EGITO – A Pirâmide de Degraus de Saqqarah: Parte I – O Portal da Entrada**[2]
Quando nos lembramos ou mesmo conversamos sobre as pirâmides do passado, surgem à nossa mente as três Grandes Pirâmides da IVa Dinastia do Egito: a de Quéops, a maior delas, a de Quéfren, a subsequente e, finalmente, a de Miquerinos, a menor. Ambas, localizadas no vale sagrado de Gisé, às margens do Rio Nilo, nos arredores da Cidade do Cairo. No domínio da História das Construções, apesar da importância inegável das Grandes Pirâmides ― que serão oportunamente mostradas nesta coluna do Diário de Caratinga ―, interessa também fazer referência a uma pirâmide especial, considerada como a fundamental dentre todas as demais que lhe sucederam. Trata-se da pirâmide em degraus de Saqqarah, também conhecida como a pirâmide do rei Djoser, o primeiro faraó da IIIa Dinastia egípcia. A pirâmide em degraus faz parte e está inserida em um grande complexo funerário do velho império egípcio, em Saqqarah.
A pirâmide em degraus de Saqqarah, Egito.
A concepção e o projeto do complexo funerário da pirâmide do Rei Djoser ficaram a cargo de Imhotep, uma das personalidades mais intrigantes e geniais da IIIa Dinastia, cuja vida foi revelada ao mundo pela arqueologia moderna a partir do final do século XIX. Imhotep era sumo sacerdote, vizir e o principal conselheiro do faraó Djoser. Coube também a Imhotep, no caso, o planejamento, a administração e a construção desta obra fantástica, considerada na História das Construções, como a mais audaciosa e inovadora do seu tempo, por utilizar técnicas e conceitos jamais realizados pela humanidade. É sobre esta obra complexa e intrigante ― construída por volta do século XXVII a.C. ―, que falaremos nesta e nas próximas edições de domingo no DC.
A chegada ao sítio arqueológico de Saqqarah, parece um deserto sem surpresas e sem horizonte, como deveria ser qualquer deserto imaginado, aparentemente longe de tudo e de qualquer manifestação de vida. De repente percebe-se à direita da estrada, atrás de um morro contínuo de areia quente, solitária há quase cinco mil anos, a pirâmide de degraus, como uma rocha escalonada, protuberante, apontando para o céu azul silencioso, sem nuvens ou pássaros, mas bonito, encantador e profundo. A pirâmide parece tocá-lo devagar e com jeito. Na areia do deserto, onduladas como as dunas, apenas ramas teimosas empoeiradas, cor de oliveira, ainda persistem em afrontar o forte calor da manhã de Saqqarah, como guardiãs do templo. Os olhos do visitante não despregam dessa visão anunciada e esperada com ansiedade. Mais próximo do portão de entrada, é possível perceber melhor os seus contornos moldados de areia fina deixada pelo vento sobre os degraus, formando uma superfície suave e contínua, cobrindo alguma fenda escondida.
Um portal de pedra guarda a entrada da Necrópole.
A passagem pelo portão principal de entrada ao complexo funerário, permite ao visitante perceber a grandeza das construções e a extensão daquele campo santo. Circundando o complexo funerário havia originalmente uma muralha contínua de 10m de altura, com o perímetro da ordem de 1600m. Nessa muralha, Imhotep construiu quinze portais grandiosos que permitiriam a livre saída e entrada do espírito do faraó, quando assim quisesse, em suas viagens noturnas além da vida. Ocorre que apenas um desses portais, o que está localizado na extremidade sudeste da muralha, pode ser considerado como verdadeiro, ou seja, possui uma entrada física, voltada para ao sol nascente.
Portal de entrada do complexo funerário de Saqqarah, com paredes em baixo relevo, inteiramente integrado à arquitetura inovadora de Imhotep. A restauração das principais obras de Saqqarah foi dirigida pelo arqueólogo francês Jean-Philippe LAUER, (1902-2001).
Detalhes do portal de entrada ao complexo funerário de Saqqarah. A abertura mede cerca de 1,0m por 4,0m. Dentro, vinte colunas caneladas, como árvores, compõem uma alameda de pedra.
A superfície lisa das paredes do portal de Saqqarah, da cor âmbar escurecida por uma pátina milenar, reflete a intensa luz da manhã que penetra e ilumina a grande galeria de vinte duplas de colunas caneladas, dispostas ao longo de um corredor que termina no pátio sul do complexo funerário. Foi a primeira vez que estruturas compostas de grandes colunas de pedra serviram de composição arquitetônica para uma obra desta envergadura. Imhotep prepara o visitante para o que vem mais à frente: um vasto e completo ambiente funerário inteiramente destinado à consagração de seu faraó, nas cerimônias religiosas conhecidas com Heb Sed. Tais cerimônias, realizadas a cada três anos, a partir do trigésimo aniversário do reinado do faraó, atraiam peregrinos originários das mais distantes terras, do Crescente Fértil à Núbia, no Alto Egito.
Vista do hall de entrada do Complexo Funerário de Saqqarah.
No final do corredor, o espaço se abre para os lados, com duas alas iluminadas pelo pátio aberto logo à frente, formando uma pequena sala hipostilo ― uma espécie de câmara intermediária de luz ―, concebida por Imhotep para que a visão do peregrino pudesse se acostumar com a claridade ofuscante do sol refletida na areia branca do pátio interno. Tudo isso fazia parte da composição arquitetônica pretendida para satisfação dos olhos curiosos dos visitantes. Uma obra para se admirar, reconhecendo nela a grandeza do faraó Djoser, rei do Baixo e do Alto Egito, imortalizado na arquitetura de Imhotep.
[1] *José Celso da Cunha, engenheiro civil, professor, escritor, doutor em Mecânica dos Solos-Estruturas pela ECP-Paris. É membro da ABECE e do IBRACON. E-mail: [email protected].
[2] **Com base na série do autor: “A História das Construções” – www.autenticaeditora.combr . As fotografias das construções apresentadas neste artigo foram tiradas pelo autor.