*Alim Rocha de Abreu
Todos os dias são propícios para reverenciarmos aqueles a quem amamos e que já partiram, mas permanecem jazendo em nós, transmudados, diferentes, encantados. Vivem nas nossas recordações como um sonho bom, inabalável, imortal. Encantaram-se, portanto, conforme romantizam os poetas. Recordá-los nos faz tatear o coração, sentir as nuances da saudade nas lacunas deixadas pelos afetos que fizeram de nós o que somos. Ao revolver suas imagens imunes ao tempo, trazemo-las imutáveis; as mesmas de antes da despedida: umas afáveis e acolhedoras, outras, mansas e silenciosas; algumas alegres, iluminadas e até eufóricas. Quando adentramos as nossas memórias, vasculhando lembranças, agimos como se pudéssemos controlar o tempo. E nesse momento permitimo-nos gargalhar sozinhos, marejar os olhos, embarcando na nau de sonhos já vividos.
Parafraseando Alcione Araújo, em seu texto Meus Mortos Jazem em Mim: Se gritasse, dilacerasse, lancinasse, não suportaria, nem teria como arrancá-la de dentro de mim. Muda e quieta saudade dos meus afetos é também saudade de mim. As imagens dos meus entes queridos não apenas me habitam, os meus afetos me constituem. Por essa razão não devemos temer as recordações que, vez ou outra, nos transportam para outro plano. Lembrar com saudade não significa sofrer. Muitas das vezes serve para acalantar o espírito, este sim intocável e imutável. O ato de homenagear a lembrança das pessoas que amamos representa o que queremos ser, do que fomos com eles, do que nos deram em vida, do que deles herdamos. Trazemo-los na memória para não nos esquecermos de que são pedaços de nós. Quando o esquecimento vence a memória, os afetos que partiram começam a morrer. Há povos que só os dão por mortos quando seus nomes não são mais citados. Há casos de quem não conseguiu mais se lembrar do rosto da mãe ou do pai. Inconformado com a ingratidão da memória, que os matou definitivamente, se desesperou e chorou o próprio abandono. A memória não lhe devolveu os pais.
Conforme nos apontou o poeta:… não choro meus afetos mortos porque existirá um reencontro. Choro o que deles morre em mim e o que de mim morre com eles. Cada partida apaga uma luz em mim. Aos poucos vou me apagando em vida. Por isso devo lembrá-los; ao fazê-lo ilumino lacunas e buracos de onde eles surgem como Lázaros redivivos. Sei que é obra da saudade, mas meu coração esburacado se sente consolado. Meus mortos jazem em mim, estão vivos e brincam no “playground” do meu coração, enquanto a memória vencer o esquecimento. Tudo o que resta deles está em mim. E invertem-se os papéis: sou o que fizeram de mim, agora eles são o que eu fizer deles.
Caminhando na direção da lembrança e da saudade daqueles que nos são caros, não estaremos transgredindo nem seremos, por conta desse mimo, piegas ou rotulados de saudosistas inveterados. Reverenciar a memória daqueles a quem amamos não constitui, portanto, uma transgressão. Permitamo-nos, então, curtir as nossas lembranças sem nos envergonharmos disso. Sigamos em frente vivendo a vida. Mas sem medo de recordar para vivificar. Ao fazê-lo nos damos asas para voar mais longe. Devemos tatear o coração e buscar nas lacunas deixadas pelos afetos aquilo que somos. Os nossos passos pisam as pegadas do bom exemplo que muitos deles nos deixaram como legado. Que herança maravilhosa! Revolvamos sempre a memória e com o amor e a saudade iluminemos o caminho, para ressuscitar o sentimento que não se apaga. O coração vai se sentir consolado.
*ALIM ROCHA DE ABREU é membro da AMLM. É formado em Matemática pela Faculdade de Filosofia e Letras de Caratinga. Membro das Lojas Maçônicas Fraternidade Acadêmica de Caratinga e Obreiros de Caratinga. Poeta, escritor, compositor, cantor e instrumentista. Funcionário da Cemig há 32 anos.