40 anos de estudos dos muriquis em Caratinga

Feliciano Miguel Abdalla deixou legado de preservação ambiental (foto: arquivo)

CARATINGA- Caratinga celebra os 40 anos de estudos dos muriquis, desenvolvidos na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdalla. A data foi comemorada no evento “O Projeto Muriqui de Caratinga + 40” com palestras e mesas redondas.
O debate contou com nomes como Russell Mittermeier, diretor-chefe de Conservação da Global Wildlife Conservation e presidente do Grupo Especialista de Primatas da União Internacional para Conservação da Natureza; Leandro Jerusalinsky, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros; Sérgio Lucena Mendes, diretor do Instituto Nacional da Mata Atlântica; Fabiano de Melo, professor associado da Universidade Federal de Viçosa, e Karen Strier, professora titular da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
LEGADO E REFÚGIO DOS PRIMATAS
A Estação Biológica de Caratinga, na Fazenda Montes Claros, no distrito de Santo Antônio do Manhuaçu, importante patrimônio ecológico, que em 2001 foram transformadas em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdalla, uma justa homenagem a quem, durante várias décadas, foi questionado por seus vizinhos – eles diziam que o uso da fazenda para a pesquisa científica e a proteção de espécies nada mais era do que um “desperdício” de terra boa para o cultivo.
Com área de 957 hectares, a Reserva corresponde a 72% da Fazenda Montes Claros, formada por 80% de matas em bom estado de conservação e 20% de pastos abandonados e florestas em regeneração.
Ramiro Abdalla, presidente da ONG Preserve Muriqui, destaca a importância do legado deixado por Feliciano. “São pessoas proeminentes no mundo e que prestigiam o trabalho que a gente realiza aqui e vem sendo feito há muitos anos. E reconheceram já, lá atrás, a visão futurística do meu avô em preservar, em viver em harmonia com a natureza. Meu avô era produtor rural, fazendeiro, criou a família, o sustento, viveu a vida inteira produzindo, mas em harmonia com a natureza. E a oportunidade agora de celebrarmos esta parceria vitoriosa, de tantas décadas, uma alegria muito grande e um privilégio receber esse reconhecimento e poder estar cada vez mais trazendo mais gente junto porque sozinhos a gente não consegue”.
Ramiro destaca ainda iniciativas sendo desenvolvidas com o viés de preservação e continuidade. “É um legado que ele nos deixou, um alerta que ele nos fez desde cedo e uma alegria ver o quanto ele estava certo, porque hoje, por exemplo, estamos escrevendo um grande projeto para fazer aquele corredor de mata interligando a RPPN Feliciano Miguel Abdalla com a do Sossego, que fica a 50 km daqui, que é fundamental para a sobrevivência do muriqui e hoje esse projeto está fundamentado em estudos científicos que já demonstram com muita clareza um ganho de qualidade do café, de produtividade do café e de controle de praga natural quando você tem áreas preservadas em conjunto com as plantações. Então, ele foi um visionário porque ele já tinha isso dentro dele, onde ele falou que essa mata só nos beneficia, não está atrapalhando em nada e vou manter”.
Rodrigo Abdalla, liderança da Preserve Muriqui, enfatiza que a comunidade é a essência para dar continuidade ao projeto, pois, como ONG, trata-se de uma entidade sem fins lucrativos. “Só conseguimos gerar transformação envolvendo a comunidade. Hoje, tudo que a Preserve Muriqui se propõe a fazer beneficia a comunidade. Temos projetos hoje de educação ambiental, recebemos várias escolas em que as crianças vão lá aprender sobre a preservação, sobre a importância de manter uma floresta em pé. O outro ponto é que mobilizamos esse ano, até o momento, 4.500 hectares. Produtores rurais, em que a gente convence a não desmatar, os benefícios de manter a floresta como meu bisavô fez há muito tempo. Mais uma vez você vê a força da comunidade. Outro projeto é a nossa rede de sementes em que até 70% do que a gente fatura é repassado para as trabalhadoras. No ano passado coletamos duas toneladas de semente. A entidade não existe sem essa força da comunidade, estamos em festa, em comemoração e muito animados de preservar a mata, mas, expandir, fazer esse corredor ecológico e crescer muito mais. Animados com os próximos 40 anos”.
Em 2017, Caratinga viveu um surto de Febre Amarela. Conforme Rodrigo foram registrados impactos para a população já ameaçada de extinção. “De fato, houve uma redução da população de primatas, perdemos não só o muriqui como o callithrix flaviceps, que é um tipo de sagui que também está criticamente ameaçado em extinção e bugios ou barbados, que também estão ameaçados. Então, hoje, dentro da Reserva Feliciano Miguel Abdalla temos hoje quatro espécies de macacos, sendo que três estão ameaçados em extinção”.
Os fatores climáticos também impactam no local e Rodrigo cobra mais apoio das autoridades para a reserva, que é o lar da população de muriquis-do-norte mais estudada do país. “As chuvas que caíram aqui no município de Caratinga, em janeiro pela primeira vez a mata de certa forma foi impactada negativamente. Tivemos alguns desmoronamentos, que a gente pediu o apoio da prefeitura, que infelizmente hoje é ainda muito escasso, a gente espera ações do prefeito, do secretário de Meio Ambiente, de não esquecer esse lugar turístico do caratinguense. Hoje, infelizmente, até uma reserva como a nossa não está isolada dos efeitos do aquecimento global ou de vírus, como a Covid e a Febre Amarela. A boa notícia é que ela é afetada em uma porção muito menor, o que acontece hoje nos grandes centros, desabamentos, com certeza, a escala que acontece lá é muito menor”.
Na mata, entre a natureza e os animais, ele afirma que o ambiente é mais tranquilo. “Quando tem aquele dia de calor em Caratinga, que a gente não aguenta, porque tem tanto concreto aqui, lá na reserva a gente chega a ter de 4ºC a 7ºC de temperatura de diferença, sempre fresquinho. Mais uma vez mostrando a importância de parques ou projetos que envolvem floresta”.
Em relação aos efeitos da Febre Amarela, Rodrigo explica que já foi possível reverter. “Hoje temos um ambiente muito mais controlado, o nosso grande receio era a covid-19, por incrível que pareça a Febre Amarela teve impacto muito maior. Hoje temos uma reserva saudável, uma entidade forte liderada pelo Ramiro, a Preserve Muriqui e que hoje, cada vez mais, está atraindo doadores, investidores, ganhamos uma premiação internacional. Temos três decretos de utilidade pública como ONG, uma estadual e duas municipais, certamente uma grande entidade e orgulho para todos nós”.

Pesquisadores entre o passado, presente e futuro dos muriquis de Caratinga
Entre os pioneiros estudiosos em Caratinga estão Russell Mittermeier, que na década de 80 veio apresentar a mata e seus muriquis a Karen Strier, pesquisadora que vem dedicando anos de estudos na RPPN Feliciano Miguel Abdalla.
A antropóloga norte-americana Karen Strier destaca que o projeto de 40 anos foi um grande desafio. “Mas, eu achei importante porque primeiro, no lado da Ciência, nós precisamos aprender sobre tudo o que é possível entender dos muriquis, para ajudar na conservação e manejo deles. Então, o motivo grande foi justamente pra chegar o momento quando nós poderemos dizer o que eles precisam e graças ao trabalho e todas as pessoas que participam nesse projeto nós estamos conseguindo fazer isso”.
O trabalho realizado na reserva de Caratinga também foi elogiado pela pesquisadora. “É um lugar muito especial porque tem o Preserve Muriqui e no outro lado nós temos uma mata bem preservada, uma população grande dos muriquis e uma comunidade, das pessoas, sociedade civil, que são super interessadas e que têm um compromisso. Nós queremos incentivar mais ainda esse compromisso da comunidade no entorno da reserva pra colaborar, ajudar e apoiar a conservação dos muriquis”.
Karen Strier também faz um comparativo do cotidiano dos primatas entre a seca e o surto de febre amarela. “Foram dois anos de seca prolongada, o que foi muito estressante para os muriquis e para a mata, aí quando chegaram as chuvas, veio o surto de Febre Amarela. Perdemos em seis meses, 10% da população. Nunca ao longo desses anos tinha acontecido nada parecido. Foi assustador e a população continua caindo. Perdemos ao longo dos cinco anos mais do que cem muriquis, mas, graças à conservação que foi feita antes, a população já estava com mais do que 200. Continua sendo com mais de que 200 indivíduos, então, ainda continuam forte”.
A pesquisadora ainda explica que em curto prazo, o melhor a ser feito para manter a população de muriquis é proteger a mata e proporcionar o seu crescimento. “Proteger as nascentes e deixar a natureza com chance para recuperar, também nós poderíamos ajudar a regeneração natural, plantando árvores e tentando fazer um corredor lá na região. No entorno da reserva tem muitas propriedades particulares, que ainda sobraram matas, matas pequenas, fragmentos. Se nós pudermos conectar essas matas que não interferiam com nenhuma atividade de ninguém, teria um caminho para os muriquis seguirem, os recursos, as águas, o clima que eles precisam no caso de qualquer outro problema”.
O primatólogo Russell Mittermeier afirma que o programa desenvolvido em Caratinga é um dos mais importantes do mundo. “Um estudo de longo prazo, 40 anos agora e tem quase nada de outros programas desse tipo no mundo inteiro. Então, realmente, é um modelo de como se pode conservar uma “espécie bandeira” como essa, o muriqui, o maior macaco das Américas e o mais importante macaco para o continente. Para mim, o muriqui é como o panda-gigante para a China. Realmente, um símbolo e o município de Caratinga está protegendo um animal tão importante, isso realmente é muito bom para a cidade, o Brasil e o mundo inteiro”.
Sobre os desafios para o futuro, Russel cita que quando se trata de animais criticamente ameaçados são a perda do ambiente. “Se, por exemplo, entra fogo nessa reserva Feliciano Miguel Abdalla, 900 hectares, é muito fácil o que poderia queimar ou outros problemas ecológicos. Tem de estar sempre vigiando, para que não acabe essa mata, porque o muriqui é um animal da mata. Se acaba a mata, ele acaba também. Felizmente, durante os últimos mais de 40 anos, graças aos esforços do Feliciano Miguel Abdalla e à família dele está sendo conservado, mas, é sempre um risco de fogo e outros desastres naturais. Temos que fazer o máximo possível para proteger e a presença dos pesquisadores, obviamente, é altamente importante, porque eles estão sempre lá e se surge algum problema eles podem resolver na hora”.
A respeito da realização de um evento para tratar dos avanços e traçar estratégias para manter a conservação, Russel afirma que o diálogo é fundamental. “Temos aqui um dos conservacionistas mais famosos, mais importantes do Brasil como Braulio Dias, que foi o chefe da Convenção da Biodiversidade por vários anos. Temos uma boa parte dos conservacionistas famosos do Brasil aqui nesse momento, estamos trocando ideias. Essa mata não é importante só para a conservação do muriqui, tem três outras espécies de macacos presentes, inclusive o sagui-da-serra, que é uma espécie também criticamente ameaçada e é um exemplo de restauração natural, que é realmente importante para o futuro. Se você quer criar corredores ecológicos, aqui você tem um modelo, com uma história de 80 anos, como a floresta pode naturalmente crescer de novo e o muriqui mostra. Quando o muriqui começa a usar uma floresta em restauração, mostra que já é uma floresta de bom estado”.

Rede Doctum de Ensino apoia preservação
A Família Leitão acompanha o trabalho realizado na RPPN Feliciano Miguel Abdalla e apoia a preservação ambiental. Dos estudos em Caratinga já nasceram várias pesquisas científicas, diversos documentários e obras literárias, entre elas o livro: “Muriqui – Reis da Mata”, uma coletânea de textos que conta com a participação da jornalista Miriam Leitão.
Miriam prestigiou o evento em Caratinga e falou do orgulho de ter nascido na “terra do muriqui”. “Eu vi nascer tanto esse projeto de pesquisa, quanto a própria proteção em si. E é uma história bonita, do ponto de vista da preservação, de todos os pontos de vista. Feliciano Miguel Abdalla era um proprietário, um cafeicultor, um produtor rural, quando ninguém protegia nada. Eles olhavam a mata e falavam l, limpa esse morro aí, Feliciano. E ele manteve 1000 hectares, esses 1000 hectares abrigam o muriqui. Esses macacos são endêmicos, eles dependem da mata e a mata depende deles. É uma história de longo prazo, de uma longa caminhada, na cidade onde eu nasci”.
A jornalista ainda falou sobre a importância da preservação. “Vejo uma longa caminhada de proteção, de um bioma que hoje só tem 12% e que nas duas últimas semanas foi atacada novamente, por tentativas no congresso e até no judiciário de flexibilizar o desmatamento. Precisamos da mata atlântica, de crescer a mata atlântica. Essa história que eu vi nascer, eu via todo mundo falando. Eu conheci o senhor Feliciano e agora estou conversando com o bisneto do Feliciano no mesmo projeto, na mesma ideia de proteção. A Karen Strier é uma pessoa maravilhosa com uma pesquisa inovadora, não invasiva e ela treina estudantes brasileiros. Encontrei pessoas que já estudaram com ela, que hoje já comandam áreas. Então, esse projeto muriqui de Caratinga deu frutos. E um orgulho enorme ver isso”.
Pedro Leitão, presidente Executivo da Rede Doctum disse que o município precisa despertar para a realização de eventos como esse. “Sem dúvida nenhuma, acho que o caratinguense tem que conhecer mais. Esse projeto é considerado um dos projetos de conservação mais bem sucedidos do mundo, estamos falando de algo precioso. Nos perguntam, nesse momento de tecnologia, o que que tem a ver a preservação do muriqui e tem tudo a ver. Hoje é tudo interligado, vivemos numa comunidade onde as coisas são interrelacionadas, então, você ter uma unidade de conservação, onde tem uma pesquisa, que tem o maior primata das Américas e que isso faz parte de um projeto mundial de conservação é algo que a cidade tem que tirar proveito disso. Uma das questões é justamente saber quais pesquisas devem ser desenvolvidas lá, quais os avanços da pesquisa científica e também trazer os pesquisadores pra poder fazer isso na cidade de Caratinga porque é a sede da conservação. Então, a gente está muito feliz de abrigar esse evento, pude fazer o Caratinga +30, estou aqui no Caratinga + 40 e quem sabe Caratinga + 50”.
Cláudio Leitão, presidente do Conselho Administrativo da Rede Doctum também elogia os estudos realizados. “Caratinga hoje é o centro de uma inteligência, de uma ciência dedicada à vida, um exemplo para o mundo. Uma das pesquisas continuadas de mais tempo, são 40 anos. Isso é muito importante. Caratinga hoje está sendo focada por um debate decisivo para nossa vida futura, principalmente para os muriquis. Tenho orgulho imenso e honra de estar aqui, também como membro da Preserve Muriqui”.

Conservação e uso sustentável
O evento ainda contou com a participação de Bráulio Ferreira de Souza Dias, diretor do Departamento de Conservação e Uso Sustentável da Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Bráulio reforça que o muriqui-do-norte, que tem sido atenção do projeto em Caratinga nos últimos 40 anos é um dos animais mais ameaçados de extinção do mundo. “E é o maior primata não humano das Américas. É fundamental essa preservação, ele é um símbolo do que está acontecendo com a biodiversidade do mundo inteiro, estamos perdendo biodiversidade. Temos milhares de espécies que estão à beira da extinção, aqui no Brasil são mais de três mil espécies de plantas e mais de mil espécies de animais ameaçados de extinção. Se não fizermos nada, vamos perder todas essas espécies”.
Para ele, a população precisa se conscientizar sobre preservação e consequências dos atos contra o meio ambiente. “Muita gente pode perguntar, mas, e daí se perder todas essas espécies? Bom, essas espécies são interrelacionadas umas com as outras, a gente depende uma da outra. Existe o efeito em cascata, se você começa a perder algumas espécies, outras espécies vão desaparecer. Nós temos que respirar ar puro toda hora e o que a gente quer nesse ar, oxigênio e de onde ele vem, das plantas, das florestas que estão desmatando. Precisamos beber água pura toda hora também, de onde vem essa água, do ciclo hidrológico da natureza”.
Ele ainda cita como exemplo os danos provocados à Amazônia e os impactos para o setor de energia elétrica. “É a fonte da maior parte da água, toda chuva que cai aqui em Caratinga vem da Amazônia, muita gente não sabe. E com o desmatamento e as secas da Amazônia, o ciclo hidrológico está se perdendo e vamos ter redução de chuvas. A consequência disso, 90% da agricultura brasileira depende das chuvas, então, isso vai ter um impacto enorme sobre a produção de alimentos no Brasil. A maior parte da nossa energia elétrica vem das hidrelétricas, que se não tiver chuva para abastecer os reservatórios, vamos ter crise de energia. Além do mais, precisamos nos alimentar todos os dias e esses alimentos não vêm do supermercado, vêm da natureza, das lavouras, de vários sistemas de produção. Isso tudo é biodiversidade”.