Show do Mudhoney na Autêntica foi uma viagem grunge e uma reflexão proustiana
Por José Horta – Editor do Diário de Caratinga
“Eu topo!”. Foram essas palavras ditas por meu grande amigo Edmundo Neto quando lhe disse que o Mudhoney iria fazer show em Belo Horizonte. Essa conversa foi no início do ano. A notícia desse show mexeu com minha memória afetiva, pois, quantas e quantas noites passei assistindo o programa Lado B da MTV para ver clipes do Mudhoney, Soul Asylum, Replacements, Lemonheads, Bettie Serveert, Teenage Fanclub ou Ride. Enfim, chegou o dia: domingo, 23 de março de 2025. Para mim, esse show, na Autêntica, casa de shows muito bacana na capital mineira, foi uma viagem grunge e uma reflexão proustiana. Pretendo fazer essa explicação ao longo deste artigo. “Às vezes, nossa memória pode ser mais traiçoeira do que a própria realidade”, escreveu Marcel Proust, mas desta vez não foi.
Banda fundamental
Mudhoney é uma banda fundamental para a história do rock alternativo e do grunge, tendo sido um dos principais nomes da cena musical de Seattle nos anos 80 e 90. Para muitos, a banda embrionária de todo este movimento é a Green River, que teve Mark Arm e Steve Turner em suas formações. Green River também contou com Stone Gossard e Jeff Ament, que depois fundaram o Pearl Jam.
Grunge é um estilo musical e visual que se caracteriza por um som distorcido e letras sarcásticas. O termo grunge vem do inglês e significa “sujeira” ou “imundície”. Mas a melhor explicação para o que é grunge foi dada pelo jornalista André Barcinski, que tem um excelente site (andrebarcinski.com.br), além de vídeos sobre cultura pop no YouTube: “Grunge é como se Neil Young ou Creedence Clearwater Revival fossem punks”.
Formada em 1988, Mudhoney foi um dos primeiros grupos a assinar com a gravadora Sub Pop, o selo que se tornou sinônimo do grunge. Sua sonoridade é caracterizada por guitarras sujas e distorcidas, riffs pesados e uma energia crua que permeia suas músicas. Além disso, a banda também ajudou a estabelecer a estética e o espírito que se tornou essencial na cultura grunge. Sua estreia com “Superfuzz Bigmuff” (1989) estabeleceu uma sonoridade que se tornaria um marco do movimento. Mas, ao contrário de muitas bandas de sua época, o Mudhoney sempre manteve uma identidade própria, sem ceder totalmente à pressão comercial ou às expectativas de popularidade que invadiram a cena grunge na década de 1990.
Sua relevância vai além do sucesso comercial, pois a banda desempenhou um papel crucial na formação do som e da atitude do grunge, influenciando não apenas outras bandas do movimento, mas também artistas de diferentes gêneros. Conforme as palavras do jornalista Álvaro Pereira Júnior, quando ele fez a crítica do álbum “Piece of Cake” (1992) para a finada revista Bizz, edição 90 de janeiro de 1993 (Detalhe: o valor da revista era de Cr$ 49.000,00): “As bandas de Seattle têm atitude. Nirvana quer destruir o mundo. O Soundgarden quer reconstruir o mundo. O Mudhoney está pouco se fod…”. Ouso complementar a frase de Álvaro e acrescento: “Já o Pearl Jam quer salvar o mundo e postura do Eddie Vedder, por vezes messiânica, me irrita”.
Interessante que passados 15 anos, no Globo.com, Mark Arm concedeu entrevista onde corroborou as palavras de Álvaro: “O segredo é que a gente não estar nem aí”. E ‘estar nem aí’ parece ser a chave da longevidade do Mudhoney, pois apenas o baixista Matt Lukin deixou a banda, sendo substituído pelo enfermeiro Guy Maddison. No mais, Mark Arm (vocal e guitarra), Steve Turner (guitarra) e Dan Peters (bateria) seguem muito bem, obrigado.
O grunge é movimento marcado pela tragédia. A memória é central na obra “Em busca do tempo perdido” de Marcel Proust, e uma de suas frases, “Aquele que vive é aquele que se lembra”, nos mostra como como a vida é, de certa forma, uma coleção de lembranças. Então, como não se lembrar daqueles do movimento que já se foram e de forma trágica e autodestrutiva: Andrew Wood – Mother Love Bone (1990) – overdose; Kurt Cobain – Nirvana (1994) – suicídio, Kristen Pfaff – Hole (1994) – overdose; Layne Staley – Alice In Chains (2002) – overdose; Scott Weiland – Stone Temple Pilots (2015) – overdose; e Chris Cornell – Soundgarden (2017) – suicídio.
A improvável ligação entre Mudhoney e Proust
- (Montagem feitas através das imagens: Mudhoney/divulgação – Marcel Proust -BBC Londres)
No filme “Mentes Perigosas” (1995), dirigido por John N. Smith, a atriz Michelle Pfeiffer interpreta a professora LouAnne Johnson. Numa de suas tarefas passadas aos alunos, ela pede que comparem uma letra de Bob Dylan com algum poema de Dylan Thomas. Também tenho mania de fazer este tipo de comparação. Por exemplo, em “If I Think”, a música que abriu o show, Mark Arm canta: “Eu esqueci como respirar/ Eu esqueci justamente o que eu preciso/ Vi o mundo se render diante de mim/ Eu vi tudo tão pequeno/ Se eu pensar, Eu penso em você”. Esses versos expressam uma sensação de desconexão e perda da própria essência, como se a pessoa tivesse perdido sua capacidade de viver plenamente e, por isso, não soubesse mais o que precisa para se sentir bem ou se reconectar com si mesma. Temos a impressão de que o mundo, ao se submeter ou “render-se”, torna-se insignificante, visto de uma perspectiva introspectiva. Isso pode simbolizar a perda de significado ou a mudança de percepção do indivíduo sobre o mundo ao seu redor. Tem ainda um tipo de fixação mental ou de reflexão contínua sobre uma pessoa, uma constante presença no pensamento, sugerindo que os sentimentos por ela dominam a mente da pessoa.
Já em “Good Enough”, a letra fala: “Bem que eu cometi erros que eu tenho certeza que vou cometer novamente/ Acho que eu gostava bastante da primeira vez/ Não há como combatê-los/ É inútil negar a forma como isso cresce”. Aqui, o eu lírico reflete sobre falhas passadas e a certeza de que as cometerá de novo, uma sensação de inevitabilidade e impotência diante da repetição de erros. Outro verso sugere uma nostalgia do passado, um desejo de reviver momentos de prazer ou felicidade, que parecem mais intensos ou puros na memória. Por fim, surge uma expressão de uma sensação de impotência diante de algo que cresce ou se desenvolve de forma inevitável, como um problema, um sentimento ou uma emoção que não pode ser facilmente controlado ou negado.
Agora vamos para duas frases do livro de Proust: “O verdadeiro paraíso é o paraíso perdido” e “O que chamamos de verdadeiro é apenas o que resta após a ilusão do instante”. O escritor reflete sobre a perda do que já foi, criando uma ideia de que o que realmente é valioso só é compreendido quando se perde. Essa ideia se conecta com a melancolia dos versos de ambas as músicas, especialmente em “Good Enough”, onde há uma reflexão sobre os erros passados e uma sensação de arrependimento que já está inserida no tempo perdido.
Proust propõe que as verdades da vida são mais evidentes depois que as ilusões desaparecem, em um processo de amadurecimento e reflexão. Isso ressoa com o tema da introspecção presente em “If I Think”, onde o eu lírico parece se distanciar da realidade e, ao se perder nela, reflete sobre o que ficou para trás.
Essa é minha explicação para a improvável ligação entre Mudhoney e Proust. Não sei se fui entendido.
O show
O show da lendária banda de Seattle não é apenas mais uma apresentação, mas uma oportunidade rara de reviver a energia crua e a rebeldia sonora que definiram uma geração. O Mudhoney, embora muitas vezes ofuscado pela sombra de Nirvana e Pearl Jam, sempre foi uma das bandas mais autênticas do movimento grunge. E, para quem esteve presente, o concerto não foi muito mais que uma simples performance musical – foi uma imersão em um universo de sons e emoções que, como nos ensina o escritor Marcel Proust, nos leva a uma viagem ao passado.
Assistir ao show do Mudhoney é como ler “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Se o autor francês fala da memória e da busca pela essência do passado, as músicas da banda nos transportam para um tempo que talvez não tenha sido o nosso, mas que se torna íntimo e quase tangível através dos riffs de guitarra e da voz rouca de Mark Arm. É como se, ao ouvir um solo de guitarra ou uma letra carregada de saudade e intensidade, pudéssemos reviver aqueles dias dourados do grunge, como Proust ao mergulhar nas recordações da sua madeleine. A lembrança não é exata, mas ela é profunda, emocional, e nos toca de uma maneira inexplicável.
Pontualmente, às 20h, o Mudhoney subiu ao palco da Autêntica, trazendo consigo uma energia vibrante e fiel ao seu legado. A primeira música a tomar conta da Autêntica foi “If I Think”, um som que imediatamente capturou o espírito do grunge: simples, mas cheio de intensidade. O público, já aquecido, viu a banda seguir com “Into the Drink”, “Almost Everything”, e, logo após, “Good Enough”. Cada canção, um lembrete do porquê o Mudhoney sempre foi a banda que se manteve firme na autenticidade, sem ceder ao mainstream.
Mas, ao longo do show, o que se destacava era a conexão visceral entre a banda e o público. As músicas não eram apenas executadas; elas ganhavam vida própria, se transformando no que podemos chamar de experiência compartilhada. Quando o riff de “Touch Me, I’m Sick” começou a ecoar pela casa, o clima atingiu o auge. O público não apenas cantava, mas se entregava àquela confusão de sons que sintetizava uma era de incertezas e rebeldias.
E então, o ponto culminante da noite: “Suck You Dry”. A música foi recebida como uma explosão de pura energia. É impossível não compará-la a uma onda que, depois de acumular força, finalmente quebra. Em “Suck You Dry”, o Mudhoney não só fez justiça à sua história, mas também reafirmou seu espaço no coração dos fãs, sendo uma das poucas bandas do movimento que ainda consegue transmitir a mesma emoção de seus áureos dias.
A experiência de ouvir essas canções ao vivo criou uma sensação única, quase como se o tempo se esticasse e se transformasse, como nas palavras de Proust, em algo vivo e tangível. O domingo na Autêntica foi uma verdadeira celebração da música que transcende o tempo e o espaço, e que mantém a chama do grunge acesa em um cenário contemporâneo. “Quando se está em pleno vigor da juventude, a alegria não é uma sensação que se procura, é uma sensação que se encontra”, escreveu Proust. Não estou mais no vigor da minha juventude, quando conheci o som do Mudhoney tinha 20 e poucos anos; mas agora, 50 e tantos anos, digo que encontrei a sensação de alegria num dos shows mais bacanas que pude assistir. Sim, a felicidade pode surgir sem esforço, simplesmente por estar vivo e presente no momento.
Como já citei no artigo, “o verdadeiro paraíso é o paraíso perdido”. E ali, naquele palco, com o Mudhoney, a memória do grunge não era perdida; estava mais viva do que nunca.
- *Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DE CARATINGA