Ildecir A. Lessa
Advogado
Na ciranda de julgamentos na esfera penal, até 2016, qualquer pessoa que fosse condenada pela Justiça Criminal, tinha o direito de aguardar em liberdade até que todos os recursos possíveis estivessem esgotados. O julgamento final, a última sentença válida, é o que é chamado de “trânsito em julgado”. De esclarecer que, a Constituição é a lei que prevalece sobre todas as outras leis no país, e o STF é a instância que julga a constitucionalidade das decisões tomadas nos degraus inferiores.
A esta polêmica, a Constituição determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Vem ainda, o artigo 283 do Código de Processo Penal que afirma: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. No citado ano de 2016, o relator do Habeas Corpus nº 126.292 foi o ministro Teori Zavascki. Ele argumentou que se deve presumir a inocência do réu até a decisão em segunda instância. Depois disso, o princípio não vale mais, segundo ele, porque o STJ e o STF vão julgar só o mérito jurídico das sentenças, e não as sentenças em si. “A presunção da inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado”, alegou Zavascki em seu voto.
Naquela ocasião, o entendimento de que cabe prisão após a segunda instância prevaleceu por 7 votos a 4. Em outubro do mesmo ano, o STF voltou a analisar a questão, desta vez julgando em caráter liminar as ações do Partido Ecológico Nacional (PEN) e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que pediam que a decisão de fevereiro fosse revertida. Tratam-se das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44. Apesar de toda essa controvérsia, entre defensores e críticos, ninguém sabe quantos foram presos desde que o STF mudou regra em 2016 que levou Lula à cadeia. Diga-se que, a prisão após condenação em segunda instância entrou mesmo, de vez no debate nacional depois da detenção do ex-presidente Lula, em 8 de abril. A nova jurisprudência, adotada pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2016, também embarcou na lógica da polarização partidária que tomou conta do país.
Segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada recentemente, 57% dos brasileiros defendem a medida, enquanto que 36% são contrários. Seus defensores – dentre eles os integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato – afirmam que ela coíbe a impunidade, evitando que os criminosos do colarinho branco se escondam atrás de infindáveis recursos protelatórios às cortes superiores até que as penas prescrevam. Já os críticos da medida afirmam que ela apenas colabora para seguir inchando o superlotado sistema carcerário brasileiro ao prender mais pessoas pobres, além de negar ao réu o direito à plena defesa previsto na Constituição. Apesar de ser um dos temas mais comentados no meio jurídico, faltam dados que corroborem estes argumentos pró e contra a prisão após condenação em segunda instância. Se o debate sobre a constitucionalidade ou não da medida fica no plano teórico e está sujeita a diferentes interpretações da lei, seus impactos práticos são desconhecidos. Não se sabe quantas pessoas foram presas no país com base no novo entendimento do STF aprovado em 2016, nem por quais crimes. Não se sabe se são ricas, pobres, traficantes ou corruptos. O caso mais grave, situa-se nas chamadas prisões preventivas. Um exemplo nacional, observa-se pelo caso do ex-ministro do PT Antonio Palocci, preso em abril de 2016 pela Lava Jato e desde então detido preventivamente sem previsão de soltura, apesar ter r sido apenas condenado por Moro em primeira instância. Cerca de 40% dos pouco mais de 726.000 encarcerados brasileiros se encontram na situação do petista: são presos provisórios, sem condenação definitiva.
Enquanto isso, a polêmica da prisão em segunda instância contínua. Na visão da professora de Direito Penal Econômico da FGV Heloisa Estellita, o Supremo está fazendo uma interpretação inconstitucional do texto e usurpando uma prerrogativa do Congresso, que é eleito para nos representar e alterar as leis. “É muito grave. Se o Supremo, que deveria ser guardião da Constituição, descumpre uma norma constitucional, por que você ou eu vamos cumprir a lei? Transmite a mensagem da anarquia“. Já quem defende que o Supremo pode, sim, tomar essa decisão, como a coordenadora da Câmara Criminal do Ministério Público Federal, subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, argumenta que a análise do fato concreto e das provas é feita até a segunda instância apenas. Ela destaca que, de 1988, quando a Constituição foi promulgada, até 2009, o entendimento do STF era pela possibilidade de prisão após condenação em segundo grau. Apenas em 2009 isso foi alterado e, em 2016, voltou-se ao primeiro entendimento. “O que nós argumentamos é que, se houver um excesso, se houver um questionamento cabível, a defesa sempre vai ter a possibilidade de apresentar um pedido de habeas corpus para impedir a prisão“, explicou. Esse ponto fora da curva, ao que parece, vai longe.