Grace Kelly da Silva é uma brasileira, comum. Negra, solteira, vinte e oito anos de idade, ensino médio incompleto, mãe da pequena Jenniffer Christine da Silva com quatro anos, nascida de um dos inúmeros namoricos que teve nos últimos anos. Grace Kelly trabalha em uma loja de roupas femininas, no centro da cidade e mora numa comunidade da periferia.
Não terminou o ensino médio porque achava a escola muito chata. Havia falta de vários professores, e a merenda era ruim. Preferia os bailes funk, as baladas, os namorados… Depois do nascimento da filha e do abandono de ambas pelo pai, Grace teve que arrumar um emprego.
Na manhã de uma segunda-feira comum, Grace acordou, como sempre, às cinco horas da manhã, ao som do despertador. Tivera uma boa noite de sono, afinal a cama nova, enorme, com um belo colchão novinho que comprara há pouco, eram mesmo muito confortáveis. Na cozinha, ligou a cafeteira elétrica, e colocou leite no micro-ondas e pão na torradeira elétrica. Acordou a filha, banharam-se, vestiram-se, tomaram o café da manhã e saíram. Grace tinha que sair tão cedo porque gastava cerca de duas horas para chegar ao trabalho, e ainda tinha que deixar a pequena Jenniffer na casa da avó, pois a creche da comunidade onde viviam não tinha vagas suficientes para todas as crianças.
Ao sair de casa, chovia um pouco. Com o guarda-chuva numa das mãos e a filha no colo, Grace tentava desviar-se da lama e das poças de água que a separavam do final da longa rua sem asfalto ou calçadas. Num canto, viu o aguaceiro carregando os restos de lixo que eram jogados na rua pelos moradores, já que na comunidade não havia coleta regular de detritos. Ao pisar na lama, lamentava a sujeira que aderia aos seus sapatos novos. Ainda não os havia pagado integralmente…
Vencida a travessia, passou na casa da mãe, deixando lá sua menina, e correu para pegar o ônibus que a deixaria na estação de trem. Longas duas horas ainda a separavam do trabalho. Vencida a dura batalha de entrar no trem, devido ao excesso de pessoas, Grace, amassada em um canto, tentava distrair-se ouvindo música no seu novo aparelho de telefone celular, último modelo. Após alguns solavancos, o sistema de som do trem avisa que a composição quebrou e que os passageiros teriam que saltar e seguir a pé até a próxima estação. Grace não se aborreceu tanto. Afinal aquilo era muito comum. Pensou apenas como iria avisar sua gerente, pois naquele lugar o seu celular novinho e caríssimo não funcionava, pois não havia sinal. Ao chegar à estação, Grace tentando subir na plataforma, tropeçou e torceu o pé. Uma dor forte, uns gritos, a ajuda de alguns passageiros, Grace foi colocada num banco. Não conseguia pisar no chão. Após cerca de meia hora, foi avisada que não havia viatura da empresa de trens para levá-la ao hospital. Com a ajuda de dois rapazes, foi carregada até o ponto de ônibus e seguiu sozinha para o Hospital público mais próximo. Já passava das dez horas e Grace não conseguia ligar para sua gerente.
Após mais de uma hora, Grace é atendida por um médico que a examina e constata a necessidade de um raio-x, mas que naquele dia seria impossível realizar o exame, já que a máquina estava quebrada, sem previsão para o reparo. Como Grace não tinha plano de saúde, o jeito seria tomar alguns analgésicos, imobilizar o pé e voltar prá casa. Após encontrar um antigo telefone público ainda em funcionamento, Grace liga para sua loja e avisa o ocorrido. Ao voltar pra casa, Grace lamenta as comissões que perderá, já que seu salário básico era mínimo e tinha sido com as comissões de vendas, super aquecidas nos últimos meses que havia conseguido comprar móveis, eletrodomésticos, o smartphone…
Finalmente ao chegar à casa, com a ajuda da mãe, Grace constata que não havia água para o banho ou para preparar o jantar. Teria que se contentar com uma bacia de água quente e um sanduíche preparado pela mãe. Grace não se abateu, isso também era comum…
Adormeceu a filha e deitou-se na cama. Ligou a televisão de plasma, de trinta e duas polegadas e começou a assistir ao jornal nacional. Como fazia um calorão, ligou o ar condicionado. Afinal, o importante é o conforto e deu graças pelas facilidades nos crediários…
Na TV, ouvia com atenção ao discurso da Presidenta: “tiramos milhões da pobreza! Hoje os brasileiros têm micro-ondas, telefone e televisão! Resgatamos a cidadania que nunca tiveram…”
Infelizmente, não pôde ouvir o restante do discurso, pois uma das frequentes quedas de energia daquela região ocorreu exatamente naquele momento.
Grace então pensou: Eita Governo bom! Na próxima eleição terão novamente meu voto!!
Ao dirigir-se à janela, ainda dolorida, para abri-la a fim de ventilar um pouco o quarto, Grace ouvia os tiros que eram disparados na comunidade ao lado, onde a milícia tentava manter seu território, constantemente ameaçado por traficantes.
Grace, como muitos brasileiros, não conseguia entender a diferença entre cidadania plena, onde se desfruta dos direitos básicos como saúde, educação, transporte e segurança, e a falsa cidadania, alimentada pelo consumismo e artificialmente insuflada por um crescimento econômico baseado em premissas insustentáveis…
Grace abriu a janela. Ao longe, ela percebeu relâmpagos e nuvens imensas se formando. É… Amanhã teremos tempestade, Grace pensou!
Sim, teremos tempestade. O preço pela falsa sensação de cidadania estava chegando…
*Eugênio Maria Gomes é professor e escritor. Membro das Academias de Letras de Caratinga e Teófilo Otoni e do Núcleo de Escritores e Artistas de Buenos Aires.