*Ildecir A. Lessa
Advogado
O processo do impeachment, típico do direito ocidental, tem suas origens na Inglaterra medieval, sendo posteriormente recepcionado nos Estados Unidos, onde ficou estabelecido a possibilidade de impeachment de um presidente, vice-presidente ou qualquer ocupante de cargo público civil, desde a adoção em 1789, da Constituição dos Estados Unidos. O processo, originado das leis coloniais inglesas, pode ser iniciado nos casos considerados de “traição, suborno, altos delitos ou faltas”. A amplitude desse conceito propicia desde então um intenso debate interpretativo entre políticos e juristas. A punição de um impeachment é a destituição do cargo sem possibilidade de apelação. Anotou, a propósito, sobre isso, o jurista, Paulo Brossard em sua obra “O Impeachment” (1965) que: “Na Inglaterra o impeachment atinge a um tempo a autoridade e castiga o homem, enquanto, nos Estados Unidos, fere apenas a autoridade, despojando-a do cargo, e deixa imune o homem, sujeito, como qualquer, e quando for o caso, à ação da justiça”. (BROSSARD, 1965, p. 21).
Houve apenas dois impeachments de presidentes na história dos Estados Unidos, ambos do Partido Democrata: Andrew Johnson em 1868 e Bill Clinton em 1998. Ambos os processos foram aprovados pela Câmara dos Representantes, mas rejeitados pelo Senado. O processo de Johnson, em duas votações em maio de 1868, o Senado ficou a apenas um voto dos necessários para destituir o presidente. Em 1974, o Congresso iniciava os preparativos para um impeachment do presidente Richard Nixon quando o republicano renunciou por causa do escândalo de Watergate. O impeachment de Clinton começou a partir da investigação de um promotor sobre uma operação imobiliária do casal Clinton e derivou para uma análise do comportamento sexual do presidente em meio a uma novela de revelações. O processo de impeachment acusou Clinton de perjúrio e obstrução da Justiça para esconder sua aventura sexual com a estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky, em 1997. O elemento fundamental foi esclarecer se Clinton mentiu sob juramento quando negou ter mantido uma relação sexual com Lewinsky. Em dezembro de 1998, a Câmara dos Representantes aprovou a destituição do presidente, mas esta foi rejeitada em fevereiro de 1999 pelo Senado.
O impeachment como arma política reaparece de vez em quando nos EUA. Em 2013 e 2014, alguns políticos republicanos falaram – sem nunca ter se concretizado– da possibilidade de tentar destituir Barack Obama por causa da gestão do atentado ao consulado da cidade líbia de Benghazi ou da política de imigração do presidente. A imprecisão da lei propicia seu abuso. Em 1970, em uma tentativa fracassada de destituir um juiz do Tribunal Supremo, o congressista Gerald Ford, que mais tarde sucedeu Nixon como presidente, disse: “Um crime de impeachment é algo que a maioria da Câmara dos Representantes deve considerar em um momento da história”.
Aqui no nosso Brasil, o processo de impeachment que levou à renúncia de Fernando Collor de Mello em dezembro de 1992 parecia único. A cada pedido de impeachment engavetado durante as presidências de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva reforçava-se a impressão de que a política brasileira pós-ditadura havia se afastado de maiores sobressaltos e deixado sem uso o instrumento mais radical de sua Constituição. Vinte e quatro anos depois, contudo, o caldeirão formado por erros políticos, crise econômica e um implacável presidente da Câmara dos Deputados que busca sobreviver a um escândalo de corrupção que ameaça tragar boa parte do sistema político chega ao ponto de ebulição nesta sexta-feira, onde começa oficialmente o processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, que culmina com a votação aberta dos 513 deputados da Câmara neste domingo, quando Dilma enfrentará seu período mais intenso de agonia desde que chegou à presidência como herdeira do legado de Lula. Parte do país partilha o incômodo por ver uma presidenta eleita há pouco mais de dois anos caminhar para a perda de seu mandato. Do outro lado, uma maioria — 60% a julgar pelas pesquisas do instituto Datafolha — apoia o processo contra o Governo. A divisão, ao contrário do quase consenso catártico da jovem democracia que ejetou Collor, produz o clima predominante de incerteza em relação ao dia seguinte qualquer que seja o desfecho do processo. Na disputa pelo poder, Dilma Rousseff e o candidato derrotado por ela no segundo turno de 2014, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), ganharam a companhia do habilidoso Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), surgiu na sequência do rompimento de Cunha com o Governo, como escudo protetor de Dilma no Senado. Mas as peças do jogo mudavam praticamente a cada semana, sempre que a Operação Lava Jato virava o tabuleiro. Acossada pelas investigações de corrupção na Petrobras, que envolveram desde os maiores empreiteiros com obras estatais até membros de seu partido e de sua base apoio, Dilma não soube lidar com aliados instáveis e indóceis, que começaram a se rebelar ainda em seu primeiro mandato. Em fevereiro de 2015, um mês após a sua posse, enveredou por uma estratégia de tentar enfraquecer o maior aliado, o PMDB, de quem se via refém. Perdeu e criou seu maior inimigo, com a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara naquele mês. De ali então, seu Governo ficaria contra as cordas na Casa. Cunha, com apoio tácito de uma oposição disposta a encurtar um mandato em crise, acenaria por meses com a possibilidade de abertura de um processo de destituição – é o presidente da Câmara que tem o poder de aceitar ou não um pedido. Depois que a Operação Lava Jato demonstrou que o peemedebista mantinha milhões não declarados na Suíça, Cunha passou a ser alvo de processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara. Já vivia uma guerra aberta com o Planalto, derrubando projetos de interesse do Governo, e no mesmo dia em que os petistas decidiram que votariam por sua perda de mandato, ele deflagrou, em 2 de dezembro, a guerra do impeachment. Foi a coroação de um ano turbulento em que Dilma foi acusada de não entregar o que prometeu em sua enfática campanha anti-austeridade, num “estelionato eleitoral” simbolizado pela escolha do banqueiro Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. A presidenta se desgastou perante o eleitor brasileiro com as medidas de cortes de gastos (incluindo o congelamento do reajuste do maior programa social, o Bolsa Família) em meio aos aumentos da inflação e do desemprego e maior recessão em décadas. Tudo, acusam seus opositores, era fruto de escolhas econômicas erradas e manobras fiscais para maquiar o rombo nos cofres estatais, além das consequências do fim da bonança internacional. O descontrole das contas, simbolizado pelas “pedaladas fiscais”, acabaria se tornando o motivo oficial de sua possível derrocada. Sem implicação contundente, pelo menos até agora, no escândalo da Lava Jato, Dilma viu seis decretos para aumentar gastos públicos e uma “pedalada fiscal” que obrigou um banco público a cobrir um programa de financiamento agrícola serem o embasamento jurídico do impeachment. O motivo era bem mais complexo de entender, diga-se, do que as acusações de corrupção passiva e formação de quadrilha que pesavam contra Collor. Mais: seus pecados parecem proporcionalmente pequenos diante de um Congresso coalhado de investigados por corrupção – e assustado com a Lava Jato – que se especializou em aprovar aumentos de gastos populistas no último ano. O paroxismo mergulhou os brasileiros em uma exaltada discussão sobre a natureza do impeachment, mescla de julgamento jurídico com voto de desconfiança parlamentar. Depois de aceito o processo de impeachment, a trama ganharia outros protagonistas no Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros do STF definiram o rito do impeachment e passaram a ser buscados a cada passo em falso do processo conduzido por Eduardo Cunha, que se equilibrava entre a condução do impedimento e sua defesa no Conselho de Ética. Com a intensificação da crise, o vice-presidente da República, Michel Temer, ensaiaria uma aproximação com a presidenta Dilma, mas a desconfiança entre os dois acabaria por levá-los a um rompimento irreconciliável. Às vésperas da votação crucial do impeachment, Temer negocia a luz do dia a formação do Governo que pode herdar. Trunfo do Governo, o ex-presidente Lula chegou a animar o Palácio do Planalto com a perspectiva de dias melhores, mas sua posse na chefia da Casa Civil se tornou problema ao invés de solução. O retorno de Lula a Brasília foi interpretado como tentativa de escapar das investigações da Lava Jato conduzidas pelo juiz Sérgio Moro. O questionamento de sua posse no STF limitou a atuação do ex-presidente enquanto articulador do Governo, e os partidos aliados foram progressivamente abandonado a base: PRB, PMDB, PP e PSD anunciaram rompimento e entregaram seus cargos. Sem condições de resistir à debandada no Congresso Nacional, o Governo tentou uma última cartada no STF. O advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, pediu a nulidade do processo de impedimento aberto na Câmara. A maioria dos ministros do Supremo não se mostrou disposta, contudo, a interromper o processo, já que não consideraram que houve cerceamento do direito de defesa — para alguns deles, isso só poderia ser alegado no Senado, onde, como definiu o próprio STF, ocorre o julgamento propriamente dito.
Restou para Dilma o apoio de setores sociais, como o de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), e culturais, como músicos, atores e intelectuais ligados historicamente à esquerda, além do protesto de um grupo de juristas, economistas e intelectuais que veem uma razão frágil no pedido de impeachment para justificar seu afastamento. A falta de consenso popular, uma diferença fundamental na comparação com o impeachment de Collor, sustentou as esperanças do Governo de superar seu pior momento e remontar suas bases, mas não foi o bastante para evitar a chegada do processo de impeachment ao plenário da Câmara. Ainda que a votação no domingo reúna o mínimo exigido de 342 para encaminhar o pedido de impedimento ao Senado, Dilma seguirá presidenta da República na segunda-feira e promete continuar na batalha por seu mandato até o fim. Mas é cada vez mais difícil imaginar como ela permanecerá comandando o país nas semanas seguintes…