Proposta emergencial para enfrentar a superlotação carcerária é defendida pela Defensoria Pública. Por outro lado, Ministério Público e Juízo de Execução Penal são contra
CARATINGA- O Judiciário de Caratinga tem se deparado com pedidos de antecipação de progressão de regime e, consequentemente, prisão domiciliar de sentenciados. A medida tem entendimentos diferentes e tem causado polêmica. De um lado, a Defensoria Pública, amparada na Portaria Conjunta Nº 834/PR/2019 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que sugere a possibilidade a implementação de politicas prisionais emergentes, tendo em vista a superlotação carcerária. Do outro, o Ministério Público e o próprio Juízo de Execução Penal da comarca que têm se manifestado contra.
A Portaria propõe conceder prisão domiciliar aos presos de regime semiaberto que estão a até seis meses de benefício de progressão de regime, do livramento condicional ou do fim da pena, permitindo que presos do regime fechado que estão a até seis meses da progressão de regime ocupem os espaços disponibilizados pelo semiaberto, mantendo os demais rigores do regime.
De acordo com dados do relatório de inspeção do Conselho Nacional de Justiça, referência junho de 2019, a partir de informações dos juízes de execução penal, o presídio de Caratinga contabiliza 492 detentos, sendo 16 mulheres e 476 homens, quando a capacidade projetada é de 214 presos. À data da inspeção eram 177 presos provisórios, 202 presos no regime fechado e 108 presos em regime semiaberto.
Com essa realidade de superlotação, a defensora pública Juliana Nunes tem defendido a antecipação de progressão de pena e argumenta sua opinião. “Não é um instituto específico, damos esse nome para facilitar, mas o preso que, por exemplo, vai progredir em julho, irá progredir um pouco antes. Vamos antecipar isso, o objetivo é equalizar o número de presos no sistema penal, pois isso vai gerar uma cascata, do semiaberto para o aberto, do fechado vai para semiaberto. Na comarca de Caratinga a população carcerária gira em torno de 500 presos no presídio, mas só temos 214 vagas, a taxa está muito alta. Ainda tem a Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) com 150 recuperandos, mas isso não se enquadraria lá, pois não tem superpopulação carcerária”.
O DIÁRIO teve acesso a uma manifestação contrária do Ministério Público a um caso de um detento da comarca que pleiteava essa progressão antecipada, em que o MP frisa que o presídio local possui cela destinada aos detentos do regime semiaberto, isolada dos presos provisórios e dos condenados que se encontram em regime mais rigoroso. O judiciário também se posicionou em sentença do mesmo caso enfatizando que em caso de superlotação do estabelecimento prisional, cabe ao Juízo da Execução Penal analisar as particularidades do caso e buscar alternativas para viabilizar a efetividade dos regimes e avaliar sua qualificação. Foram citadas oportunidades de trabalho, estudo e melhorias no sistema penal com destinação das prestações pecuniárias. E que o índice de ocupação da unidade é considerado um dos mais baixos do Estado.
A defensora Juliana discorda com as condições descritas. “Apesar de ficar em celas separadas, elas são uma ao lado da outra. Na verdade, o presídio de Caratinga é para presos de regime fechado, eles tentam fazer uma adaptação para incluir também os presos do regime semiaberto, têm até algumas atividades, mas que não conseguem abranger nem boa parte da população carcerária. São muito pouco os presos que trabalham e estudam. Não é um estabelecimento adequado para o cumprimento de pena, porque a superpopulação carcerária gera outros problemas, como falta de higiene, de vestuário, medicamentos; médico só temos duas vezes por semana e somente um profissional para toda essa quantidade de gente”.
Juliana ainda defende a proposta, explicando que abrangeria as pessoas que cometeram qualquer tipo de crime. “O que faz diferença mesmo não é o crime que a pessoa praticou, o importante é vermos o sistema penitenciário como um todo e, infelizmente, no nosso sistema penitenciário existe a falta de vagas, então temos que ver aquele preso no todo. Se ele está num local que não tem capacidade para ter aquele número de presos, está numa situação de ilegalidade, isso quem fala é a Constituição da República não é a Defensoria, o Ministério Público ou o Judiciário. A nossa Carta Magna é a Constituição da República, ela tem o princípio da legalidade, da humanização e temos que seguir”.
Ela exemplifica um caso para ilustrar seu raciocínio, de que o Brasil pode “sofrer punições”, inclusive de forma internacional. “No Rio de Janeiro teve um caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, que é do regime semiaberto, a corte interamericana já foi lá inclusive fazer vistoria, deu ordens para diminuir a população carcerária naquele lugar, o Estado do Rio de Janeiro continua inerte e isso certamente vai causar punição a título internacional ao Brasil. Novamente ficamos passando vergonha internacionalmente”.
E cita que a superpopulação carcerária é um problema que já aconteceu em vários outros países, que teriam adotado essa mesma forma de antecipação de pena, para resolver esse problema da equalização de vagas. “É uma medida transitória e emergencial, não objetivamos que ela fique para sempre, é só até esse ponto ser resolvido. O preso tem que estar sem cometer falta grave e perto de sair. Não é preso que acabou de chegar no sistema que vai sair. É justamente aquele que a gente fala que está com o pé na porta, já quase saindo, são os últimos, porque vai abrindo vaga para os que estão chegando”.
A implementação da proposta em Caratinga esbarra na supervisão dos beneficiados. A comarca não conta com tornozeleiras eletrônicas, no entanto, para a defensora pública Juliana, esse fator não é temerário. “Muitos lugares têm usado tornozeleira eletrônica, Caratinga ainda não conta com esses equipamentos, mas tem uma promessa de que isso vai chegar para nós”.
Conforme a defensora pública, outros presídios já trabalham com essa progressão antecipada, como Ribeirão das Neves, Santa Luzia, Igarapé e Governador Valadares. Na comarca de Caratinga, Juliana Nunes ainda não conseguiu os pedidos que pleiteou. “O Ministério Público da Comarca e o juiz da execução penal não estão de acordo com esse entendimento. Eles entendem de outra maneira, nós respeitamos e buscamos os meios legais para tentar reverter isso, que é o recurso (agravo em execução) e o habeas corpus, mas até hoje não tive sucesso em nenhum deles. Em que pese o próprio Tribunal de Justiça de Minas Gerais ter editado uma Portaria, determinando que os juízes apliquem a progressão antecipada, justamente uma medida emergencial, mas isso não vem acontecendo aqui na nossa comarca”.
Como o munícipio não dispõe de estabelecimento para regime aberto, presos iriam direto para a prisão domiciliar, o que Juliana Nunes também não vê como um dificultador. “A Polícia Militar e a Polícia Civil tem feito um trabalho muito interessante aqui na Comarca. Estão realmente fiscalizando os presos domiciliares, várias vezes participamos de audiências que o preso retornou para o presídio porque não estava na hora que devia estar em casa ou foi abordado na rua e voltam para o presídio”.
Segundo a lei de execução penal, existem hipóteses para a prisão domiciliar, dos quais muitos presos que seriam incluídos nesta proposta não fazem parte. “A prisão domiciliar que tem na lei de execução penal são aquelas que a pessoa é muito debilitada, tem uma doença muito grave ou é muito idoso. E não é o caso. O que a progressão antecipada trata mesmo é do excesso de massa carcerária, a falta de vagas no sistema, independentemente da condição física do preso”.
MP
Rafael Moreno Rodrigues Silva Machado, promotor de Justiça, também falou a reportagem sobre o assunto. “Primeiramente temos que contextualizar o que está acontecendo. Nós todos conhecemos o problema de superlotação carcerária, sabemos que é necessário um esforço dos órgãos da Justiça, tanto Ministério Público, quanto Poder Judiciário e Defensoria Pública, para sanar esse problema. Aqui em Caratinga, especificamente, quando assumi as funções, havia 600 presos no local cuja capacidade era de aproximadamente 200. Conseguimos em um ano reduzir isso para aproximadamente 500 presos”.
Conforme o promotor, este é um problema sistêmico, ou seja, de todo país e que tem impactado em Caratinga. “Nas comarcas contíguas, Timóteo, Coronel Fabriciano e Ipaba, houve interdições parciais dos presídios e eles tomaram as decisões que a meu ver não são corretas, que é o que eles chamam de preso da comarca; só vai vir para o meu presídio preso da comarca. Muitas vezes o gestor local, dizia que só aceitaria presos até um determinado patamar. A Secretaria de Estado de Defesa Social remaneja esses presos, que estavam vindo para cá”.
Em relação ao Estado, ele avalia que o problema da superlotação carcerária é do executivo. “O executivo tem obrigação de criar vagas suficientes para colocar a quantidade de presos que cometem crimes, cometem crimes de gravidade e precisam ser presos. A questão é qual a postura que temos que tomar: Vamos lavar as mãos e colocar todo mundo na rua ou tentar resolver? A postura do Ministério Público, não apenas minha, sempre foi de tentar negociar com o Poder Executivo para criar um Plano de Metas e aumentar o número de vagas. Essa é a postura correta, não é simplesmente lavar as mãos e dizer que vai soltar todo mundo”.
Apesar dessas tratativas, foi editada a Portaria, inclusive conjunta com a Corregedoria do Poder Judiciário, da qual o promotor discorda. “Dá uma tranquilidade para o juiz, caso ele não queira que o problema fique na comarca dele, para ele soltar todo mundo. Sendo bem prático, é para soltar todo mundo. Essa portaria, que na verdade, em minha opinião, é absolutamente inconstitucional, porque é uma Lei de Execuções Penais paralela, existe a lei que tem que ser cumprida e ela está descumprida sim em alguns pontos, em relação ao tratamento que tem que ser dado aos presos, como a questão da superlotação, mas os prazos de progressão estão previstos em lei. Uma portaria do Tribunal de Justiça não pode criar novos prazos de progressão e em muitos crimes o que está acontecendo aqui é um total esvaziamento do regime semiaberto”.
O promotor Rafael Moreno cita um caso em que para ele demonstra os impactos de uma medida como essa. “A título de elucidação, vou deixar bem claro um caso que fiquei sabendo que, por exemplo, no Estado do Rio Grande do Sul, o regime semiaberto não existe mais, a pessoa se comete um roubo de celular e é primária, ela pega aproximadamente cinco anos e 4 meses de pena, isso dá regime semiaberto. Os assaltantes chegam em audiência e falam: ‘Doutor, me dê minha pena aí’. Porque ele vai para casa e é isso que está acontecendo. Com essa Portaria, o artigo 7°, inciso II, permite que o regime semiaberto haja progressão até seis meses antes do prazo. As pessoas simplesmente não estão pagando o dever que elas têm com a sociedade”.
Ele afirma que o Estado está sendo omisso e o Ministério Público ainda tenta buscar formas de enfrentar a superlotação. “Houve inclusive uma audiência lá em Belo Horizonte, a qual eu compareci, todos os promotores de execução penal foram e o secretário de Estado de Defesa Social compareceu e disse: ‘Nós estamos em tratativa. Temos que resolver esse problema de forma sistêmica, não pontual’. Então temos duas posturas, tentamos resolver o problema de forma sistêmica, de uma vez por todas ou colocamos todo mundo que cometeu crime na rua. O Ministério Público se posiciona de forma contrária a essa Portaria e vai se posicionar sempre, pois representa os interesses da sociedade. E a sociedade não quer impunidade, muito pelo contrário”.
Segundo o promotor de justiça, o papel do MP é fazer cumprir a Lei de Execução Penal, que a pessoa cumpra a pena condizente com o crime que ela cometeu, tanto como em relação aos direitos do preso. “Tanto é que recentemente instaurei um procedimento aqui na Promotoria, para tentar melhorar as condições do presídio, pois só temos um médico. Soube que em 2009, havia uma equipe completa. Doutor Consuelo, que é o juiz titular da Vara de Execuções sabe muito bem, tentamos paulatinamente reduzir o número de presos, estamos em negociação com juízes também de outras comarcas, para tentar levar de volta os presos de suas comarcas, para tentar equacionar o problema. Só que muitas vezes os advogados e não sei se a postura institucional da Defensoria Pública, creio que sim, eles tentam conseguir um benefício imediato para o seu cliente e não resolver o problema da gestão carcerária, que é muito mais grave. Como se diz no popular, o buraco é mais embaixo. O presídio está superlotado, conseguimos reduzir 100 presos em um ano e vamos conseguir reduzir mais. A Apac tem sido ampliada, uma tentativa alternativa de cumprimento de pena para aqueles que têm bom comportamento, iniciativa que eu apoio. Nós temos soluções, mas elas não vão ser feitas com um passo de mágica, não há para problemas difíceis, soluções simples”.
Sobre a problemática da falta de tornozeleiras eletrônicas, o promotor ressalta que ainda não há previsão. “Em conversas informais ainda com o Doutor Consuelo, me disse que a Secretaria teria se comprometido a enviar tornozeleiras eletrônicas, que ainda não chegaram. Mas existem já tratativas para que sejam enviadas para a comarca”.