delicado do tema é que a repressão à produção de notícias pode, eventualmente, esbarrar na liberdade de expressão. Como conciliar isso?
Eu acredito que o jornalismo feito com responsabilidade, com civismo e com grande profissionalismo, nunca vai enfrentar a liberdade de expressão, a não ser que esse jornalismo seja barrado por um estado ditatorial, por um regime de exceção. O jornalismo com grande apuração, o jornalismo feito de acordo com uma perspectiva ética, o jornalismo feito por profissional preparado e que esteja disposto a ouvir os múltiplos lados de qualquer questão, esse jornalismo não vai ser reprimido. Mas, o jornalismo feito com todo o descuido e toda a pressa que exigem, por exemplo, os jornais sensacionalistas, corre o risco de sofrer com a legislação do Marco Regulatório da Internet que pretende acabar com as fake news. Eu acredito que a gente não pode confundir liberdade de expressão com opinião. O mundo da internet é o mundo de opiniões, um mundo de pura subjetividade; você não constrói nenhuma democratização da informação em cima apenas de opiniões. Até mesmo o chamado jornalismo opinativo tem que se basear numa apuração profunda dos fatos. Esse jornalismo que vai fazer opinião tem que ser autorizado por seus argumentos, tem que ser autorizado pela sua qualidade, pelo seu notório saber naquela determinada questão. Eu não posso confundir de forma alguma a opinião isolada de um internauta com liberdade de expressão, porque se essa opinião for carregada de racismo, de feminicídios, de expressões nazistas, de preconceito de toda ordem, essa opinião não pode sequer sair da cabeça dele e ganhar as redes, pois essa opinião vai ser criminosa. Não é uma questão de opinião, é questão de crime. O jornalismo bem feito, o jornalismo feito com profissionalismo, ele nunca, num estado democrático, nunca vai sofrer com a falta da liberdade de expressão.
Como as fake news podem influenciar no processo eleitoral brasileiro, no caso a eleição presidencial?
As últimas pesquisas apontam para uma influência de mais de 40% da internet no processo de convencimento nos eleitores aqui no Brasil. Nós assistimos as eleições americanas profundamente marcadas pela interferência da Rússia a favor do candidato Donald Trump. As fake news serão uma preocupação enorme da eleição presidencial brasileira. O ministro Luiz Fux disse, que enquanto presidente do Tribunal Superior Eleitoral, vai dar atenção especialíssima para o assunto e, evidentemente, nós acreditamos que a internet corrobora com a consolidação do processo democrático no Brasil e no mundo, pois facilita o acesso do cidadão aos candidatos. A internet tem o poder de facilitar o diálogo e o debate em torno das ideias. Nem sempre existem canais de televisão e de rádio dispostos ao quadro de ideias, as correlações de forças, as ideologias dos partidos políticos e de seus candidatos. A internet é sim um meio privilegiado para criar esse debate democrático. Infelizmente a internet não garantiu nas últimas eleições a elevação do debate democrático da sociedade brasileira. O discurso de ódio, a agressividade, a ofensas de candidato para candidato, de partido para partido, de grupos para grupos, têm sido dominantes nas eleições brasileiras, sobretudo, a última eleição presidencial. Esse acirramento, essa polarização que existe no Brasil e no mundo tem muito a ver com a participação das militâncias na internet, que tem distanciado as pessoas do debate eleitoral. Eu acredito e tenho a esperança que a internet venha a cumprir o seu papel de dar vazão a maioria das vozes e permitir que a democracia se estabeleça. A internet pode ser a nova Ágora, a promessa grega de ter todos serem ouvidos, mas por enquanto tem sido mais a selvageria, tem sido mais o estado natureza do qual falou Thomas Hobbes em ‘Leviatã’. Agora eu penso que com a regulamentação, nós vamos ter no futuro esse debate democrático sendo melhor direcionado na internet.
Uma mentira muitas vezes contada pode se tornar “verdade”?
Claro, uma mentira bem contada passa a ser verdade. E o pior que para você desfazer essa mentira quase nunca consegue reparar todos os danos que essa mentira provocou durante a sua exibição. A Rede Globo tem um caso muito clássico que é o da Escola Base, em São Paulo. A Rede Globo fez uma apuração malfeita nos casos da denúncia de maus-tratos e abuso sexual das crianças que estudavam nessa escola infantil. Isso arruinou profundamente com a reputação de professores, do dono da escola e da própria escola. Mais tarde ficou comprovado que era uma vingança de um pai, não tinha fundamento nenhuma acusação de abuso sexual e a escola foi falida, a reputação desses pedagogos jamais foi restabelecida e a retração da Rede Globo, pequena no Jornal Nacional, não foi o suficiente para realmente promover a justiça. A verdade é sempre com dialética na imprensa. A verdade depende de uma abordagem que favoreça e que o contraditório apareça e seja apreciado com a mesma exposição da proposição inicial. O problema da imprensa não é fazer denúncias, o problema da imprensa é quase sempre não admitir o contraditório. Esse contraditório, às vezes, é múltiplo e não tem a ver só com uma opinião em oposição, ele tem vários aspectos. Geralmente nos casos, principalmente, que envolvem esses assuntos polêmicos, o contraditório é muito contido e acuado pela opinião pública. A imprensa vive de vender jornais, de vender espaço, de vender espaços e a opinião pública é determinante para o tipo de enfoque, o ângulo das notícias. O jornalismo precisa pensar nisso, precisa, sobretudo, melhorar a sua perspectiva de apuração. A notícia rápida vai correr o risco de ser incompleta e sendo incompleta, pode ser imparcial, sendo imparcial pode ser uma grande mentira.
=================
O conceito de aldeia global foi desenvolvido por Hebert Marshall McLuhan na década de 60, como forma de explicar os efeitos da comunicação de massa sobre a sociedade contemporânea, no mundo todo. De acordo com sua teoria a abolição das distâncias e do tempo, bem como a velocidade cada vez maior que ocorreria no processo de comunicação em escala global, nos levaria a um processo de retribalização, onde barreiras culturais, étnicas, geográficas, entre outras, seriam relativizadas, nos levando a uma homogeneização sociocultural. Neste caso, imaginava ele, ações sociais e políticas, por exemplo, poderiam ter início simultaneamente e em escala global e as pessoas seriam guiadas por ideais comuns de uma “sociedade mundial”.
No estado de natureza, segundo Thomas Hobbes, os homens podem todas as coisas e, para tanto, utilizam-se de todos os meios para atingi-las. Conforme Hobbes, os homens são maus por natureza (o homem é o lobo do próprio homem), pois possuem um poder de violência ilimitado.
Um homem só se impõe a outro homem pela força; a posse de algum objeto não pode ser dividida ou compartilhada. Num primeiro momento, quando se dá a disputa, a competição e a obtenção de algum bem, a força é usada para conquistar. Não sendo suficiente, já que nada lhe garante assegurar o bom usufruto do bem, o conquistador utiliza-se da força para manter este bem (recorre à violência em prol da segurança desse bem).
2 Comentários
Cemario Campos
Uma maravilhosa entrevista com o conceituado professor Sávio Tarso. Com uma linguagem simples, didática e bem definida. Parabéns ao Diário de Caratinga e ao amigo Sávio.
Abraços!
Cemario Campos.
Marlon
Embora popular, é fake que Hobbes tenha dito homem é o lobo do homem!