– Professor, qual o caso do próximo paciente? – Perguntei, curioso enquanto descíamos uma escadaria improvisada em um dos morros mais afastados do centro.
– Nós vamos visitar a dona Antônia*, uma mulher de 96 anos que está acamada há bastante tempo, ela não consegue se comunicar mais pois está muito fraca, mas é amada e muito bem cuidada pelas pessoas que estão com ela.
– Os filhos se revezam para cuidar dela?
– Dona Antônia não teve filhos. Seu falecido marido era tio avô da mulher que passa a maior parte do tempo com ela. Como as casas eram próximas, a sobrinha ajudou a cuidar do tio e, quando ele faleceu, decidiu fazer companhia também para a viúva.
Chegamos na casa. Chamamos e fomos atendidos por Beth*, uma mulher de meia idade muito simpática, dona de um olhar terno. Era manhã de quinta-feira, um dia cinza e frio. Aceitamos um cafezinho preparado por Beth que certamente estava aguardando a nossa visita.
– Beth, dona Antônia já é conhecida da nossa equipe. Você sabe que ela está em internação domiciliar e que faremos o possível para oferecer o conforto que ela provavelmente não teria se estivesse em um leito de hospital. – O médico fez uma pausa e Beth assentiu com a cabeça. – Hoje, quero conversar com você, direcionar o cuidado também a quem cuida. Para começar, quero saber o que te motiva a estar com a dona Antônia.
Beth olhou para a xícara de café na mesa, levantou a cabeça e disse com um sorriso leve no rosto:
– Amor. Nós não temos laços sanguíneos, eu cuido por amor. Ela perdeu seus familiares, não teve filhos e ficou viúva. Alguns anos atrás ela adoeceu, comecei a dar assistência na casa dela, pois morávamos perto. Depois eu a trouxe para a minha casa porque era mais prático e seguro. Dona Antônia se recuperou, logo percebi que ela gostava da minha companhia e de estar aqui, então eu a convidei para morar comigo e com meu marido.
Os olhos de Beth estavam cheios de lágrimas. Por um momento, pensei que ela desistiria de contar a sua história, mas ela continuou:
– A idade foi chegando, ela ficou cada vez mais fraca. Isso é normal, né? – Perguntou buscando o olhar do médico, que confirmou balançando a cabeça. – Um dia ela não conseguiu ir à igreja como tanto gostava, depois seus movimentos ficaram cada vez mais limitados, até que ela ficou acamada. Eu levei ao médico, fiz tudo o que pude, mas sei que não poderia impedir o passar dos anos. Ela tem 96 anos no documento, no entanto, provavelmente a data de registro não é a mesma do nascimento.
Os próximos minutos se passaram embalados pela história de dona Antônia. Beth disse saber que a partida de sua amiga estava próxima e que tudo estava acontecendo de uma forma confortável para elas, sem sofrimento.
– Quando a gente faz tudo o que pode, com amor no coração, doutor, não há razão para sentir medo ou arrependimento. Eu gostaria de ter muitos outros anos com ela, mas eu entendo e aceito o que vai acontecer – finalizou levando a mão direita ao rosto para secar uma lágrima que escapou ligeiramente.
Fomos ver dona Antônia. Ela estava sobre uma cama de solteiro que parecia ser confortável. Seus cabelos brancos e sua pele marcada pelo tempo provavam que naquele corpo morava uma pessoa centenária, digna de respeito e cuidado.
A paciente permaneceu de olhos fechados o tempo todo. Imóvel, como se estivesse em um sono pesado, daqueles em que conseguimos descansar de verdade. Ao exame físico, apresentava as condições esperadas. Tudo sob controle.
Enquanto o prontuário era preenchido, fomos surpreendidos pela visita de um jovem com um terço na mão. Ele pediu permissão para fazer algumas orações, disse que visitava dona Antônia porque enquanto pôde ela não mediu esforços para ir à igreja.
O rapaz rezou, disse algumas palavras sobre esperança e quando cantou uma música muito comum em cerimônias religiosas, vimos duas lágrimas trilharem a face de dona Antônia.
Ela não falava, sequer conseguia abrir os olhos. Mas estava ali, viva, sentia e se emocionava.
Dona Antônia partiu na madrugada daquele mesmo dia. Levou consigo o amor que recebeu de quem tanto cuidou dela e deixou a leveza de quem não tem pressa para ir embora.
Daniel Dornelas é estudante, escritor e produtor de conteúdo literário para a internet. Atualmente cursa o terceiro período de Medicina no Centro Universitário de Caratinga – UNEC. Saiba mais: @lendocomdaniel – catarse.me/lendocomdaniel
*Os nomes das personagens são fictícios para impossibilitar a identificação das pessoas que inspiraram essa crônica.