E DEUS, O QUE ELE DIZ EM RELAÇÃO AOS POBRES? Os ensinos da Torá
Comecemos com o mandamento de perdoar dívidas, que é nada menos que renunciar ao direito de cobrança de dívidas contraídas pelo irmão (Dt 15.1-11). É muito interessante notar que temos aqui uma sequência original, mas lógica ao mandamento do dízimo no capítulo anterior (14.22-29).
Não é de pasmar: colocar-se ao lado dos pobres é uma consequência social de termos a Deus como o Senhor de nossa vida!
Outros mandamentos na mesma linha, humanitária ou social, são encontrados em vários capítulos do Pentateuco: Deuteronômio 22 a 25 (proibição de juros – 23.20, como agir em caso de penhora – 24.10-13, etc.), também intimamente ligados ao mesmo princípio da misericórdia.
Segundo a exegese rabínica tradicional bem como as pesquisas científicas modernas, aqui está sendo instituída uma ação para extinguir completamente todas as dívidas a cada sete anos. O sentido original dos verbos, porém, é de “deixar lá”, “abandonar no chão” ou até de “deixar cair no chão” – como em Êxodo 23.10-11 (A21), em que “[…] no sétimo ano a [terra] deixarás descansando e sem cultivo, para que os pobres do teu povo possam comer, e os animais do campo comam do que sobrar”.
Mas a única base e razão se encontra no próprio Senhor, e por isso Ele é honrado (Dt 15.2, Ex 12.11, 14.42; Lv 25.2), e é, por conseguinte, também a base do mandamento do amor ao próximo. Assim, no v. 7 (Dt 15) a palavra é dirigida ao “coração”, o órgão que reconhece e sente, isto é, a própria consciência. Pela consciência ele é levado à ação.
O estudioso da Bíblia, Timo Veijola, reflete sobre este fato de forma magistral, e que certamente pode nos ajudar a conhecer melhor a central de nossas motivações:
Quando o coração é socialmente sensibilizado, a mão não consegue ficar fechada, mas irá se abrir e voluntariamente emprestará aos necessitados, não importa qual a sua necessidade (v. 8).
Estes são os pensamentos primordiais que permeiam o Antigo Testamento: os textos que examinaremos a seguir nos levam a entender que há uma sequência e continuidade deles nas outras duas partes da Bíblia hebraica, nos Profetas e nos Escritos.
Deuteronômio 15.1,10 – O Ano do Cancelamento das Dívidas: 1 No final de cada sete anos as dívidas deverão ser canceladas. …10 Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; […] portanto, eu lhe ordeno que abra o coração para o seu irmão […].
A preocupação maior neste trecho é garantir a estabilidade de cada unidade familiar. Contudo, há tragédias e catástrofes que afetam esta segurança material. Como já dito no início deste capítulo, neste trecho de Deuteronômio 15 temos uma das mais claras declarações do coração de Deus em relação ao pobre e ao necessitado.
Não há nenhuma sombra de dúvida no que está sendo tratado: é a necessidade material, econômica do irmão. … E continua: agora, porém, apontando para o assunto em pauta:
Aqueles que quisessem se abster do ato de pecar, deveriam manter fora de suas mentes o próprio pensamento do pecado. É uma coisa terrível ter o clamor justo do pobre contra nós. Não ressinta fazer um ato de bondade para com o teu irmão; não desconfie da providência de Deus. O que fazes, faça-o livremente, pois “[…] Deus ama a quem dá com alegria […] (2 Co 9.7)”.
O assunto é levantado no livro anterior, de Levíticos:
Levítico 25.35-37 – O Ano do Jubileu: 35 Se alguém do seu povo empobrecer e não puder sustentar-se, ajudem-no como se faz ao estrangeiro e ao residente temporário, para que possa continuar a viver entre vocês. 36 Não cobrem dele juro algum, mas temam o seu Deus, para que o seu próximo continue a viver entre vocês. 37 Vocês não poderão exigir dele juros nem emprestar-lhe mantimento visando lucro […].
Podemos encontrar instruções mais claras que estas em relação ao nosso irmão pobre?
Esta instituição do Ano do Jubileu é uma diretriz muito útil no nosso mundo de desigualdades. Outro estudioso, Comblin, em sua Introdução Geral ao Comentário Bíblico, escreve da descoberta que ele fez ao estudar este texto bíblico:
[…] a opção de Deus pelos pobres não é um aspecto acessório da Bíblia: é o próprio núcleo da revelação […] Ela nos obriga a entender a totalidade da história num sentido bem preciso. A opção pelos pobres é precisamente o que nos dá a conhecer a essência de Deus. É a novidade cristã que diferencia o Deus cristão dos outros deuses da humanidade, quer dos deuses das filosofias, quer dos deuses das religiões.
Se nós como seguidores da fé bíblica não temos sensibilidade para a necessidade material do nosso irmão, o Deus a quem adoramos terá certamente um rosto diferente! Um pouco mais adiante ele conclui, relevando o trabalho pioneiro dos teólogos latino-americanos:
Há uma tradição ocidental individualista que esqueceu e perdeu de vista o agir social da Igreja cristã. Na América Latina os cristãos descobriram a ação comunitária, a ação do povo como sujeito histórico. Graças a esse descobrimento, entendem melhor o caráter social e histórico da Bíblia. Não o inventam, mas descobrem o que a interpretação tradicional no Ocidente tinha esquecido.
(Extraído do nosso livro/e-book A Generosidade Começa de Cima, Parte II – O que Deus diz em relação aos pobres, págs. 41-46)
Rev. Rudi Augusto Krüger – Diretor, Faculdade Uriel de Almeida Leitão; Coordenador, Capelanias da Rede de Ensino Doctum – UniDoctum [email protected]