Eugênio Maria Gomes
A frase que serve de título ao presente, foi dita por Sócrates, o enigmático filósofo ateniense, reconhecido como o fundador da filosofia ocidental. Como não deixou seus ensinamentos escritos, foi através de Platão e de Xenofontes, seus discípulos, que conhecemos sua genialidade. A ele devemos o “método socrático” que é uma técnica de investigação filosófica feita em diálogos, na qual o professor conduz o aluno a um processo de reflexão e descoberta dos próprios valores.
Para Sócrates, o reconhecimento da própria ignorância era parte essencial para se chegar à apreensão da Ideia e à construção dos Conceitos. Era necessário mostrar a seus interlocutores o quanto estavam errados em seus “pré-conceitos” e “pré-juízos”. Através de perguntas, Sócrates conduzia o diálogo até o ponto em que o outro ficava embaraçado por ver seus conceitos serem derrubados um a um. A segunda etapa do método de Sócrates, consiste na construção de conceitos novos, a partir das cinzas dos antigos que foram destruídos. É a denominada maiêutica.
Semana passada fomos testemunhas do prejuízo que uma mentira, pretensamente inofensiva e pueril, mas na verdade, carregada de “pré-conceitos” e de uma imensa dose de arrogância e de irresponsabilidade, pode provocar a uma pessoa, a uma cidade ou a uma nação. Um prato cheio para uma análise socrática…
Todos nós acompanhamos o caso envolvendo os nadadores americanos, que encabeçados por Ryan Lochte, o famoso e inconsequente “playboy” americano, denunciaram terem sofrido um assalto no Rio de Janeiro, e que, a partir daí, desencadearam uma sucessão de eventos, a ponto de quase suscitar um embaraço diplomático entre o Brasil e os Estados Unidos, tendo em vista a ameaça de prisão, a retenção dos passaportes de dois deles e mais uma boa dose de “pré-conceitos” de parte da mídia Yankee.
Ryan Lochte é um personagem patético, conhecidíssimo da mídia americana, ora pela sua pouca inteligência, ora pela bizarrice de suas aparições e pronunciamentos. No entanto, o nadador possui qualidades “invejáveis”: é rico, é branco, é famoso, é atleta medalhista e é… Norte-americano! Pronto. Estão aí, juntos, todos os elementos que a mídia sensacionalista do primeiro mundo precisava para, mais uma vez, denegrir a imagem de uma cidade e de um país, que ousaram sediar uma Olimpíada. De uma só vez, todos os estereótipos e preconceitos sobre os brasileiros e sobre o Rio afloraram nas primeiras páginas das “capitais” do mundo.
É de conhecimento geral que o COI – Comitê Olímpico Internacional, é um dos clubes mais fechados e aristocráticos do mundo. Dele fazem parte príncipes e barões, a grande maioria europeus que sempre se comportaram de forma pedante, tanto que, a exceção da cidade do México, em 1968, nunca se realizou uma Olimpíada em um país em desenvolvimento. O caso de Pequim, em 2008, não foge tanto a exceção, já que, embora ainda em desenvolvimento, a China já é considerada uma super potência. Cederam à sua tradição elitista, escolhendo o Rio, diante da crise europeia que impedia que aqueles países arcassem com os elevados custos de realização da uma Olimpíada.
A escolha do Rio não significou uma mudança de comportamento por parte do COI. Eles, apenas, cederam à força do dinheiro, pois à época da escolha, o Brasil tinha o que outros países não tinham: recursos financeiros para arcar com todas as extravagâncias de uma competição que insiste em fazer exigências desnecessárias e excessivas.
Ainda assim, desde a escolha do Rio de Janeiro, até as vésperas do início dos jogos, as previsões sobre o Evento eram calamitosas. Vários atletas se recusaram a participar, alegando desde o perigo das ruas, até o temor de viroses letais. A Olimpíada seria um fiasco, com corpos flutuando na Baía de Guanabara, e tiros varando os estádios. Quase a totalidade das redes de televisão da Europa e dos Estados Unidos fez reportagens sobre as mazelas cariocas. As favelas foram reviradas, os biquínis foram ridicularizados, até a comida carioca foi taxada de “insípida” e “sem graça”. Ninguém se lembrou de elogiar ou se quer reconhecer os inúmeros sacrifícios que a cidade e seus habitantes fizeram para receber os jogos.
No entanto, o que de fato ocorreu, após o início dos jogos, é que nenhum incidente de elevada gravidade ocorreu. O Rio de Janeiro é uma cidade violenta, com elevadíssimos índices de criminalidade, não obstante existirem outras 22 capitais brasileiras mais violentas que ela. O Brasil, ainda é um país socialmente desigual, e o Rio de Janeiro espelha, claramente, todas as contradições da nossa sociedade. Tudo isso é verdade e nunca foi ocultado. No entanto, a cidade fez um esforço enorme, em um momento economicamente delicado, para preparar-se e receber adequadamente os atletas e os visitantes, e o fez de forma apropriada. Os problemas que ocorreram podem ser considerados normais, para uma cidade que recebe, em duas semanas, mais de 500 mil pessoas de uma só vez. Não houve ataques terroristas, nem epidemia de zica, nem estupros coletivos, nem cobras passeando na Avenida Atlântica…
Portanto, precisavam de algo mais sério do que as reclamações sobre o encanamento dos apartamentos destinados aos australianos, as filas do Metrô, ou as vaias sofridas pelo atleta francês.
Assim, o caso dos nadadores assaltados, com armas na cabeça, seria a prova da brutalidade e da violência que assola a cidade maravilhosa.
Descoberta a mentira, o que de fato ocorreu com os nadadores foi a prova da maneira como muitos estrangeiros, devidamente mal informados pela mídia dominante, veem nosso país. Um lugar onde se pode transitar embriagado, depredar estabelecimentos, urinar em paredes, acusar a polícia de corrupta e sair impune.
Não. Não se tratou apenas de uma mentira inconsequente de um grupo de adolescentes para escapar de uma briga com as namoradas. Os nadadores não são tão inconsequentes, nem tão adolescentes. Trata-se do retrato fiel do preconceito e da arrogância, de falsas premissas, de “pré-juízos”, que Sócrates teria muita facilidade em derrubar.
O que aconteceria se um atleta brasileiro, negro, entrasse em um posto de gasolina, bêbado, depredasse o banheiro, urinasse em público e fizesse uma falsa acusação à polícia em uma cidade norte-americana? Com certeza, o desfecho não seria o mesmo…
Ryan Lochte, de fato, não é digno de crédito nem quando fala a verdade, o que se dirá quando fala mentiras. Neste episódio, ele encarnou o que de pior há no povo americano: a arrogância, a soberba a ignorância. Seus próprios conterrâneos reconhecem isso. No entanto, o caso foi utilizado como pano de fundo para espalhar aos quatro cantos do mundo, os perigos da Cidade do Rio. Várias delegações proibiram seus atletas de saírem à noite. Se o fizessem, assumiriam integralmente todos os riscos…
Uma parte dos preconceitos e falsos juízos de que padecem o Brasil e outros países periféricos é propositalmente implantado como forma de manter a subserviência desses povos a interesses políticos e econômicos dominantes. Trata-se de uma forma de expressão e sedimentação de Poder, que denegrindo a identidade nacional, impõe uma sutil dominação, alcançada pela constante sensação de inferioridade frente aos valores e comportamentos dos povos ditos “civilizados”.
Esquecem os povos dominantes, que “nossos pecados não são maiores ou menores do que os deles, apenas são diferentes”.
Outra parte desses falsos juízos provém de nós mesmos, os brasileiros, que não reconhecemos nossos valores e que, voluntariamente, nos colocamos em uma posição de submissão e de subserviência. Vimos isso nas declarações do diretor de comunicações do Comitê Olímpico Rio-2016, que não se arrependeu do pedido de desculpas que prematuramente havia feito aos americanos, quando do pretenso assalto, nem exigiu um formal pedido de desculpas.
Patético.
Socraticamente, gostaria de perguntar ao Diretor do Comitê Olímpico se fossem atletas nigerianos, bolivianos, angolanos ou paraguaios que tivessem o mesmo comportamento, se seu discurso seria o mesmo. Aliás, há dois atletas africanos presos até hoje por assediar camareiras na Vila Olímpica. Nem se falam deles…
A mentira dos americanos, como toda a mentira, foi facilmente descoberta. A falta de caráter de Ryan Lochte também foi escancarada. Ambas, como disse Sócrates, não tiveram tempo de envelhecer…
Mais difícil será recompor a imagem da cidade, do país e de seu povo. Essa vai demorar um pouco mais. Para começar, no entanto, nós podemos, reconhecendo nossas dificuldades e nossos problemas, começar a valorizar o que temos de bom, e com uma humildade altiva, arregaçarmos as mangas e fazermos deste país, o Brasil que todos merecemos. Temos que construir um novo país, a partir das cinzas daquilo que um dia fomos…
E mais uma vez, recorrendo a Sócrates, nunca podemos esquecer que “A maneira de se conseguir boa reputação reside no esforço em se ser aquilo que se deseja parecer”.
Eugênio Maria Gomes é professor e pró-reitor de Administração da Unec. É membro da ACL – Academia Caratinguense de Letras e da ALTO – Academia de Letras de Teófilo Otoni. É Grande Secretário de Educação e Cultura do GOB-MG, membro da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga, do Lions Itaúna e do MAC – Movimento Amigos de Caratinga.